Três ditadores em um único país

Sex, 24/04/2015 - 11:36
Cada ditador procura justificar seus atos ditatoriais de uma forma. O nosso Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) escreveu: “O período ditatorial tem sido útil, permitindo a realização de certas medidas salvadoras, de difícil ou tardia execução dentro da órbita legal.” Não estamos julgando aqui o que Getúlio realizou, de bem ou de mal, apenas mostrando como um ditador julga a si mesmo e seus atos. 

Um ditador é demais para um país, três são demais. Dos três, vivinhos, dois foram desapeados do poder e o terceiro, como diz o gaúcho, viu o cavalo passar selado e montou; haja povo. Tratando-se do Egito, não é esse o problema, pois há abundância de egípcios para lutar pelos seus direitos, o assunto controverso é o excesso de governantes.

Dois dentre eles, Husni Mubarak e Muhammad Mursi governaram Egitos assaz diferentes – o primeiro foi um líder autoritário egresso da Força Aérea que sucedeu a Anuar al-Sadat quando este sofreu um atentado, a um metro de Mubarak, tomou o poder e governou o país com mão de ferro durante três décadas. O segundo um presidente democraticamente eleito, como nenhum outro presidente da república egípcia, só permaneceu no poder por cerca de um ano.  

Se Mubarak e Mursi têm origens diferentes, um militar e o outro civil, acabaram tendo o mesmo destino: ambos foram arrancados dos palácios presidenciais e terminaram na cadeia para serem julgados pela Justiça de seus próprios países por crimes de violência e corrupção. 

Quando Mubarak foi derrubado foi constatado que sua fortuna, roubada do povo que vivia miseravelmente, somava 60 bilhões de dólares, valor igual à dívida do Egito junto a órgãos internacionais. O sofredor povo egípcio também sabia que pagava preço alto pelo gás de seu país, enquanto o regime vendia o mesmo gás para os israelenses a preços vis.

Mubarak, conivente com aqueles que o cercavam e apoiavam, diante da insustentabilidade de seu governo, pediu demissão, nomeou alguém de sua confiança para sucedê-lo, capaz de esconder sua perda de senso moral, de honestidade, de honra, de corrupção e, quando a situação permitisse, voltar ao poder ou forçar a entrega da presidência a seu filho.

Mubarak tornou-se o primeiro e único líder árabe a ser julgado pelo sistema judicial egípcio pelo desfalque de fundos públicos, aquisição ilícita de riqueza, camuflagem de sua fortuna e assassinato de participantes em demonstrações reivindicando a mudança do regime realizadas na Praça Tahrir, no centro do Cairo, que focalizaram o mundo inteiro sobre as revoluções da Primavera Árabe que influenciaram todo o Oriente Médio e Norte da África.

O fato não é inédito, mas a mulher de Mubarak e seus dois filhos também foram acusados de receberem rendas ilícitas. A esposa ficou presa durante 15 dias e foi liberada por um acordo nos termos do qual ela devolveu toda a fortuna da qual se apoderara e foi comprovada pela Justiça. Os dois filhos de Mubarak demoraram mais tempo na cadeia, mas acabaram imitando a mãe e tão logo devolveram as respectivas fortunas, foram soltos.

Mubarak, aos 86 anos, cumpre diversas penas cumulativamente por seus crimes num presídio hospitalar das forças armadas e, devido a várias brechas legais, é bem possível que tenha suas condenações reduzidas e deixe a prisão dentro em breve.

Mursi foi julgado culpado dia 21 de abril deste ano por haver ordenado a prisão e a tortura de manifestantes durante as manifestações de dezembro de 2012 no Cairo e escapou por pouco da acusação de assassinato de participantes de manifestações públicas o que o levaria à condenação à morte. 

O líder da Irmandade Muçulmana foi empossado algumas semanas após um juiz egípcio pronunciar a sentença de prisão perpétua para Mubarak, em 2012, e qualificar os 30 anos de exercício do poder “um pesadelo negro” para o Egito. Em novo julgamento por mandar assassinar 800 participantes de protestos ele foi mais uma vez condenado. 

Mursi foi o primeiro presidente egípcio eleito em pleito livre; nenhum outro, desde que a monarquia foi derrubada, assumiu o poder através de eleições livres.

O grande problema de Mursi, para os donos do poder, era pertencer à Irmandade Muçulmana, uma organização que há decênios se dedicou a atuar nas mais recônditas aldeias dos confins do Egito rural, fornecendo orientação religiosa e civil, unidades médicas, escolas e registro eleitoral; o que causava imensa preocupação às autoridades que se impunham ao povo egípcio. O resultado é que Mursi foi eleito livremente como se temia.

Mursi é acusado de vários crimes capitais, inclusive o fornecimento de informações sigilosas de segurança para o Qatar e para grupos armados rotulados de pró-Egito. O Hamas e o Hizbullah teriam se beneficiado com informações altamente secretas. Leia-se nas entrelinhas, informações que comprometiam não somente o Egito, mas também Estados Unidos e principalmente Israel. 

Ele foi acusado de difamar o judiciário em 2013, em discurso em 2013, quando acusou 23 juízes de falsificar as eleições parlamentares de 2005 e estranhamente também é acusado de fugir da prisão durante os levantes contra Mubarak, em 2011, em julgamento pouco antes de sua eleição para a presidência da república. Tudo indica que queriam condená-lo de qualquer forma e por qualquer fato real ou não.

Chegou a hora do terceiro, o Ministro da Defesa Abdul Fattah al-Sissi que deu um golpe contra Mursi, o presidente constitucional, junto com milhares de apoiadores deste, pertencentes à Irmandade Muçulmana. Foram todos presos e acusados pelo governo de plantão. Em julho de 2013 centenas foram assassinados por agentes de segurança durante manifestações silenciosas a favor de Mursi.

Mursi e 12 companheiros foram sentenciados e ouviram suas sentenças prestando continência em homenagem aos correligionários assassinados nas demonstrações a favor de Mursi que declarou em corte ser o presidente de fato e de direito da república.

Os condenados membros da Irmandade Muçulmana sinalizaram sua esperança de que al-Sissi seja o próximo líder árabe a ser submetido à Justiça pela morte de civis.

 


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