Imigrar ao Norte, cruzar a Porta do Sol e só então provar do mel

Qui, 10/12/2009 - 18:05
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Há bem pouco tempo, estive numa grande livraria da capital e resolvi fazer uma brincadeira. Perguntei ao jovem que me atendeu sobre alguns títulos que me interessavam. Na verdade o que de fato me interessava era ler suas expressões faciais, sua reação, se seria de estranhamento, desconhecimento ou familiaridade com os títulos solicitados, afinal não faziam parte da minha brincadeira os livros que estavam sempre na lista dos mais vendidos ou os mais conhecidos. Bom, comecei perguntando se tinham o segundo volume de As mil e uma noites e o jovem apenas me perguntou, o do “Jarouche”? Entusiasmada pela resposta-pergunta, que me causou surpresa, segui adiante na brincadeira e perguntei: E o Porta do Sol? Sem consultar seu computador, respondeu: “Acho que temos nesta loja mais dois”. Eu: “E o Tempo de migrar para o Norte”. Ele: “Deixe-me ver, receio que esteja esgotado”, consultou seu computador que confirmou seu receio, mas acrescentou: “Há um único exemplar na nossa loja em Brasília”. Envergonhada pela brincadeira que fazia, afinal estava tomando o tempo do jovem atendente, disse: “Só mais um título, A prova do mel. Sem nenhum estranhamento respondeu: “Sim, este chegou há pouco tempo, está lá na prateleira atrás daquele balcão”. Agradeci imensamente e fui em direção ao balcão sinalizado, com um sorriso de satisfação. Peguei o Prova e foi tomar um café, e enquanto o bebericava começou a crescer dentro de mim um sentimento de orgulho. Sim, orgulho por ter feito parte de um grupo de pessoas que permitiram que o leitor brasileiro não mais estranhasse a literatura que alguns anos atrás era impensável de ser encontrada na prateleira de uma livraria a não ser nos poucos títulos traduzidos, e não diretamente do árabe mas de outras línguas.

Comecei então a refletir como foi importante ter tido a chance de traduzir alguns dos muitos títulos que agora são disponíveis e conhecidos, não apenas de ficção mas de temáticas variadas e relacionadas com as coisas árabes em geral. Pensei no Tempo de migrar para o Norte, romance do sudanês Tayeb Salih, eleito pela Academia da Literatura Árabe em Damasco como o mais importante romance árabe do século 20, cuja temática lida com o colonialismo britânico na África, com a crítica aos governantes do Sudão pós-colonial. Pensei no Mustafa, órfão sudanês que abandona sua aldeia ainda jovem, partindo para Londres. Expatriado e revoltado com a arrogância dos ingleses, seduz as suas mulheres, prepara uma vingança assassina, vai parar na prisão e volta, finalmente, ao país natal. Salih cria um personagem que experimenta as dificuldades do diálogo transcultural. O romance, citado por Edward Said, mostra como os ocidentais criaram uma falsa ideia de Oriente com propósitos políticos. Mustafa descobre que o ‘Norte’ do título não é tão somente um ponto cardeal; acredita que se trata de uma ideologia que quer cancelar as demais direções.

Deixei o Sudão e seus problemas e fui em direção ao Porta do Sol, romance em que Elias Khoury joga luz sobre os fatos, mitos, rumores e histórias do povo palestino. Ao narrar a saga de Yunes, herói da resistência palestina, o autor oferece uma visão arrebatadora e esclarecedora do labirinto chamado “Questão Palestina”. Baseado em fatos reais, o livro cobre o período que vai desde os movimentos nacionalistas de 1936, passa pela Nakba de 1948 e chega até quase o final do século 20. A extraordinária história de vida do combatente Yunes se dispersa em fragmentos que cobrem várias décadas de guerras e lutas, recuperam e sintetizam a saga desse povo desterrado. Semelhante às histórias de As mil e uma noites, onde uma estória nasce de outra, refeitas porém de fragmentos de memória de outras pessoas, nem sempre das do narrador. Mas difere daquela obra num aspecto interessante: ao contrário de Chahrazad que conta histórias para ela não morrer, o narrador do Porta o faz para não deixar que o amigo moribundo morra. Isto me levou a pensar numa outra tragédia que Khoury narrou e que está sendo traduzida, em que o escritor cria um universo brutal de malentendidos, de amor e alienação e de autodescoberta.

Após três cafés e tantas tragédias relembradas, minha alma exigia um refresco, algo mais leve, e lá estava em minhas mãos A prova do mel, de Salwa Al Naime, poeta síria que resolveu escrever uma romance qualificado pela crítica ocidental como “erótico”, e pela árabe como “obsceno”, “apelativo”, sequer “merecedor de ser qualificado como romance”. De fato, longe de ser um romance por não se tratar de uma narrativa elaborada, mais parece um relato pessoal de experiências sexuais de uma poeta e pesquisadora síria que, trabalhando numa biblioteca em Paris, leva uma vida secreta em que evoca sua vida passada, sua liberdade, seus prazeres e desejos, em que se misturam as recordações de um amante misterioso e as citações das obras-primas da literatura erótica árabe, que a autora aliás (também personagem) usa para atacar a hipocrisia existente atualmente nas sociedades árabes quanto ao lugar concedido ao sexo, seja como tema, seja como ato. Isso acabou transformando Salwa Al Naime na mais audaciosa romancista árabe destes tempos; ressalte-se ainda que o texto tido por audacioso e escandaloso não tem o mesmo efeito aqui em nosso meio, apenas nos mostra o prazer do corpo, expresso por palavras diferentes, por uma língua outra...

Carrego a Prova e caminho para casa pensando nas dezenas de livros já traduzidos do árabe e nas centenas que ainda há por traduzir de uma literatura rica e de características culturais tão variadas, haja vista que não falamos aqui de produção literária de um único país, mas de muitos que constituem o que se chama de Mundo Árabe, onde se formaram substratos culturais distintos, o que resultou na riqueza, ímpar, característica dessa literatura. Oxalá o interesse das editoras por essa literatura continue e se intensifique, para que outros títulos estejam disponíveis ao leitor brasileiro através das belas páginas da literatura de outros países árabes, além da libanesa, síria, egípcia, palestina, sudanesa ou iraquiana, que já receberam certa atenção pelas casas editoriais do Brasil.