Obama e seus encontros com o Oriente

Qua, 01/07/2009 - 09:00
O discurso que o presidente dos Estados Unidos, Barack Hussein Obama, fez há cerca de um mês, último 4 de junho, marcou o que pode ser a mudança de atitude do governo que ele agora administra em relação ao que chamou de mundo muçulmano. Alguns gostaram do que ouviram mas esperam ainda que as ações acompanhem a retórica. No último dia 26 de junho, a secretaria Hillary Clinton criou o Escritório para as comunidades muçulmanas. Ontem, 30, parecem ter sido dados os primeiros passos da futura retirada do Estados Unidos do Iraque. Já outros talvez digam que não se iludiram e preveem que, de fato, as belas palavras serão apenas uma nova companhia (nem tão nova, como veremos) a novas ações imperialistas. Concentrarei o texto que segue neste último ponto. De fato a retórica de Obama demonstra inteligência. Mas, o discurso que pode sustentar um possível caráter humanitário de seu governo, permite também colocá-lo na linha histórica de ações colonialista-imperialistas do que costumamos chamar de Ocidente sobre o Oriente, ou como chamou-as Edward Said, Orientalismo. Em resumo, tudo deve mudar para que as coisas continuem as mesmas. O intelectual palestino-americano diz logo na primeira parte de seu livro que o que chama de Orientalismo teve suas bases fundadoras na invasão de Napoleão Bonaparte ao Egito ainda sob domínio Otomano, em 1798. Para ser mais fiel ao que diz coloco trecho da edição da Companhia de Bolso - Cia das Letras, página 118: “a invasão do Egito (...) e sua incursão na Síria tiveram de longe a maior consequência para a história moderna do Orientalismo”. Pode-se dizer, em um resumo superficialíssimo, que o séquito de Bonaparte criou a aliança da produção acadêmica, da pesquisa de conhecimento e da construção metódica das ciências com a expansão e conquista da empreitada colonialista europeia do século XVIII. Uma a alimentar a outra. Said assim define a sanha do francês pelo Egito: “Napoleão (...) queria nada menos que apoderar-se de todo o Egito, e seus preparativos prévios foram de uma magnitude e minúcia sem paralelo. Mesmo assim, esses preparativos eram quase fanaticamente esquemáticos e – se posso usar a palavra – textuais, características que exigem aqui um pouco de análise”. Said levanta três pontos que teriam levado o Imperador ao Oriente. A primeira era não ter mais terras a conquistar na Europa após o tratado de Campoformio, além de ter em mente desafiar a Inglaterra para lá do Mediterrâneo. O segundo era o conhecido fascínio que tinha pelo Oriente, provado em seus “manuscritos juvenis”. Coloco aqui o terceiro na íntegra, o mais importante para a discussão: “Terceiro, Napoleão considerava o Egito um projeto provável precisamente porque ele o conhecia tática, estratégica, histórica e – o que não deve ser subestimado – textualmente, isto é, como algo que é resultado de leituras e que se conheceu pelos escritos de autoridades européias clássicas e recentes. O importante em tudo isso é que, para Napoleão, o Egito era um projeto que adquiriu realidade na sua mente, e mais tarde nos seus preparativos para a conquista, por meio de experiências que pertencem ao domínio das idéias e dos mitos colhidos de textos, e não da realidade empírica. Seu projeto para o Egito, portanto, tornou-se o primeiro de uma longa série de encontros de europeus com o Oriente, em que o conhecimento especial do orientalista prestou-se diretamente a um uso colonial funcional;”. Todas as referências destes dois últimos parágrafos estão nas páginas 123 e 124 da mesma edição. Se Obama fará parte desse hall de “encontros com o Oriente”, ainda temos que esperar para saber, mas o fato é que em seu discurso (versão em inglês publicada no site do NY Times - http://www.nytimes.com/2009/06/04/us/politics/04obama.text.html) ele esparramou, antes de entrar nas questões mais concretas de nosso tempo, alguma retórica que pode rememorar essa construção saidiana. Desde então, 1798, passaram-se 211 anos, o contexto histórico é outro, mas o primeiro fator que alimenta a simbologia que colocam o francês e o estadunidense em um mesmo universo de líderes é a escolha de uma cidade egípcia para dar voz a seus discursos. Napoleão em Alexandria, Obama no Cairo do século XXI. Deixemos claro, cidades diferentes, tempos diferentes. Mas simbolicamente escolheram o mesmo lugar para resolver um problema que ambos tiveram que enfrentar: sua relação com o Oriente. Logo na primeira linha, o presidente diz-se honrado de estar na “timeless city of Cairo” . Por um lado, poderíamos traduzir a expressão como a “eterna cidade do Cairo”, que dá ensejo a uma interpretação positiva. Mas façamos uma tradução mais literal da expressão em inglês. Uma cidade “sem tempo”, “ausente do tempo”, “não afetada pelo tempo”. “Atemporal”. Em outro ponto, declarou: “Eu, como um estudante de história, também conheço os débitos da civilização para com o Islã. Foi o Islã (...) que carregou a luz do ensinamento através de muitos séculos, pavimentando o caminho para a Renascença e o Iluminismo. Foi a inovação das comunidades muçulmanas que desenvolveu a ordem da álgebra; nossa bússola magnética e instrumentos de navegação; nossa excelência na impressão; nosso entendimento de como a doença se espalha e como pode ser curada. A cultura islâmica nos deu arcos majestosos e enormes cúpulas pontiagudas; uma poesia eterna (ou atemporal, tradução novamente de timeless) e uma música preciosa; a elegante caligrafia e lugares de pacífica contemplação. E através da história, o Islã demonstrou através de palavras e feitos as possibilidades de tolerância religiosa e igualdade racial”. Os dois parágrafos acima caem em um dos problemas apontados por Said em seu Orientalismo. Se Obama por um lado de fato reconhece a importância que as realizações da civilização árabe-muçulmana tiveram para o desenvolvimento de uma cultura que desembocaria no Ocidente, e desse modo coloca os árabes sobre a linha da história, não deixa de elencar uma série de realizações que estão no passado. Os árabes apenas pavimentaram as conquistas desse Ocidente. O fim de suas realizações teria sido seu fim. Voltemos a Said. Na página 113, ao construir a argumentação sobre a formação das bases do campo de estudos Orientalismo, uma montagem de representações (ele chega a compará-las a um palco) do Oriente confinada a uma determinada geografia que tinha mais a ver com os estudos que se dedicavam a ela do que com sua realidade, e por isso era representativa, conclui: “Em vez de listar todas as figuras de linguagem associadas ao Oriente, podemos generalizar a seu respeito segundo o modo como essas figuras nos foram transmitidas pela Renascença. São todas declarativas e auto-evidentes; o tempo verbal que empregam é o eterno atemporal ... Assim, Maomé é um impostor ..., não parece necessário dizer que Maomé era um impostor, nem é preciso considerar por um momento sequer que talvez não seja necessário repetir a afirmação. Ela é repetida, ele é um impostor, e cada vez que se menciona tal coisa, ele se torna mais impostor e o autor da afirmação ganha um pouco mais de autoridade por tê-la declarado”. Para nos aproximarmos da língua de Obama, se recorrermos à versão em inglês de Orientalismo, da Vintage Books, a mesma passagem assim é lidoana página 72: “They are all declarative and self-evident; the tense they employ is the timeless eternal;”. O mesmo timeless. A chave de Obama não é mesma. Ele não vê no islã algo negativo ou Maomé como um impostor, ao contrário, enxerga uma religião que “demonstrou através de palavras e feitos as possibilidades de tolerância religiosa e igualdade racial”, afinal, seu pai era muçulmano e ele mesmo viveu uma época na Indonésia. Mas a visão que passa nas linhas do discurso não deixa de fazer o Oriente pertencer ao passado, confinado àquela geografia imaginativa que citamos. Said abre seu livro, página 27, com a descrição de um jornalista francês do Líbano logo após os anos iniciais da guerra civil (1975-76). Olhando para as paisagens destruídas, Thierry Desjardins lamentava pela cidade que “outrora parecia pertencer (...) ao Oriente de Chateaubriand e Nerval”, um Líbano que mais tinha a ver com que ele acreditava, e não com o que de fato era. Diz o palestino: “Ele tinha razão sobre o lugar, é claro, e especialmente no que dizia respeito a um europeu. O Oriente era praticamente uma invenção européia e fora desde a Antiguidade um lugar de episódios romanescos, seres exóticos, lembranças e paisagens encantadas, experiências extraordinárias. Agora estava desaparecendo; num certo sentido, já desaparecera, seu tempo havia passado”. O discurso de Obama mereceria uma análise mais completa, sua abordagem de questões problemáticas como o Iraque e a própria abordagem problemática que faz do conflito na Palestina. Mas aqui quis apenas mostrar-se porque o presidente dos Estados Unidos pode ser mais um capítulo nessa novela orientalista. Os tempos são outros, não podemos querer automaticamente fazer de Obama um novo Napoleão. Mas não podemos ignorar a sólida argumentação de Said, para quem, quando morreu, em 2004, a linha do orientalismo não havia acabado, apenas se modificado. Além disso, temos que dar o braço a torcer. Barack está em ajuste de curso e muda bruscamente o discurso de seu antecessor. Se Obama é Napoleão, Bush seria, em uma analogia ainda buscada nas linhas de Said, o digno representante do discurso colonialista missionário do século XVI. Na obra, o palestino cita a tática do Requerimiento, em documento de 1513 redigido pelos espanhóis a ser lido para os índios: “Tomaremos vocês e suas mulheres e seus filhos, e faremos deles escravos, e como tais os venderemos e liquidaremos conforme as ordens de Suas Altezas [o rei e a rainha da Espanha]; e tiraremos seus bens, e faremos a vocês todo o mal e os danos que pudermos, como a vassalos que não obedecem...” (página 126 do mesmo livro). As ações realizadas por Bush sob uma retórica já esvaziada e desacreditada pareciam-se, no conjunto, muito com esse Requerimiento, e foi um das razões que levaram Obama ao poder. Fiquemos no aguardo. Será Obama aquilo que ele parece ser aos nossos olhos e ouvidos, ou será mais um na linhagem de caras-pálidas e seus “encontros com o Oriente”.