Começar uma nova educação, um novo Líbano

Sex, 25/09/2009 - 00:00
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O Icarabe conversa com o pesquisador libanês Marwan El-Sabban e traz um retrato do campo das pesquisas, da educação e da política do Líbano. A pauta da entrevista era falar de ciência, do atual estado das pesquisas na área das ciências biológicas no Líbano. Marwan veio ao Brasil a convite da Universidade Federal de São Paulo e da Federação das Entidades de Biologia Experimental para palestras e participação em Congresso que congrega mais de 3 mil pessoas. É a primeira vez que o Brasil recebe oficialmente um pesquisador de país árabe. Em São Paulo, fez reunião com a diretoria do Hospital Sírio-Libanês. Icarabe: Você viveu a maior parte da Guerra Civil fora do Líbano, entre Inglaterra e Estados Unidos. Como era viver aquilo de longe? Marwan El-Sabban: Eu imagino se não teria sido mais fácil passar aquele tempo dentro do Líbano. Eu sempre acompanhava as notícias, ligava o tempo todo, sempre preocupado, para saber como estava a família. Eles estavam sempre melhor do que eu imaginava, pois sempre antecipava o pior. Gastei horas indo, no meio da noite, até o telefone. Naquela época as linhas erram terríveis. Quando conseguia falar, eles diziam: ‘estamos bem’. Minutos depois escutava ter havido uma explosão próxima a eles. Lá ia eu de novo. Foi um tempo de stress e incerteza, um período de nossa história do qual temos que nos livrar o mais rápido possível. Icarabe: E que Líbano você encontra quando volta, em 1997, sete anos após o Acordo de Taef? Marwan: Nós ainda não conseguimos entender as consequências da guerra, quem ganhou, quem perdeu e por quê. Descobrimos continuamente que, na verdade, fomos peões no jogo da política regional. Os libaneses têm que aprender a ter lealdade a seu país em vez de esconder-se atrás de forças regionais. Há uma contínua polarização, um senso de desconfiança. A falta de confiança nas pessoas ao redor ou nos políticos é tão pequena que não baixam a guarda. Icarabe: E as novas gerações? Acha que elas podem ter mais chances de construir um sentimento mais ligado a uma nacionalidade libanesa do que a grupos? Marwan: Acho que essa noção de que haja uma juventude que pense diferente, que se veja como libanesa em primeiro lugar e não como leal ao Hizbollah, ao Amal, a Aoun ou aos Hariri ainda está emergindo, mas ainda não estabelecida. Temos dois tipos de pessoas no Líbano. Pessoas comprometidas, entre elas as que tiveram casas destruídas na invasão israelense, e outras tão cheias de tudo que nem querem ouvir sobre o assunto. Não querem saber se pessoas morreram, querem saber onde é a festa. Acho que isso é um impulso ao monte de horrores e coisas terríveis que ela viram. Acho que haverá um período de reajustamento, um momento em que teremos que chegar a um ponto de acordo. Muitas pessoas se agarram aos líderes locais por causa de benefícios e serviços. Se isso some, eles perdem o valor. Assim, a lealdade das pessoas será ao Estado e ao país. Mas, lógico, tudo isso não terá valor, dentro do contexto do Oriente Médio, até que haja uma paz equilibrada e justa. Temos ainda um outro problema, a crise econômica. As pessoas não olham para daqui 20 anos. Elas querem saber agora se vão poder pagar pela escola dos filhos. Icarabe: E os desenvolvimentos científicos, como ficam nessa gangorra política libanesa? Marwan: Não sabia que íamos acabar falando sobre política. Mas ela é importante para a ciência. Às vezes me surpreendo como fazemos uma boa ciência. Para ter uma ideia, não tenho como fazer um planejamento para daqui dois anos, pois se muda o partido no governo, toda política em relação ao tema pode mudar. Ou ainda se Israel decide nos atacar, tudo para. Aconteceu em 2006, tive que deixar o país e fui aos Estados Unidos. Então toda essa instabilidade não ajuda a realização de uma ciência de alta qualidade. Icarabe: Mas os investimentos científicos, ocorrem de forma estatal ou privada? Marwan: Há o Conselho Nacional Libanês para a Pesquisa Científica, o braço do governo que dá fundos a pesquisa, mas ainda insuficiente. Agora discutimos como reestruturar esse sistema. O governo não é o melhor lugar para pedir esse tipo de coisa. O que o governo faz é se aproximar da comunidade científica para que esta o ajude, mas não acho que a burocracia do governo vá abordar a questão da ciência como nos a vemos. Icarabe: Quais seriam caminhos para essa reestruturação? Marwan: Temos 5 excelentes escolas de medicina e muitos hospitais bons. Queríamos ser o centro alternativo no Oriente Médio para pacientes da região. Em vez de ir à Europa ou aos Estados Unidos, podem ter o mesmo tratamento no Líbano, melhor, pois estariam num país árabe, com o mesmo idioma e hábitos. Há muitas pessoas no Líbano dispostas a ter um papel importante na cena local, mas necessitam de recursos. Por contraste, há os países do Golfo, que têm muitos recursos. Penso em por que não trabalhamos mais em cooperação com esses países. Um país como Qatar, que tem uma grande quantidade anual de dinheiro reservada a pesquisa, poderia ter um caminho para investir em trabalhos no Líbano. Icarabe: E no Brasil, que parcerias enxerga possíveis na área? Marwan: Descobri que há milhões de coisas que podemos fazer juntos. Há experiências muito similares, frustrações semelhantes em relação à pesquisa científica, mas também sucessos semelhantes. Com o Hospital Sírio-libanês, vamos formalizar ações mais concretas. Vi que ali eles têm muito conhecimento e são muito bem equipados. Vamos fazer uma rede, identificar campos comuns de pesquisa, fazer intercâmbio de estudantes com bolsas e, quem sabe, encontros. A ideia é fazer disso um Programa. Quero mais trocas. E acho que está na hora de expor a ciência brasileira no Líbano em uma escala maior. Icarabe: Você falou em reestruturar o sistema educacional. Quais são os principais problemas? Marwan: A primeira coisa é que geramos muitos estudantes. Como o país não tem recursos como gás e petróleo, nos dedicamos à nossa educação. A área do Golfo foi construída em sua maioria por libaneses e palestinos, pessoas altamente educadas que trabalharam para levantar aquela região. O Líbano tem quatro milhões de pessoas, mas há 16 milhões deles fora, e oito milhões estão aqui no Brasil. Os números são incríveis. E o problema está aí, nós não temos capacidade de absorver todas as pessoas que mandamos para fora. Se mandarmos, por exemplo, 100 estudantes para fazer pós-doutorado nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França, elas tornam-se altamente qualificadas, mas na volta não temos posições para todos. Muitas vezes desencorajo pessoas e as faço pensar nas consequências financeiras e sociais. Digo: “se eu te mandar a Cornell, por exemplo, você quer voltar ao Líbano?”. Se me respondem “sim”, então digo que não vou mandar. Porque se você for, você não volta. Digo para considerar outras opções. O fato é que produzimos massas de pesquisadores altamente qualificados mas que não podemos usar no Líbano. Eles acabam por ter uma boa utilidade, pois viram embaixadores de uma rede fora do país. Muita gente manda grande quantidade de dinheiro. Mas isso acaba por quebrar famílias. Icarabe: E traz consequências sociais... Marwan: Para ter uma ideia, a proporção homens/mulheres no país, li outro dia, é de cerca de 1 para 5, ou 1 para 7, pois a maioria dos homens está fora tentando fazer dinheiro. Muitos vão para os países do Golfo trabalhar ou outro lugar para conseguir educação, mas isso coloca uma distorção em nossa estrutura social. É hora de sentar, pensar e ver se é o melhor para o país. O mais estranho é que nossos projetos educacionais agora implementados foram pensados 15 anos atrás, em um Líbano que não existe mais. Temos que repensar os planos de nosso sistema educacional de forma que possamos beneficiar o país e também o indivíduo. Icarabe: Como era viver como um árabe nos Estados Unidos? Marwan: Fiz minha graduação na Inglaterra, onde vivi grandes momentos, mas o processo de tornar-se um britânico é bem mais difícil do que tornar-se um americano. Nos beneficiamos com a mudança, consegui meu Green Card, nos tornamos cidadãos, nos adaptamos. E daí, o 11 de setembro. Antes disso, as pessoas costumavam brincar, eu tinha amigos judeus, alguns mesmo vindos de Israel, e havia uma discussão aberta. Alguns ainda tentavam provocar, mas você sabia que era dentro de um universo seguro, onde podia falar o que pensava e não se preocupar. Depois, tudo ficou envenenado. Mesmo como um libanês e um árabe que ia às melhores universidades e estava sempre acompanhado de intelectuais e pessoas altamente educadas, as coisas ficaram estranhas. Não gosto de quando vou aos Estados Unidos, mesmo agora, e me param no aeroporto e perguntam: “Por que você está aqui?”. E eu digo: “Como assim? É meu país. Não me pergunte o que estou fazendo aqui”. E eles querem saber por que estou lá, quanto tempo vou ficar. Isso já mudou a ideia que tinha daquela América que considerei minha. Suspeita algo de mim? Então coloque um agente para me seguir, mas não questione minha cidadania. Fico triste com isso, pois sei que em algum momento meus filhos irão querer voltar. Não quero que eles sintam-se em desvantagem por causa de sua origem árabe. Mas há tanto medo e suspeitas, e em meio a isso políticas equivocadas, que não vejo uma melhora em um curto prazo.