Os árabes na "democracia racial" brasileira

Ter, 11/09/2007 - 00:00
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Icarabe: Como exatamente se transforma a identidade dessas pessoas dentro dessa era neoliberal? Uma coisa que se escuta é que quando os imigrantes chegam, na leva que vem na primeira metade do século XX, eles procuram ‘abrasileirar’ seus filhos. Já a terceira geração, de alguma forma, tenta recuperar essa identidade. Isso faria parte desse contexto que você desenha? Tofik: É uma questão de conjuntura histórica. Não é apenas uma questão da terceira geração, mas que acontece no final do século XX e começo do XXI. Você começa a ver o ressurgimento e a maior visibilidade de identidades étnicas dentro de uma nação. Isso no mundo inteiro. Mas no caso da comunidade árabe no Brasil, a identidade árabe que ganhou mais visibilidade é aquela que tem a ver com a esfera publica. Pode até ocorrer de as pessoas cultivarem essa cultura na esfera privada, da família. Mas, por exemplo, o caso da novela “O Clone” (de 2001). Havia muitos cristãos que não conheciam muçulmanos, mas com essas imagens se gabavam da dança do ventre como um alicerce da cultura árabe, o que sempre foi motivo de risada. O cristão árabe critica o muçulmano dizendo que ele se isola. Outro exemplo acontece com a comida árabe. No meu livro, eu falo um pouco da cadeia de fast-food Habib’s. Isso é único no mundo. A maior rede de fast-food árabe do mundo está no Brasil. E é de um português. Agora, o próprio descendente se orgulha, com toda razão, da culinária árabe. Mas isso tem a ver com contexto. O próprio brasileiro hoje não estranha quando vê comida árabe na rua. Os clubes, como o Homs, o Monte Líbano, o Esporte Clube Sírio, ganharam mais destaque como lugares onde há a comida autêntica árabe. Mas a força de trabalho que estão nesses clubes é a mesma que se vê em outros restaurantes árabes. Então, devido a esse maior reconhecimento, o próprio sócio chama um brasileiro não-árabe e fecham negócio ali mesmo no clube. O brasileiro sente aquela atração de ir para o Monte Líbano porque tem aquele jantar árabe que parece mais autêntico. Para mim não tem esse negócio de autenticidade. É um jogo político. Bom, mas ele vai lá, e enquanto estão jantando, vão fechando negócios. Nesse contexto do mercado, enfatizo essa questão de como a identidade árabe reflete mudanças nacionais. Para mim, o neoliberalismo não é apenas a abertura de mercado, mas a diversificação do mercado. Tentei ver quantos restaurantes tinham na cidade de São Paulo, fora as esfiharias. Hoje em dia, pelo menos na época em que fiz a pesquisa, existem mais de 60 hoje em dia, mas só uns quatro ou cinco que foram fundados nos anos 70. O resto foi fundado dos anos 80 para cá, o que reflete essa novidade. Sempre houve comida árabe. Você ia na 25 de março ou no Monte Líbano Bar e podia saborear a comida árabe. Mas não tinha tanta diversidade, mas digo diversidade entre aspas. Icarabe: Mas então essa intensificação tem, por um lado, um aspecto negativo, pois dentro dessa nova ordem mundial a identidade árabe seria embrulhada e vendida como um produto? Tofik: Sim, é algo embrulhado como um produto. Alguma coisa que se consome no Habib´s ou em um clube árabe. Icarabe: Também se consome o ambiente árabe ... Tofik: Sim. Na verdade, faço um grande elogio à comunidade árabe, pois na verdade o que faço é usar a comunidade árabe aqui no Brasil para fazer uma crítica não tão velada ao tratamento que o árabe recebe nos Estados Unidos. A diferença é marcante. Na verdade, falo que a identidade se identifica no dia-a-dia, pelo menos na esfera pública, onde se vê símbolos e sinais de coisas árabes. Se consome, produz, e se afirma. Icarabe: Que tipo de crítica você faz ao tratamento que árabes e descendentes recebem lá? Tofik: Como exemplo, comparando a Câmara de Comércio daqui com a de lá, pois existe uma por lá, mais nova, do final dos anos 90. A Câmara tentou montar uma relação entre os empresariados árabe e norte-americano, mas os militantes da comunidade árabe criticavam e a imprensa também. Além disso, Colin Powell, na época o secretário de Estado, mencionou a possibilidade de usar o mercado livre como forma de levar a democracia para o mundo árabe. O militante árabe criticava muito essa postura, falava da confluência da Câmara com o projeto do imperialismo norte-americano. A identidade árabe nos Estados Unidos é muito problemática, até para a própria comunidade se afirmar. Quando você mora dentro do Império e tentar afirmar a sua identidade híbrida, você acaba afirmando sua identidade norte-americana, que é o centro da economia mundial, do Império. Uma brincadeira que se faz muito aqui é que o árabe sempre tira o máximo que pode com relação ao dinheiro. Essa brincadeira não faz o menor sentido nos Estados Unidos, se você brincar assim, o pessoal não vai entender. O Riad Younis, médico, foi entrevistado no programa do Jô e explicava como era o tratamento de câncer no pulmão. A ortodoxia médica diz que tem que se deixar vazar do pulmão um liquido por xis dias. Ele descobriu que por ipslon dias era melhor. Aí, o Jô, brincando, perguntou: “Ah, você é descendente de árabe, não?”. “Sim, sou”, respondeu. “Será que é por isso que você quer tirar menos do pulmão?”. O Riad respondeu “não, devido à origem eu deveria tirar mais”. Todo mundo aplaudiu, deu risada, pois não é uma coisa que chama muito a atenção. Jamais aconteceria nos Estados Unidos. Quando entrevistei o Riad, fiz questão de perguntar para ele o que ele achou da brincadeira. Um ativista da comunidade nos Estados Unidos sairia denunciando essa atitude como racismo, mas o Riad respondeu que não, é uma forma de brincar. O que eu descobri na minha pesquisa é que muitos descendentes aceitam, até um certo ponto, a questão da democracia racial, pelo menos refletem a ideologia da democracia racial. Icarabe: Que não haveria preconceito racial no Brasil ... Tofik: O racismo existe, e essa ideologia é mito. O racismo existe, mas o árabe pratica esse discurso. Icarabe: Como você relaciona a ideologia da democracia racial com o neoliberalismo? Tofik: Hoje em dia, a ideologia da democracia racial segue um modelo econômico. O árabe fala que nunca sofreu racismo, e que lá atrás ele não tinha dinheiro, e que o pai ou avô dele era mascate, e que os primeiros que chegaram sofreram, mas aí depois subiram na vida, e que quando o descendente vira doutor, médico, advogado, não sofrem mais. O que eu faço é dizer que para o árabe a ideologia da democracia racial se encaixa nesse modelo neoliberal, pois ele fala do processo do mascate que subiu na vida, sem preconceitos. Os primeiros sofreram, a segunda e a terceira gerações viraram doutor. Isso surge a partir dos anos 90. Já existia o profissional liberal descendente de árabe desde os anos 40, mas o discurso não existia, não se comemorava dessa maneira como se faz hoje em dia. Para provar que não há racismo, eles enfatizam a questão econômica, o que não deixa de ser um fato, mas se torna referência para a história desses árabes. No último capítulo do livro, falo das viagens que o descendente faz para o Líbano e para a Síria. Durante essas viagens, existe o turismo político, um passeio que levava você pelo sul liberado de 2001, em pontos bombardeados por Israel. Esses pontos turísticos queriam justamente deixar um sentimento anti-sionista, levantar essa bandeira. Fiz parte de um passeio turístico desse em 2001, patrocinado pelo governo libanês. Fomos em cerca de 100 pessoas do Brasil. O árabe-brasileiro que vai para lá, e o que me chamou a atenção, é que o jovem entre 16 e 22 anos, em um passeio desse, não engolia essa intenção do governo libanês. Dizia que era uma lavagem cerebral, “a gente que nasceu o Brasil não tem esse costume, esse preconceito com Israel”. Icarabe: Mas esses árabe-brasileiros olhavam para uma outra sociedade, com divisões em outro estágio de intensidade... Tofik: Como em qualquer ponto turístico, tinha uma mesinha onde se vendiam lembrancinhas. Mesmo na prisão que foi usada para torturar os membros da resistência, eram vendidos chaveiros de Hassan Nasrallah, cartões-postais, bonés do Hizbollah. Quando a gente voltou para o ônibus, o guia pediu para que escondêssemos as coisas, pois o ministério da Integração, que hoje pertence ao ministério de Relações Exteriores, promotor do evento, e que era do Amal, podia não gostar. A gente ia encontrar com o presidente Lahoud, que se dava até certo ponto com o Hizbollah, mas eles não queriam criar um ambiente constrangedor. A gente escondeu. Mas esses árabes que foram para lá criticavam esse tipo de passeio dizendo que a gente que nasce no Brasil não tem esse tipo de preconceito entre árabes e judeus. Aqui seria um país de tolerância. Mas nós temos nossa própria lógica de exclusão, do negro, do índio. Icarabe: Você nasceu nos Estados Unidos ... Tofik:Nasci lá, infelizmente (risos). Icarabe: Como é o preconceito? Tofik:É, hoje em dia é impressionante. Nos aeroportos de cidades grandes, todo mundo passa, não há muitos problemas. Seja árabe, paquistanês ou com cara de muçulmano, ninguém liga. Agora, em um aeroporto de cidade interiorana é complicado, te mandam parar. A paranóia do interior é muito maior do que a de cidade grande. Meus pais continuam morando no interior de Nova York. Às vezes, fica caro viajar de avião, então vou de trem. O trem lá é bom e barato. Toda santa vez que se passa perto da fronteira com o Canadá, numa cidade interiorana do estado de Nova York chamada Rochester, tem uma parada em que entram agentes da imigração da fronteira e pedem documentos. De uns dois anos para cá. Inicialmente, o cara entrava no vagão, simplesmente olhava e parava na frente do meu assento. E começava assim: ‘posso te fazer uma pergunta?’. Inicialmente respondia que sim. Ele perguntava se eu era americano, seu eu tinha nascido ali. Eu respondia a mesma coisa sempre, que sim, “nasci aqui, eu sou daqui”. Mas ficava puto da vida porque ele sempre procurava pessoas que não tivessem cara de americano. Aí ele acabava sempre pegando um outro branquelo e fazia a mesma pergunta só para disfarçar que ele não estava sendo preconceituoso. Uma vez dei uma bronca em um agente. Falei “olha, eu não vou responder a nenhuma pergunta que você fizer. Isso é ilegal. Você não pode parar a pessoa porque ela parece árabe”. Pelo menos antes do dia 11 de setembro era ilegal, não se podia parar fulano na rua para pedir identidade. Isso é coisa de regime militar. Falei isso para o cara. Esculhambei o guarda da fronteira no vagão, gritando, no meio de madrugada. Ele gritou alguma coisa de volta e saiu. Isso me mostrou que o cara não tem direito de fato de te parar. Agora, a parte mais assustadora da história é o que a minha irmã fala, que a gente nem sabe se é contra a lei ou não o fato de ele poder fazer isso, te parar numa parada de trem. A gente não sabe hoje em dia quais são os nossos direitos, essa é a parte mais assustadora da história hoje em dia. Antigamente eu achava que eles faziam isso para pegar mais paquistaneses e árabes, mas eles estão fazendo isso para pegar mais latinos. É contra os mexicanos. Icarabe: Tem o problema do muro que eles querem construir na fronteira com o México ... Tofik: Sim, tem o muro. A xenofobia voltou com força. Icarabe: Quem sofre mais? Tofik: Acho que quem sofre mais é mesmo o negro. Mesmo com todo o preconceito depois do 11 de setembro em relação ao árabe e muçulmanos. O racismo contra o negro é o mais ferrenho que existe dentro dos Estados Unidos. Eu moro em Chicago. A cidade com maior segregação dos Estados Unidos é Los Angeles, mas a maior é Chicago. Se você andar de metrô e pegar uma linha para a zona sul, só verá negros no metrô. Em outra direção, para a zona norte, só há brancos. É impressionante a segregação. Tem muita gente que nasce num bairro e nunca vai para zona sul. Icarabe: Isso acontece de certa forma em São Paulo... Tofik: Sim, mas se faz de uma outra forma. Aqui, as pessoas tentam disfarçar.