Para se ler com os olhos, com as mãos, com o coração

Seg, 17/05/2010 - 13:05

Fotos: arquivo pessoal

Em abril foi lançado, No Esporte Clube Sírio, o livro “Jorge Medauar em Verso e Prosa - Passeio literário pela vida e obra do escritor de Água Preta” (Editus). A publicação é uma homenagem ao escritor baiano, feita por seu filho Jorge Medauar Jr., que organizou a obra.

Em entrevista par ao ICArabe, ele contou porquê decidiu lançar a publicação, a relação de seu pai com a cultura árabe e a forma como ela influenciou sua obra. “Meu pai ... nasceu com cheiro de zátar, com o perfume do quibe assado tomando conta da casa”, explica Medauar Jr.

Na publicação, o leitor encontra declarações de velhos amigos do autor como Jorge Amado, Antonio Houassis, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Antonio Olinto e Raquel de Queirós, que demonstram sua amizade, afeto e quase intimidade através de cartas, bilhetes e dedicatórias curiosas, inusitadas e extremamente emocionantes.

Por que você decidiu organizar esse livro em homenagem ao seu pai, houve algum motivo específico para que isso acontecesse nesse momento?

O livro faz parte de um projeto amplo, que iniciamos após a morte de meu pai, do qual fazem parte muitas ações: a inauguração de uma biblioteca na escola que ele estudou, em Água Preta, um memorial, um concurso literário para estudantes, um documentário em vídeo (que vem aí), a reedição de sua obra completa, uma mini série para TV. Algumas ideias começaram com ele ainda vivo, mas a doença chegou mais rápido. Sempre quisemos trazer o reconhecimento e a dimensão que ele e sua obra mereceram. Acontece que meu pai nunca trabalhou a seu próprio favor. Queremos fazer isso por ele, por minha mãe, pelos amigos e por todos que não puderam tomar um uísque com ele, ouvir suas histórias, caminhar na praia ou mesmo serem surpreendidos pelo imprevisto e o inesperado. Afinal, assim era ele.

Quanto tempo você levou para organizar essa publicação e como foi essa experiência?

O formato desse livro sempre foi claro para a gente, tanto para mim quanto para ele. Falamos várias vezes, entre uma cachacinha e outra, uma moqueca de peixe, um caminhar na praia e um banho de rio. No começo a gente queria que ele contasse as suas memórias por meio das histórias com os amigos que estão no livro: Helio Pólvora, Jorge Amado, Drummond, Guimarães Rosa, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira, Ueze Zahran, Ernesto Assad Abdalla Filho. De modo que foi fácil, de certa maneira. A gente já tinha tudo na mão. O engraçado é que quando comecei a mexer com isso, as portas foram se abrindo, os parceiros foram surgindo, fluiu, como o sol entre nuvens. Acho que foi sua energia circulando. Meu pai era um cara muito bom e isso ajudou.  Chorei muitas vezes revendo cartas e bilhetes, ao receber os textos dos amigos, vendo fotos, digitando os contos, os poemas. Vivi os 85 anos de sua vida, com ele novamente, durante o tempo em que fomos reescrevendo uma história. 

Por que você decidiu fazer o lançamento do livro no clube Sírio? Qual foi a importância dessa instituição na vida de seu pai?

Isso foi obra de meu amigo de infância Arthur Razuk. O Arthur é um amigo de casa, de quintal. Conviveu muito com a gente. Pegou de surpresa serenatas, feijoadas... se viu  no meio de jornalistas importantes, intelectuais famosos, boêmios... Como o Arthur é do Clube, quis nos dar esse presente. Coisa de árabe, generoso, que tem coração grande.

Capa do Livro Como era a relação do seu pai com a cultura árabe. Quero dizer, na obra dele havia influências dessa cultura? Ele buscava valorizar e destacar essas características? Ressaltava o orgulho que tinha de sua descendência? Identificava influências dessa descendência em sua obra?

Meu pai era filho de árabes. Nasceu com cheiro de zátar, com o perfume do quibe assado tomando conta da casa. Minha avó deve ter adoçado sua boca com o mel das tâmaras e meu avô deve ter tecido em sua alma o manto dos beduínos. Assim, em toda a sua obra, literária e pessoal, há a presença viva dos desertos, do dabque, das mágicas histórias de tapetes voadores, ouro, jóias, castelos, palácios, adagas, da descoberta do alfabeto, dos números, mil e uma noites... Sem falar na política, nas conquistas, invasões, domínios, enfim... milhares de anos de civilização, cultura, história – que não cabe aqui descrever, até porque estamos em seara árabe neste veículo.

Como ele passou esse orgulho para os filhos, a família e para o público?

 Os personagens árabes estão presentes em todo lugar: nas arte, na literatura, na política, no esporte, na culinária, na ciência, na física, na medicina. Na Bahia, por exemplo, se vende mais quibe que acarajé – onde já se viu uma coisa dessas? Somos seduzidos pela dança do ventre até nos cafifós do Brasil. A obra de Jorge Amado contribuiu muito para esse espraiamento. Assim como a de meu pai, com o gringo Emilio, Chafic Lued, os Arbages, os Chalubes. De modo que é fácil sentir orgulho desses encantos, dos sabores exóticos, da música melancólica que vem soprada com os ventos do deserto, das mulheres de corpo bem desenhado e olhos puxados que enfeitiçam a gente. Não há quem não sonhe com as mil e uma noites, com uma tenda no oásis, com o gênio e sua lâmpada maravilhosa. Nossa infância foi no meio de tudo isso, com meus pais, meus tios, meus avós falando árabe. Minha avó amassando trigo para o quibe, a música tocando na vitrola.

Quais são as características do livro “Jorge Medauar em Verso e Prosa - Passeio literário pela vida e obra do escritor de Água Preta”? Que critérios você seguiu para organizá-lo?

Ele tem cheiro, cor e gosto de cacau. Até porque foi feito na terra do cacau – a sua terra. É para se ler com os olhos, com as mãos, com o coração. É divertido, leve, bonito. Cheio de fotos, desenhos, depoimentos riquíssimos e emocionados. Foi muito bem cuidado pela Patrícia, da Pathylia Design e Editora, e pela Maria Luiza Nora, da Edittus, que se empenhou um bocado também para encontrar um patrocinador – a Fapesb – Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia. Quero aproveitar para também agradecer aos meus amigos que ilustraram os contos: Murilo Martins, do Rio de Janeiro, Edmundo de Almeida, de Portugal, e Fábio Schelini, de Dois Córregos. O livro não tem uma sequência. Pode-se começar de qualquer lugar. É inusitado, inesperado, surpreendente, emocionante. Como meu velho e querido pai. 

 

Breve biografia de Jorge Medauar

Jorge MedauarO poeta e contista Jorge (Emílio) Medauar nasceu a 15 de abril de 1918, em Água Preta do Mocambo, sede do então distrito de Ilhéus, hoje cidade e município de Uruçuca. Descende de pais sírio-libaneses, que chegaram ao sul da Bahia atraídos pelo cultivo do cacau.
Ainda menino, Medauar mudou-se com a família para São Paulo. Primeiro São Simão, depois a capital.  Exerceu empregos humildes e jamais perdeu ao longo da vida o elo de comunhão com a gente simples, sobretudo de sua terra, que transpôs para a sua literatura.

Pensando em cursar direito ou medicina, transferiu-se para o Rio de Janeiro, mas o jornalismo e a literatura seduziram-no, dando-lhe, como profissional e autodidata, um conhecimento e erudição invejáveis. Foi amigo, de convivência diária, com intelectuais como Manuel Bandeira, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Adonias Filho, Álvaro Moreyra, Astrojildo Pereira, Dinah Silveira de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Di Cavalcanti, Menotti del Picchia, entre outros. Colaborou na revista Literatura, como secretário de redação, e fez parte do grupo de intelectuais de esquerda.

A estréia literária de Jorge Medauar deu-se em 1945, pela Editora José Olympio, com o volume de poemas Chuva sobre a Tua Semente. É por isso incluído na chamada “geração de 45”. Durante anos, destacou-se como poeta, tendo travado um conhecido "duelo" em versos com Manuel Bandeira.

Publicou ainda os livros de poemas Morada de paz (1949), Prelúdios, noturnos e temas de amor (1954) e Às estrelas e aos bichos (1956), Jogo chinês e Fluxograma. Seu êxito maior viria, no entanto, a partir de 1958, com o livro de contos Água Preta, a que se seguiram A procissão e os porcos (1960) e O incêndio (1963), formando uma trilogia recebida com alto apreço pela crítica. Pontificou como um dos maiores contistas da época até o final da década de 70. Escreveu ainda Histórias de menino (1961) e O visgo da terra (1996), este, um romance urdido com os seus contos sobre Água Preta e Ilhéus. Participou de várias antologias nacionais e internacionais e, mais para a frente, dedicou-se à literatura infanto-juvenil, com os livros No dia em que os peixes pescaram os homens, Bom como o diabo, Contos encantados.

Pertenceu à Academia de Letras do Brasil, com sede em Brasília, à Academia de Letras de Ilhéus e à Academia Brasileira de Literatura Infanto-Juvenil.

Faleceu no dia 03 de junho de 2003, após completar  85 anos.