“A Última Estação”, de Marcio Curi, tem pré-estreia nesta segunda, 19, na 8ª Mostra Mundo Árabe de Cinema

Seg, 19/08/2013 - 09:43
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Na década de 50, o libanês Tarik e seu irmão Karim viajam para tentar uma nova vida no Brasil. No navio, iniciam uma grande amizade com outros meninos árabes e sírios mas, ao desembarcarem em solo brasileiro, eles se separam e acabam seguindo caminhos diferentes. O tempo passa e, em setembro de 2001, após perder sua esposa, o velho Tarik decide cumprir algumas promessas. O muçulmano abandona tudo e resolve atravessar o Brasil, na companhia da filha Samia, em busca dos meninos que fizeram com ele a travessia, 51 anos antes. Este é o enredo de “A Última Estação”, uma história de tantos imigrantes árabes, que a Mostra Mundo Árabe de Cinema apresentará ao público nesta edição (assista ao trailer em  http://www.youtube.com/watch?v=tjQbzabmSSQ).

Em entrevista ao Portal ICArabe, o diretor Marcio Curi revela detalhes sobre o processo de realização do longa e comenta o diálogo estabelecido entre Brasil e Líbano, países tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximos. “Há muito mais coisas comuns entre as duas culturas do que costumamos imaginar”, ressalta. Confira a entrevista:

ICArabe: O filme fala sobre a vinda de imigrantes árabes para o Brasil. Você se inspirou em alguma história familiar ou de algum conhecido para realizá-lo?
Marcio Curi:
A ideia do filme surgiu de um relato feito ao Di Moretti por seu sogro, que é um imigrante libanês, o escritor e jornalista Georges Bourdokan. Georges foi protagonista de uma viagem de 28 dias do Líbano ao Brasil em um porão de terceira classe de um navio italiano. Ele fez essa viagem em companhia do irmão um pouco mais velho, aos 10 anos de idade. A partir desse relato, o Di imaginou como seriam as vidas desses meninos que vinham do Oriente, crianças ainda, para tentar a sorte no Brasil e ajudar suas famílias que lá ficavam. Com a ajuda de um prêmio para desenvolvimento de projetos que conquistamos em um concurso da ANCINE, foi feita uma grande pesquisa que abrangeu um universo de 15 famílias imigrantes, que se fixaram em seis cidades brasileiras, com forte presença de imigrantes libaneses. De posse das entrevistas, o Di misturou histórias, fundiu personagens e conseguiu escrever esse roteiro incrível, no qual nenhum personagem é verdadeiro, mas todas as histórias são reais.
 
ICArabe: Como surgiu a parceria Brasil-Líbano?
Marcio Curi:
Nosso ator principal, Mounir Maasri, é também produtor, diretor e professor de dramaturgia. Ele mantém uma escola de arte dramática próxima a Beirute e, por essa razão, é uma pessoa muito conhecida e querida no meio audiovisual libanês. Com essas credenciais, ele foi o arquiteto da parceria entre a Asacine, a Cinevideo e a Day Two Pictures, de Beirute. Na verdade, eu o descobri através de Mônica Monteiro, da Cinevideo, que o atraiu para a parceria conosco com a proposta da coprodução. Ele passou a trabalhar conosco na busca dos parceiros e isso nos aproximou. Para não alongar demais a história, conhecemos assim, o trabalho de ator do Mounir Maasri e a produtora Beth Curi o propôs para o papel principal, o que foi aceito com entusiasmo. Por outro lado, o Mounir, com o seu entusiasmo pelo projeto e dedicação sacerdotal à causa da coprodução, conquistou a confiança dos produtores libaneses e conseguiu o acordo com a Day Two Pictures.
 
ICArabe: Como é dirigir um filme que dialoga com duas culturas tão ricas e tão distintas? Há algo comum nesta relação?
Marcio Curi:
Há muito mais coisas comuns entre as duas culturas do que costumamos imaginar. Como também sou descendente de libaneses, conheço bem os costumes dos libaneses que vivem no Brasil. Mas nunca havia estado no Líbano e imaginava que os hábitos abrasileirados que me acostumei a ver em meus avós, pais, tios, tias, primos eram simples frutos da convivência com o Brasil e os brasileiros. Ao chegar a Beirute, Tripoli, Hacour, Miniara, Halba e outras cidades onde filmamos é que fui compreender em toda a plenitude o quanto os costumes do Oriente Médio marcaram a nossa matriz ibérica e o quanto as duas culturas - ibérica e árabe - têm pontos comuns ou tangentes. Para mim, foi uma imensa revelação. Muito daquilo que eu imaginava que os meus parentes haviam adquirido com a convivência aqui, na verdade, chegou a nós, proveniente da sua própria cultura, através da nossa matriz ibérica. Quanto a dirigir um filme que dialoga com essas duas culturas, que são riquíssimas e têm também seus pontos de distinção, é para mim algo bem natural já que sempre me interessaram muito questões como diversidade cultural, tolerância religiosa, mútua aceitação entre povos, etnias, costumes sociais, gêneros, gerações. Praticamente todo o meu trabalho, principalmente como produtor, está ligado a temas que abordam essas questões. Em “A Última Estação” tive oportunidade de abordar, mesmo nas entrelinhas, muitos aspectos que me são muito caros relacionados com a temática da diversidade. 
 
ICArabe: Tendo em vista o atual cenário cinematográfico do Brasil, com produções mais voltadas à comédia ou à realidade das favelas e à criminalidade, como você contextualiza “A Última Estação” no cinema brasileiro?
Marcio Curi:
Agrada-me saber que “A Última Estação” colabora com a grande diversidade de gêneros que vem caracterizando o Cinema Brasileiro nos últimos anos. Particularmente, o fato de que ele propõe uma visão bem interessante da vida dos imigrantes libaneses e árabes no Brasil. Longe dos estereótipos, distante do preconceito com o diferente, mas ainda assim, uma história que poderia acontecer com quaisquer seres humanos, árabes, judeus, europeus, asiáticos, cultos ou primitivos, aqui ou em qualquer outra parte do planeta. Apesar do grande sucesso de público, que faz das comédias uma preferência nacional, tenho certeza de que existe uma parcela muito importante do público ávida para conhecer histórias de vida plenas de emoção e sentimento como é o caso de “A Última Estação”.
 
ICArabe: Quais as principais diferenças - em relação a uma produção puramente brasileira - ou dificuldades encontradas na realização do longa?
Marcio Curi:
A principal diferença que gostaria de citar no caso de “A Última Estação” é o fato de que o filme precisou ser realizado pensando em duas versões. Como não existe acordo de coprodução formal entre o Brasil e o Líbano, os caminhos que precisamos percorrer foram totalmente imprevisíveis. Assim, passamos boa parte do projeto sem saber se a coprodução aconteceria ou não. Como a filmagem das cenas no Líbano dependia dessa confirmação e os contratos de patrocínio no Brasil nos exigiam um filme pronto dentro de um determinado prazo, foi preciso realizar integralmente a versão brasileira, com início e final diferente, sem contar com as cenas a serem rodadas no Líbano - até termos certeza de que poderíamos filmar no Líbano. Outras diferenças importantes são a barreira da língua - no caso, das línguas - as diferenças entre a tradição dramatúrgica das duas culturas e as diferenças de cultura laboral entre as equipes dos dois países. Tínhamos nos sets, pessoas com o árabe como primeira língua, sendo que alguns tinham o francês como segunda e outros tinham o inglês nessa situação. Entre os brasileiros, que não costumam ter segunda língua, muitos sequer tinham habilidade nem no inglês nem no francês. Apesar dessa dificuldade, estabelecemos o inglês como língua oficial da produção e deixamos as pessoas livres para, entre elas, utilizarem o idioma que melhor conviesse a cada grupo. O resultado foi o desenvolvimento de um sistema colaborativo, em que os idiomas oficiais foram a base para os textos narrativos durante a filmagem. Além de uma linguagem inteiramente nova, que misturou o inglês, o árabe, o português e muita mímica e deu conta da comunicação entre as diversas equipes do filme.

ICArabe: Os países árabes experimentam um importante momento de transformações políticas e sociais. De que modo esses acontecimentos impactam ou podem impactar as futuras produções cinematográficas do Mundo Árabe ou relacionadas a ele?
Marcio Curi:
É muito inspirador ver o que está acontecendo hoje no Mundo Árabe. O fato de os jovens e outros segmentos das populações árabes estarem saindo às ruas, desejosos de maior participação e querendo ser ouvidos nas decisões que afetam a vida de suas sociedades é prova de que muito dos estereótipos que nos acostumamos a criar ou difundir aqui no Ocidente não são exatamente verdadeiros. Estive recentemente no Egito, em dezembro de 2012, e o que mais me chamou a atenção não foi a queda de braço entre o então presidente e as demais forças políticas do país. Mas sim o espírito participativo dos egípcios, especialmente os mais jovens, que faziam questão de serem ouvidos no processo. Vi recentemente filmes egípcios, palestinos, libaneses, do Katar, sauditas, mesmo israelitas. O que se constata pelos problemas apresentados e pelas abordagens é que as sociedades árabes não são grupamentos homogêneos de pessoas que pensam todas segundo uma única cartilha, sem se discutir, sem se autoavaliar, sem ser capazes de traçar os seus próprios caminhos. A imagem estereotipada que a imprensa ocidental insiste em moldar do Mundo Árabe não se sustenta diante da diversidade de temas e de propostas que percebemos no cinema que se faz hoje no mundo árabe.
 
ICArabe: Seu filme é destaque na programação da 8ª Mostra Mundo Árabe de Cinema. Poderia comentar sobre a pré-estreia na programação, que apresenta produções de vários países árabes?
Marcio Curi: Para nós é uma oportunidade extraordinária. Ainda que “A Última Estação” seja uma história universal, capaz de emocionar tanto árabes como judeus, muçulmanos ou cristãos, homens ou mulheres, velhos ou jovens, para nós é muito importante que ele dialogue com o mundo dos seus próprios personagens. Assim, a nossa presença na Mostra, com a oportunidade de encontrar cineastas e público de tantos países árabes, será um momento mágico em que poderemos saber se o nosso recado está bem dado. Esperamos que sim.

 

Confira a programação completa da Mostra em http://mundoarabe2013.icarabe.org/ .