As viagens dos europeus na modernidade: conhecendo o Levante?

Qui, 13/06/2013 - 20:42
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Com o aumento do afluxo de europeus às terras árabes ou islâmicas, especialmente no século XVII, uma produção também vasta de relatos de viagem passou a ser, sistematicamente, publicada

Se, durante o período medieval, as viagens ocorriam, sobretudo, por inspiração religiosa, no início da modernidade, as motivações para um europeu se deslocar ao Levante – como normalmente se referiam a tais regiões – tornavam-se múltiplas. O desejo por conhecer povos diferentes dos europeus, assim como a necessidade de acordos diplomáticos ou a busca por alianças comerciais compunham as ambições desses viajantes.

Uma vez estabelecidos no Império Turco ou na Pérsia, e, em menor medida, na região norte da África – chamada pelos viajantes de Barbárie –, o texto se construía ao modo de um relato, amparado pelas experiências que eles haviam vivido. Essa forma de conhecimento prático, obtido a partir da viagem, era o instrumento usado por tais autores para justificar a veracidade das informações registradas nas suas narrativas. Muitos viajantes buscavam aprender as línguas árabe, persa ou turca, ou procuravam se instruir sobre a história e a geografia do lugar visitado; processo que pode ser situado no conceito de “orientalismo acadêmico”, discutido por Edward Said em sua obra “Orientalismo” (1978).

Além de descreverem a arquitetura local, assim como a alimentação, a economia, as características da sociedade observada, é possível encontrar nessas narrativas indicações, mais ou menos demoradas, sobre o palácio imperial e sobre os apartamentos femininos ou harém. A maior parte desses autores usava o termo serralho para se referir ao palácio dos governantes islâmicos e, em algumas ocasiões, para conceituar a própria área de convivência feminina dentro do palácio. Como o acesso a tal espaço era proibido aos viajantes – exceto aos médicos –, muitos autores não o descreveram com riqueza de detalhes. Isso não os impediu, contudo, de formularem observações gerais sobre esses povos no tocante às suas características sexuais.

Uma das imagens circulantes nesses textos dizia respeito ao hammām, um lugar destinado ao banho, que era visto como propício ao convívio íntimo entre as mulheres que o frequentavam. Embora os viajantes não pudessem entrar no banho feminino, os seus autores asseguravam que, nesse espaço, fomentavam-se relações homossexuais entre as mulheres. Essa não era, contudo, a descrição que se encontrava nas Cartas de Mary Montagu (1689-1762), que acompanhou seu marido na função de embaixador inglês em Istambul, entre 1716 e 1718. Montagu pôde ver de perto o funcionamento do banho, e concluiu que o hammām era a “casa de café das mulheres”, onde elas podiam conversar, tomar café e discutir sobre as notícias e os escândalos da cidade.

Outra imagem, mais insistente nesses relatos, relacionava-se ao comportamento sexual dos homens muçulmanos, especialmente, daqueles atrelados à administração do império turco-otomano. Tratava-se da prática perniciosa, aos olhos dos europeus, da homossexualidade. Já no século XV é possível encontrar a desaprovação das relações homoeróticas masculinas, feita pelo viajante genovês Jacopo de Promontorio de Campis (1410?-1487?). Mesmo um autor acusado de não ter viajado ao Império Turco, como Michel Baudier (c.1589-1645), não se esqueceu de mencionar a presença das relações eróticas entre grandes nomes desse Império e jovens rapazes tomados em “países estrangeiros”. O que levava o autor a comparar tal prática a um vício, ou, ainda, a uma doença.

Não há dúvida de que as experiências de viagem abriram espaço para um melhor entendimento dos europeus sobre as sociedades do Levante. Nesse processo de idas e vindas entre a Europa e as várias regiões árabes-islâmicas, muitos viajantes alimentavam o desejo de conhecer o “outro”, e realçavam o quão positiva havia sido essa convivência. Houve, de outro modo, quem salientasse os seus vários juízos de valor em detrimento da riqueza da viagem, o que contribuía para a criação ou perpetuação de modelos de representação pouco ou nada próximos da experiência real.

Como afirmava Jean de la Roque (1661-1745), as pessoas no Iêmen eram capazes de inspirar paixões. Mas, para se inspirar, é preciso deixar-se conhecer. E isso nem todos os europeus se permitiam.        


Marina Soares é graduada em História (2004) e mestre pelo Programa de “Língua, Literatura e Cultura Árabe” (2009) pela FFLCH-USP. É doutoranda em “História Social”, na USP. Seus estudos têm se concentrado nas representações europeias sobre o harém, a partir de narrativas de viagem escritas nos séculos XVII e XVIII. Publicou o livro “Erótica sem véu”, em 2011.