O Irã sob o chador

Qua, 18/08/2010 - 12:19
Publicado em:

No dia 30 de agosto ocorre, no CineSesc (Rua Augusta, 2075), em São Paulo (SP), o lançamento do livro “O Irã sob o chador” . O evento terá início às 19h30 e contará com sessão de autógrafos das autoras, Adriana Carranca e Marcia Camargos. Haverá ainda a exibição de um curta iraniano seguido de bate-papo com amba

No livro, Adriana e Marcia revelam o caldeirão de contradições de uma nação enigmática, onde a cordialidade do povo resiste como valor num cotidiano de escassas liberdades individuais.

Nos últimos anos, poucos países têm sido objeto de tanto interesse e ao mesmo tempo de tanta incompreensão. O Irã se recusa a encaixar-se nos seus estereótipos. Sua estrutura política não é vertical: o poder é compartilhado entre diversas correntes numa complexa rede de instituições. Seu estrito código de conduta é, em grande medida, apenas aparente, e sua violação, nos espaços privados, mais tolerada do que reprimida. O Irã não é um país árabe, e sim persa, fundado sobre uma das grandes civilizações da Antiguidade, que assimilou e ao mesmo tempo moldou a corrente xiita do islamismo – a partir do casamento de Hussein, neto de Maomé, com uma princesa da Pérsia.

Sobre o livro

Chador  é um tipo de manto iraniano, usado para cobrir o corpo feminino da cabeça aos pés. Só o rosto fica à mostra. Parecido com o hábito das freiras católicas, o traje é obrigatório em mesquitas e outros lugares sagrados, e conta com a preferência das iranianas islâmicas do segmento mais conservador da sociedade. Assim como as formas de suas mulheres, o Irã apresenta-se ao olhar ocidental de maneira enigmática, oculto sob o espesso chador do nosso preconceito e desinformação acerca do Oriente Médio em geral e de cada país da região, em específico.

Em viagens realizadas em momentos e circunstâncias diferentes, as jornalistas Adriana Carranca e Marcia Camargos tiveram a oportunidade de conhecer um país que não cabe na simplificação dos estereótipos. Muito longe de encontrar fanáticos religiosos hostis e minas terrestres a cada esquina, as autoras se depararam com cidades extremamente seguras para turistas, nas quais imperam a honestidade, a cordialidade e a gentileza nas relações. Em contrapartida, paira no ar a crescente insatisfação com o regime teocrático há três décadas no poder.

Concebido e escrito em parceria,  “O Irã Sob o Chador” (Editora Globo) é o resultado da descoberta comum de uma realidade singular, num dos raros lugares do mundo ainda resistentes aos efeitos da globalização. Um cenário de conflitos permanentes entre arcaico e moderno, religioso e secular, opressivo e libertário – e que tem tais contradições capturadas no Caderno de Fotos, que ilustra o livro.

No mesmo país onde mulheres e homens têm de se sentar em partes diferentes do ônibus, por exemplo, circulam táxis nos quais ambos os sexos compartilham o aperto do banco. Alguns desses veículos são, inclusive, dirigidos por mulheres: há até uma cooperativa de taxistas femininas, que tem como clientela tanto as iranianas conservadoras (que não aceitam viajar com homens) como as liberais (que, em companhia feminina, se sentem à vontade para usar roupas um pouco mais ousadas).

Outro contraste verificado pelas autoras: o Twitter e o Facebook estão proibidos no país, o que não impede a existência de 1,4 milhão de usuários e 800 mil contas ativas dessas redes sociais, respectivamente – mesmo com a internet de banda larga restrita a hotéis e centros de convenção. Na China, onde há restrições semelhantes à comunicação virtual mas a população é vinte vezes maior do que a iraniana, o Twitter tem 409 mil perfis e o Facebook, ínfimas 14 mil contas ativas.

Desnudando as camadas do chador que envolve o Irã, Adriana e Marcia revelam uma sociedade pulsante que, à revelia do poder constituído, impulsiona o país. Um lugar que produz uma das mais instigantes cinematografias do mundo, mas que não hesita em usar a censura prévia (ou mesmo a prisão) para intimidar seus cineastas. Uma sociedade de machismo opressivo, no seio da qual emergiu a ativista Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz em 2003. Um caldeirão fervilhante, no qual nacionalismo, juventude e desejo de mudança se mesclam ao deslumbramento com o mundo que está do lado de fora do chador, e que ficou mais próximo com a internet.

Jornalista e mestre em políticas sociais, Adriana Carranca mantém um blog na edição online de O Estado de S.Paulo, dedicado a questões de desenvolvimento global e direitos humanos.
Ganhadora dos prêmios Jabuti e da Academia Paulista de Letras, Marcia Camargos, jornalista com doutorado em história pela USP, é biógrafa de Monteiro Lobato e sócia da Usina de Conteúdo, produtora cultural.

 

Trechos do livro

O aspecto das ruas das cidades

A sensação de volta ao passado permanece. Os carros são velhos, o layout geral é antiquado e o gosto, duvidoso para nossos padrões ocidentais de consumo continuamente exacerbado pela criatividade dos publicitários. O Irã é mesmo outra civilização. Pelas paredes externas dos edifícios, outdoors que dariam arrepios a uma agência de fundo de quintal anunciam bancos, filmes e empreendimentos imobiliários. Efígies dos soldados que tombaram na guerra Irã-Iraque, que durou dez anos, a partir de 1982, homenageiam os mártires imolados no conflito. Grafites contra o imperialismo norte-americano e europeu, palavras de ordem conclamando os cidadãos a lutar contra a nefasta águia de garras afiadas, símbolo dos Estados Unidos e da suposta decadência “ocidental”, somam-se a outros clichês deliciosamente saudosos, que também remetem à Cuba de Fidel Castro.

As fotos dos aiatolás Khomeini e Khamenei marcam presença em toda loja, cinema, hotel, sala de museu ou teatro. Os suportes variam, mas suas figuras presidem sobre a população que escuta um trecho do hino nacional e algumas suras do Alcorão em forma de cânticos, obrigatoriamente, antes de qualquer cerimônia oficial. E os discursos começam sempre com os dizeres: “Be name Khoda”, em nome de Deus...

Comida

O pão é do tipo sírio, mais leve e maior, feito nas padarias espalhadas pelos bairros, e nas quais se pode ver o processo da feitura destes nune sangak. De avental branco e mãos ligeiramente trêmulas devido ao calor constante que enfrentam todos os dias, pressionam a massa antes colocá-la direto sobre pequenas pedras incandescentes no forno de tijolos. Com isso, provocam minúsculas bolhas, tornando ainda mais crocantes os pães, retirados após alguns minutos com uma pá de madeira. 

Conformada com a abstinência compulsória, resta encarar com bom humor as alternativas disponíveis. Há refrigerantes e sucos de romã, além da principal bebida nativa, o dugh, refresco gasoso de leite fermentado por iogurte natural, servido com folhas secas de hortelã triturado, que não agrada ao paladar tupiniquim. É encontrado em qualquer  esquina, junto com outros produtos de primeira necessidade. Mas quem pretende conhecer um hipermercado para ter noção do estilo de vida dos habitantes, vai descobrir que eles não existem no Irã. Ainda estamos nos tempos das vendinhas de esquina, simpáticas e acolhedoras no seu acanhado modo de ser, com prateleiras forradas de tecido, pequena oferta de produtos e apenas um ou dois atendentes para receber o dinheiro e empacotar as compras em sacolas de papel tipo craft. Em compensação, há os irresistíveis bazares, outra verdadeira instituição nacional.

Hejab

Lá fora me aguardava uma das monitoras do festival, com calça jeans apertada por debaixo da veste escura. Os olhos negros de sobrancelhas bem delineadas brilham por detrás do lenço que esconde parte dos cabelos, o pescoço e o colo. Logo eu descobriria que elas fazem de tudo para parecerem modernas e atualizadas dentro das rígidas normas islâmicas. Não é à toa que uma gritante porcentagem de plástica no nariz ocorra neste trecho do globo terrestre. Sem o recurso de ombros, barriga, pernas ou braços à mostra, precisam conquistar o sexo oposto pela expressão do rosto. Como são bonitas! E os homens não ficam para trás.
A casa é geminada de ambos os lados e logo à entrada tiramos os sapatos. Sua esposa, de tez clara e cabelos louros, me recebe com um sorriso. Domina o inglês com perfeição e manda que eu retire o hejab. Faço isso com gosto, livrando-me também da calça por debaixo do vestido. Quase esquecera como é agradável ficar com a roupa comum, sem os apetrechos que tolhem os movimentos e nos deixam o tempo todo, para o bem e para o mal, conscientes da nossa “condição” de mulheres.

Outro desafio para os ditos “ocidentais”, sobretudo as mulheres, é encarar o banheiro turco, com um simples buraco no chão. Tente usá-lo meio agachada, segurando a barra da calça, a veste que vai por cima, a câmera fotográfica e o véu que cisma em cair para  frente, arrastando-se pelo chão respingado... E note que, em lugar de papel higiênico, há uma ducha para a higiene pessoal. Não me perguntem com o que elas se enxugam. De minha parte, aprendi a manter lenços de papel na bolsa. Ninguém terá problema em refazer o estoque, o produto é uma verdadeira mania nacional. No quarto de hotel, onde existe o vaso sanitário convencional, no console dos carros e na mesa dos restaurantes, eles são onipresentes e fazem as vezes do guardanapo, mercadoria inexistente no país.

A simpatia acompanha a beleza física. No meu contato inicial com aquela terra longínqua, eu aprenderia as regras básicas da hospitalidade iraniana. Todos se desdobram para atendê-lo, fazendo com que você se sinta especial o tempo todo sem precisar ser amigo do rei.

 

O Irã sob o chador
Autor: Adriana Carranca e Marcia Camargos
Gênero: reportagem
Editora: Globo
Formato: 13,7 x 20,8 cm
Número de páginas: 240
Preço: a definir
Site: www.globolivros.com.br