Al Nakba em quadrinhos: o cotidiano na Palestina ocupada

Qui, 21/07/2011 - 10:51

Elogiado por Edward Said, que definiu sua obra como um ato de profunda generosidade em relação às vítimas da história contemporânea, Joe Sacco esteve presente na Flip 2011 para conversar sobre sua bem sucedida série de livros em quadrinhos retratando o cotidiano das populações submetidas à situação de guerras e conflitos.

Ao contrário de alguns colegas de ego inflado e postura arrogante, que se recusaram a responder algumas perguntas do mediador ou da plateia, o maltês que atualmente reside em Seattle (EUA),  esbanjou simpatia, atendendo com a maior atenção, disponibilidade e uma paciência invejável as levas de fãs, repórteres e curiosos à sua volta. Todos concordaram que ele foi uma das figuras mais cativantes da Festa Literária de Paraty. 

Também convidada para o debate Marco Zero Modernista, que abri com uma homenagem às mulheres da Primavera Árabe, tive o privilégio de conviver com ele durante os quatro dias do evento. No sábado, entre sua palestra na Tenda dos Autores, um encontro com jovens na Flipzona e a interminável fila de autógrafos, que se estendeu por mais de duas horas, Joe Sacco concedeu uma entrevista exclusiva para o newsletter do ICArabe.

Falou sobre seu processo de criação, as escolhas profissionais, os desafios de equilibrar, no trabalho de pesquisa, as memórias individuais e a realidade factual, sobre os possíveis desdobramentos das recentes revoltas no Oriente Médio e a questão de um ou dois Estados na Palestina ocupada. Sem se esquivar de nenhuma pergunta, por mais polêmica que fosse, este dublê de escritor e militante da causa dos oprimidos, de repórter e cartunista, declarou que a subjetividade é inerente ao ofício e enriquece, em lugar de ofuscar ou obscurecer a veracidade dos acontecimentos. 

Em tempo: Joe Sacco tem seis livros publicados no Brasil. Na Flip ele estava autografando Palestina (Conrad) e o recente Notas sobre Gaza (Companhia das Letras).

O que o levou a optar pelos mais pobres, pelo explorados, pelos mais agredidos, pelos humildes da terra? 

De fato, a maior parte do meu trabalho é dedicada às vítimas dos conflitos na Palestina e nos Bálcãs. Fiz esta escolha porque, em geral, estes são os sem voz, os menos ouvidos. Faço porque creio que tenho que fazer este esforço, desenhar o que vejo, manter este compromisso. Tenho a compulsão de visitar estes lugares e conversar com as pessoas para descobrir o que está acontecendo e, como cartunista, retratar a sua realidade, a forma como sobrevivem, seus dilemas cotidianos em uma situação de estresse contínuo.

Não posso julgar o impacto que isso terá, e não penso que meu trabalho vá mudar o mundo. É preciso muita coisa diferente para criar um movimento e eu faço parte deste processo que inclui cineastas, documentaristas, fotógrafos, escritores que atuam de forma independente, mas, como um todo, talvez façam diferença. Para mim é suficiente que os leitores consigam, por breves momentos, colocarem-se no lugar destas pessoas e assim compreendê-las melhor. Eu encontro gente que diz ter aprendido alguma coisa, então creio que meus quadrinhos contribuem para a conscientização e a educação.

E por que a escolha do conflito entre Israel e a Palestina para fazer dois livros em quadrinhos? 

Como cidadão norte-americano, eu ficava muito contrariado ao ver que meus impostos financiavam a ocupação israelense. Como se não bastasse, via que os palestinos eram tratados pela grande mídia como terroristas em potencial. Mas quando morei na Europa, descobri que toda essa história tinha uma série de nuances, e quis ver de perto a outra versão, a versão dos próprios palestinos. Por isso viajei para lá, falei com muita gente, entrevistei pessoas e vivenciei o dia-a-dia para saber como sobrevivem numa zona de conflito contínuo. 

O que mais chamou sua atenção nas suas viagens à Palestina?

O que mais me impactou foi a escalada impressionante da violência. Se na primeira Intifada os palestinos jogavam pedra e os israelenses atiravam de fuzis, agora aparecem os homens e mulheres-bomba de um lado e superjatos usados por Israel para bombardear os palestinos. O poder bélico e o aumento da capacidade de destruição são impressionantes. 

O senhor está sempre presente como personagem nos seus quadrinhos, em meio às lutas e conflitos que retrata. Isso não compromete a objetividade do jornalista?

Minha ideia é justamente desmistificar a posição do jornalista. Vejo como alguns correspondentes internacionais se comportam como se fossem donos da verdade. Mas quando estamos em campo, no front, a gente descobre como é difícil transmitir algo que alguém disse ou o que aconteceu. Às vezes eu ouvia, em uma mesma família, duas versões diferentes sobre o mesmo fato, em relatos vindos de gerações diferentes. Então precisamos lidar com as imprecisões da memória individual, com as lembranças de cada um.

Por isso o jornalismo não é um processo perfeito. O repórter tem que lidar com as várias facetas de uma mesma verdade, transitar por este território áspero e espinhoso, para chegar o mais perto possível dos fatos. Em um conflito, acabamos relatando os acontecimentos que vimos através dos nossos olhos e por isso torna-se impossível descartar a subjetividade, ela é parte inerente ao processo. De qualquer jeito, vale lembrar que o desenho é sempre uma interpretação da realidade e nele o ilustrador tem a liberdade de brincar, de transportar-se de volta no tempo, transmitir sensações e uma enorme quantidade de informações. 

Como vê o uso dos celulares, das modernas tecnologias para o jornalismo cidadão? 

As novas tecnologias são muito importantes, pois permitem alguém que está no meio de uma passeata, em uma situação de crise, tirar uma foto ou fazer um vídeo e enviá-la por telefone. Ou seja, elas democratizam a prática do jornalismo, porque qualquer um pode registrar uma situação, fazer imagens e em mandá-las por e-mail e em dez minutos estão na internet, disponíveis para todo mundo. Ou seja, há um lado positivo, mas também um negativo. Por mais que eu tenha várias críticas à mídia oficial, ao mainstream, pelo menos nela as pessoas têm um treinamento maior para discernir o que é real, o que está acontecendo mesmo, checar as informações etc. 

Como se dá seu processo de criação?

Eu faço pesquisas em arquivos, em bancos de imagens como o das Nações Unidas e depois converso com as pessoas nos locais que visito. Escrevo o roteiro inteiro antes de desenhar. Então vou riscando do roteiro os trechos que não usarei em palavras porque eles estarão no desenho. Há coisas que não precisa mencionar porque elas estão no desenho. A vantagem do desenho é essa: não há necessidade de repetir em palavras que existe lama, nem descrever um prédio, por exemplo, pois estes elementos estarão sempre lá, quadrinho após quadrinho, em forma de desenho. Esse é o poder de síntese da imagem, de transmitir rapidamente uma informação.

A grande característica dos quadrinhos é a de transportar o leitor imediatamente para determinada situação, dar a ele a oportunidade de sentir o momento de uma maneira visual. Isso faz com que o leitor se importe mais e se relacione de uma maneira mais profunda com a história contada. Em geral levo cinco dias para terminar uma página. Notas sobre Gaza, por exemplo, tem quase 400 páginas, o que significa que levei cerca de cinco anos para concluir este livro. 

Acredita que a Primavera Árabe terá algum impacto na Palestina?

Não sei ao certo. O que tento fazer, do meu jeito, é dar aos palestinos um pouco da sua própria história, mas acho que eles mesmos precisam contar a sua história. Foi uma grande experiência fazer este livro, mas creio e espero que os palestinos comecem a entrevistar uns aos outros, pesquisar e recuperar sua história.

Como você vê a solução de um ou dois Estados entre palestinos e israelenses?

Creio que o mais prático seria a solução de dois Estados. Mas não existe mais tempo para isso, pois há tantos assentados, e os números estão crescendo. Creio que no final será apenas um Estado. Fico assustado, pois algumas pessoas falam da possibilidade de um só Estado democrático, mas creio que isso tampouco funcionará. Estou meio pessimista no momento, estou esperando que alguma coisa aconteça, alguma coisa que mude o panorama de verdade. 

E os refugiados, acredita que eles irão retornar?

O direito de retorno dos palestinos é um assunto de justiça. Não é tanto sobre paz. Paz significaria que os tiros seriam suspensos, que não haja luta, mas isso não significa que a justiça tenha sido feita. E no final das contas, é preciso lidar com os refugiados. Seus direitos estão inscritos na ONU. Se eles vão negociar isso de alguma forma, se vão trocar por alguma coisa, não sei, cabe a eles, e só a eles, decidir. Mas seu direito de retorno é inquestionável. 

Você está prestes a lançar um novo livro que deixa de lado as zonas de guerra para explorar outros conflitos globais como o drama dos imigrantes, dos expatriados e a miséria nas grandes cidades. Por que esta mudança? 

Depois de trabalhar tanto tempo com conflitos, eu fiquei meio cansado das zonas de guerra, porque, se não vi tudo, já vi demais. Então continuo trabalhando com os oprimidos, com os deslocamentos humanos, com a pobreza extrema que também envolvem conflitos e violência, mas numa dimensão totalmente diferente. Estou buscando uma nova forma de explorar a condição humana. 

O senhor já ouviu falar nos refugiados palestinos e no MST, aqui no Brasil?

Sim, eu conheço meio por alto, de alguns artigos de jornal. Aqui as tribos indígenas isoladas despertam a minha curiosidade, assim como os conflitos de terra no Nordeste e em outros lugares. Eu gostaria de saber mais sobre as pessoas lutando nestas frentes. Enfim, tudo isso pode ser tema de quadrinhos, não só meus, mas especialmente de cartunistas brasileiros. 

Veja abaixo alguns dos quadrinhos de Joe Sacco