O fundamentalismo como resposta ao reacionarismo europeu e estadunidense do final do século XX

Sex, 17/02/2006 - 01:00
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Icarabe: Como se insere o islã no contexto geopolítico atual? Christian Karam: Na verdade existe mais de um islã, não existe um islã único. Essa palavra se usa de forma muito generalizada. Existem muitos islãs com vários matizes ideológicos, políticos e mesmo religiosos, que são, na maioria dos casos, não-fundamentalistas, e que em alguns casos acabaram pendendo para esse viés fundamentalista. Principalmente nos últimos 30 anos. Nos anos 70, quando ocorre toda essa crise de crescimento do bloco capitalista, na Europa e nos Estados Unidos, e dessa crise de crescimento no centro surge uma reação conservadora ao final dos anos 70 e início dos anos 80, com, por exemplo, a eleição de Reagan nos Estados Unidos e de Margareth Thatcher nas Inglaterra. Há também a própria revolução islâmica no Irã. Nesse processo de reação conservadora nesse período é que surge o fenômeno do fundamentalismo, no islã político. O fundamentalismo religioso é muito anterior e tem origem nas comunidades protestantes dos Estados Unidos no começo do século XX. E 70 anos depois ele vai se manifestar no seio do islã de uma forma mais violenta. Então, existem vários islãs. Um, esse islã do fanatismo religioso, do fundamentalismo, é um viés dos vários que existem. Icarabe: Como se dá essa resposta ao reacionarismo de Europa e Estados Unidos? Karam: Ela surge na periferia do sistema capitalista, que é onde se inserem os países árabes e islâmicos. Existe a revolução islâmica no Irã, que pode ser considerado um estágio, mesmo a ascensão ao poder do Anwar Sadat no Egito, o aprofundamento da ideologia mais conservadora e do regime monárquico na Arábia Saudita. Tudo isso acontece no final da década de 70 e ao longo dos anos 80. Sem deixar aos islãs uma alternativa - que antes eles tinham ao longo dos anos 40 e 50, com as independências e o final dos mandatos francês e inglês na região -, eles tinham uma alternativa que não era somente a de decidir por um capitalismo liberal, de direita, ou seguir para um aprofundamento da religião como única forma de projeto político econômico. Eles tinham uma alternativa, que era a do secularismo, a laicização política dessas sociedades. Ela foi minada pelos fatores internos, os governos locais, e externos, as potências européias. Então, ao final dos anos 60 e início dos 70, os países islâmicos não vêem outra saída, na não ser o fundamentalismo. Em alguns casos, conseguiram manter um caminho político-ideológico intermediário, que não pende nem para a adoção de um fundamentalismo, mas também não vai para uma ideologia socialista, ou nasserista, ou pan-árabe, como era o projeto de alguns países até o começo dos anos 70. Icarabe: Você acredita que existe a possibilidade de um sistema político laico baseado no islã, que não tenha que recorrer a modelos europeus, para a região? Karam: Acredito que sim, porque o islã no seu início - desde o período clássico, que vai do século VII até o século XII, quando a Europa passava pela Alta Idade Média -, está imbuído de várias discussões políticas, legais e econômicas que permitem a formação de um projeto político. Tanto que volto a dizer, o fundamentalismo é um fenômeno moderno. Na época do período clássico não havia. Poderia haver uma doutrina teológica e filosófica que defendesse uma interpretação mais literal e purista das escrituras do Corão, mas não representava um fundamentalismo que não pode ser confundido com um movimento que tem sua natureza no século XX, com a modernidade. Este surge como uma resposta, e eu diria que o fundamentalismo é uma conseqüência dessa falta de alternativas que se apresentaram às sociedades islâmicas após a falha de projetos socialistas pan-árabes e também liberais. Acredito que essa falha se deve, em parte, à responsabilidade dessas mesmas sociedades islâmicas e seus governos, mas em grande parte à ingerência e uma herança imperialista que ao longo do século XX se instaurou quando essas regiões conseguiram suas independências e não foram respaldadas por projetos políticos consistentes e hoje vivem nessa situação de penúria em que se encontram. O fundamentalismo é conseqüência, em grande medida, dessas falhas desses projetos políticos e sociais como alternativas. Tanto a alternativa econômico-liberal, mais à direita, ou a social-democrata, mais ao centro, como as pan-árabe e nasseristas ou socialistas, mais à esquerda. Icarabe: E como a charge do profeta Muhammad se insere nesse contexto? Karam: A charge é de um desconhecimento histórico quase ridículo. Naquele período, Muhammad, o profeta do islã, nunca foi fundamentalista e nunca defendeu fundamentalismo entre seus companheiros e pessoas convertidas. Sabemos que o profeta foi muito mais um líder político, diplomático e militar importante que congregou, Icarabe: As charges, que são defendidas como expressão da liberdade de imprensa, poderia ser melhor entendida como um fenômeno do orientalismo, de uma demonização do árabe e do islâmico? Karam: A gente sabe, no aspecto teórico, que a academia está dividido em duas correntes, duas escolas históricas, para interpretar o islã. Aquela chamada de orientalista, ou internalista, que diz que todos os problemas das sociedades islâmicas são frutos da sua própria inaptidão em lidar com seus problemas, e aquela externalista, que é mais progressista, que diz que em grande medida os problemas do islã são decorrentes da situação geopolítica, principalmente do final do séc XIX, com o imperialismo francês, britânico e italiano, e que não encontraram depois nos anos 40 e 60, um respaldo, ou uma espécie de cooperação que fosse, por parte dos países colonizadores quando essas regiões se tornaram independentes. A posição orientalista é muito xenófoba e racista e vê o islã como único responsável pelos problemas que atingem as sociedades islâmicas. Icarabe: As questões relacionadas ao Oriente Médio, e especificamente o caso das charges, são retratados exageradamente como uma questão religiosa? Karam: Sim. A questão de fundo não é religiosa, nem nunca foi, ela é política e econômica. Mesmo na Idade Média, quando a gente sabia que a religião tinha um peso muito grande, inclusive no catolicismo ocidental, não se tratava de um problema de religião, mas de política e economia. A situação dessas charges é algo micro que se insere numa questão mais estrutural e de ordem macro, que é a própria demonização que o islã vem sofrendo ao longo dos anos 80 e pós-guerra fria nos anos 90. Icarabe: E como ocorre esse processo de demonização? Karam: Em grande parte isso se origina das reações conservadoras que governos europeus e norte-americanos instauram para se recuperar da crise econômica de crescimento do capitalismo nos anos 70. Isso externamente. Internamente a própria revolução islâmica no Irã, região petrolífera e de recursos naturais. Depois isso se aprofunda ainda mais com a Guerra do Golfo no começo dos anos 90, quando Saddam Hussein, antes aliado, se torna alguém desprezível para os interesses do Ocidente quando invade o Kuwait, que é uma grande fonte de petróleo para os Estados Unidos e Europa, e mesmo o Japão. Daí acontecem os ataques em 11 de setembro. Aí sim, a partir de 2001, é que o islã é demonizado ainda mais. É um problema de fundo político, econômico e social, e não religioso. Veja em que contexto as charges surgem: o Iraque ocupado e em guerra, o Afeganistão ocupado e a questão da Palestina sem resolução. Icarabe: O 11 de setembro é um marco que acirra o problema? Karam: É uma etapa mas em certa medida talvez seja um marco, porque ao longo da década de 80 e até o fim da guerra fria, em 90, já havia a reação conservadora, mas ainda havia o bloco socialista real, o bloco soviético, que representava uma ameaça muito maior e era um problema que devia ser resolvido primeiro. Até que surge naquele período a guerra do Iraque, e talvez essa guerra seja ainda mais representativa da demonização dos povos islâmicos do que até mesmo a revolução de 79. O 11 de setembro acirra ainda mais e aprofunda o problema, só que com um fator novo, que é um neoconservadorismo que surge de uma forma ainda mais violenta que antes, com o governo Bush em marcha, o governo Tony Blair, que a princípio era um governo politicamente e ideologicamente de esquerda , se afasta deste viés político-ideológico. Também a eleição de Ariel Sharon em Israel. Então, na minha visão, o processo no final dos anos 90 e ao longo desses últimos seis anos tem reforçado o período de aprofundamento de políticos de ideologia conservadora e de extrema-direita, tanto nas potências como no interior das sociedades islâmicas, como vimos na eleição do presidente do Irã, o impasse que o governo palestino tem enfrentado depois da morte de Arafat, que antes era mais de esquerda, depois foi para o centro, mas viu que não avançou o processo de paz. O próprio Egito é um regime duro com seus cidadãos. O Marrocos, ainda que com uma espécie de abertura, teve um auge, mas depois se fechou para a liberdade política e social. Vários pontos, tanto no centro do sistema capitalista como na periferia, são políticas de conservadorismo e reacionarismo do governo.