“Lembro de meu pai, que me contava que de manhã eles não tinham o café que nós temos aqui, mas uma enorme jarra de azeitonas e algo que exalava o cheiro de alfazema”

Seg, 17/12/2007 - 00:00
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Na primeira entrevista que o geógrafo Aziz Ab´Saber concedeu ao Icarabe, em junho de 2005, ele procurou descrever com detalhes o conhecimento que tinha sobre a geografia do Oriente Médio e da trajetória migratória de seu pai, Nacib Ab´Saber, de uma aldeia do interior do Líbano ao sudeste do Brasil. Agora, mais de dois anos depois, o Icarabe, em grande parte influenciado pela idéia de Ab´Saber, inaugura o Centro Al-Mahjar de Estudos da Imigração Árabe no Brasil, que pretende ser referência nas pesquisa e fonte de informações das mais diferentes migrações de árabes ao país. Leia a entrevista com o geógrafo, na qual relembra aspectos da trajetória de seu pai e dos motivos que fazem do Al-Mahjar uma importante conquista do Icarabe ao propiciar um conhecimento mais profundo sobre a imigração. Icarabe: Qual a importância que enxerga nos estudos da imigração árabe ao Brasil? Aziz Ab´Saber: O estudo da trajetória dos imigrantes, avós e pais sírios, libaneses, iraquianos e outros que estão no Brasil, representa um conhecimento sobre as razões pelas quais essas pessoas saíram e como selecionaram o país a morar. No caso de certos grupos, como alemães e italianos no Rio Grande do Sul e em São Paulo, sabemos que houve muita informação sobre o Brasil. Era o começo da industrialização e muitas pessoas vieram para trabalhar nas indústrias. Outros vieram para trabalhar nas fazendas de café do interior de São Paulo. Estas tinham uma certa estabilidade. Não foi a mesma coisa que aconteceu com as fazendas de café do Vale do Paraíba. Pelo contrário, elas substituíram de forma muito perfeita o ciclo do café pelo interior de São Paulo, em Ribeirão Preto, Sertãozinho e Vale do Ribeira. Icarabe: Seria necessário, então, entender os fatores que envolveram a vinda desses árabes ao Brasil? Ab´Saber: Então, como as pessoas do Oriente Médio, Líbano e Síria, por exemplo, imaginaram embarcar em Beirute, atravessar o Mediterrâneo e o Atlântico e chegar ao Brasil sem conhecer nada, sem falar a língua, sem um mapa na mão? Apesar disso, chegaram, instalaram-se e venceram, alguns no pequeno comércio, outros como mascates que depois se transformaram em lojistas. Meu pai chegou a mascatear lá na região de São Luís do Paraitinga, São Pedro e Lagoinha. Depois, casou-se, fixou-se na cidade e teve uma lojinha. Então, há um esquema de movimentação de pessoas de um país do Oriente Médio, com línguas próprias, com escritas originais diferentes de outras partes do mundo, e que se atreveram, ousadamente, a transpor o Mediterrâneo e o Atlântico e chegar ao nosso país. É claro que os estudos devem abranger outras populações de migrantes, como os alemães. Por que escolheram o Brasil? Quais informações tiveram do Rio Grande do Sul? Será que atenderam a uma certa pressão dos governantes brasileiros no sentido de receber imigrantes para trabalho? Só que nós estamos pensando no caso dos árabes, que é um pouco diferente por causa da escrita e da língua. Icarabe: Dentro do pouco que se conhece hoje em dia, qual seria uma característica importante da migração árabe? Ab´Saber: Acredito que há uma originalidade maior em relação aos árabes. Mas a única maneira de percebermos diferentes trajetórias de famílias das mais diversas ao Brasil é fazer com que os descendentes se lembrem de como seus pais falavam de suas vidas. Eu sei como vieram meu pai e seus irmãos. Eu sei porque ele me contou. Então, Isso é uma história oral. Hoje, nos departamentos de História a história oral passa a ser considerada muito importante. Isso porque não há documentos. Meu pai, por exemplo, tinha um caderninho no qual ele ia anotando os acontecimentos ao longo da viagem, mas isso se perdeu com o tempo. Então, só sobrou aquilo que ele me contou e que eu registrei na cabeça. O homem que saiu de lá tinha uma cultura, saiu de uma kafara, que significa aldeia, e teve um percurso complicado. Saiu da sua aldeia, foi até Beirute por caminhos também transversos. Não foi fácil para eles se deslocarem de suas aldeias para chegar até Beirute e depois escolher um navio que vinha para a América. Alguns nem sabiam o nome do Brasil. Estavam vindos para a América, e as notícias sobre os que foram para a América do Norte eram muito favoráveis. Mas o navio vinha para a América do Sul. Isso aconteceu com a família do Reskallah Tuma. Foi a trajetória dos Tuma, que chegaram ao Rio Grande do Sul por caminhos bizarros, que me influenciou a fazer a história de muitas outras pessoas. Icarabe: A geografia, então, jogaria um importante papel dentro desses estudos? Ab´Saber: Minha justificativa é que pessoas, das mais diferentes, tiveram membros de suas famílias que saíram do interior de países como o Líbano, da própria capital ou de outras cidades costeiras, e vieram para um país que eles não conheciam, que era tropical, totalmente diferente dos climas temperados secos de algumas áreas do Líbano e os semi-áridos moderados da Síria. Há esse conflito em sair, por exemplo, de uma região que tem desertos savanóides na Síria e chegar a um país que tem florestas e rios perenes, um outro mundo fisiográfico e ecológico. Eu, como um geólogo, acho que existe uma visão da Geografia da Migração na captura dessas trajetórias. Particularmente, cada roteiro de família é importante, mas, juntando todos eles, vamos ver que essas famílias não tinham mapas do Brasil, não sabiam nada sobre os climas tropicais chuvosos, não sabiam nada sobre as diferentes regiões em que eles iam operar. Uns foram para a Amazônia, outros para o Rio Grande do Sul, e outros vieram para São Paulo. Icarabe: Você enxergava essa geografia nas histórias de seu pai? Ab´Saber: Eu me lembro, meu pai dizia: ‘Olha, a diferença entre o Líbano e a Síria é que esta é só deserto’. Comparativamente, para ele, aquilo era um mundo totalmente diferente. Essa é a proposta, desenvolver trabalhos no sentido de recuperar as histórias de muitas pessoas. Hoje estão em profissões diferentes, uns são médicos, outros são comerciantes. O fato de nas cidades grandes, todas, existir sempre, nas ruas comerciais, um grande número de sírios e libaneses é interessante. Não há cidade do Brasil, pelo menos aqui no Sudeste, que não tenha uma rua de comércio em que apareçam muitas famílias de origem árabe. Temos que trabalhar com algumas destas, para dizer como seus pais chegaram. Tempos que compreender como era a vida deles lá. Lembro de meu pai, que me contava que de manhã eles não tinham o café que nós temos aqui, mas tinham uma enorme jarra de azeitonas e algo que exalava o cheiro de alfazema.