Órfãos do Eldorado: Milton Hatoum na telona

Ter, 17/11/2015 - 22:14
Publicado em:
A obra de Guimarães Rosa é a porta de entrada para muitos de seus leitores ao Brasil profundo, marcado pela roça e sertão. Já a literatura de Milton Hatoum apresenta a porta de entrada para as profundezas do Brasil amazônico, que é sintetizado no primeiro plano do filme “Órfãos do Eldorado”, dirigido por Guilherme Coelho e inspirado no terceiro romance da carreira do escritor manauara.

Essa imagem que abre o filme é um plano geral do Rio Negro, que nesse primeiro momento possui uma intensa movimentação em suas águas, proveniente do pulsar da vida de bichos e homens, que muitas vezes na literatura de Hatoum são a mesma coisa, pois todos se servem dos elementos mais brutos da terra, como frutas, vegetais, peixes e madeira, para seguirem suas vidas. Nesse contexto, quando aparece o desejo sexual na família, eles geralmente se concretizam com uma entrega violenta, até mesmo selvagem. É assim quando Arminto Cordovil (Daniel de Oliveira) retorna a casa de seu pai no início do filme e já se atraca com Florita (Dira Paes). Toda essa sequência é filmada a partir de um plano conjunto que enquadra apenas os dois rostos em perfil e percebemos o sexo pela respiração e movimento animalescos desses corpos, que revelam a explosão de um desejo reprimido há muito tempo. 

Essa sequência do primeiro encontro amoroso entre Arminto e Florita acontece após um flashback que nos revelam o passado de Arminto, desde sua relação frágil e conflituosa com seu pai Armando Cordovil devido a disputa pelos afetos e atenção, e de Florita, cuja graça e corpo, em meio a cuidados maternos, sempre chamaram a atenção do menino nos embalos da rede durante as tardes quentes e úmidas do clima amazônico. Também nos é apresentado uma obsessão que vai acompanhar Arminto durante todo o filme, a visão de uma índia nua que entra no Rio Negro andando como se estivesse hipnotizada para desaparecer nas suas profundezas. A maior parte dessa sequência é filmada com lentes teleobjetivas, que contam com ampla área de desfoque e um desenho de som composto por vozes de sua memória e finalizada a partir de um plano fechado no rosto de Arminto quando criança, envolto por um véu, que nos passa um tom fúnebre, lembrando um morto num velório, como se o menino tivesse enterrado no adulto Arminto para sempre. 

Após esse brusco encontro com Florita na sua antiga casa, Arminto vai fazer um passeio pela cidade, provavelmente pelos lugares que deixou para trás na infância e juventude. Assim, passa pela margem do Rio, pelo mercado de peixes e para num bar, onde após alguns goles de cerveja avista seu pai. Primeiro, o chama pelo nome e depois de “pai”, que visivelmente abalado pela inesperada presença do filho, tem um mal súbito, cai e morre.

A partir desse momento, Arminto herdeiro de um patrimônio indesejado – o pai enriqueceu durante o Ciclo da Borracha e trabalhava com construções de grandes embarcações -, uma vez que não tinha nenhuma vocação comercial, renega os negócios e propriedades da família parte em busca da índia que avista constantemente no seu sonho.  Após descrever suas características físicas para Florita, ela a identifica pelo nome de “Dinaura” e dá a pista do seu paradeiro ao apontar um vilarejo onde ela poderia estar. Arminto passa a desprezar Florita, a expulsa de casa e em seguida, também foge para nunca mais voltar. Nem poderia, porque nesse momento seu único propósito era a distância de tudo o que remetia ao seu pai e a sua infância, por isso, dessa casa cujas cores impressas pela luz da fotografia, pelos móveis e objetos do cenário seguiam a tonalidade da cor da pele de Florita, deveria ser guardada distância. 

No início dessa busca, Arminto contrata um barqueiro para percorrer os vilarejos localizados às margens do Rio Negro e após passar por diversas localidades não encontra nenhuma pista e numa noite de bebedeira enquanto seu barqueiro se diverte num prostíbulo local, ele num rompante de coragem, em meio a uma tempestade que caia sobre a região, desancora e começa a pilotar o barco sozinho Rio Negro adentro, com o intuito de continuar a busca por conta própria. Parecia que Arminto seguiria o destino da sua índia mítica e não sobreviveria ao desafiar a natureza. 

Porém, acorda já durante o dia atracado às margens do Rio Negro perto de uma vila habitada por cegos. Nesse momento, em conversa com dois velhos cegos, descobre um incômodo arco que une Dinara, Florita, seu pai Armando Cordovil e aquele povoado de cegos, costurado pelo destino trágico da região amazônica, marcado pela exploração econômica oportunista e desumana da região.  

Encerro minhas impressões com um convite para que os leitores entrem nesse encantador e provocativo universo das imagens e sons de “Órfãos do Eldorado”:

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=ODOUWry9sjc