"O véu não cobre o pensamento"

Sex, 17/02/2012 - 15:21
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Os protestos no mundo árabe não derrubam só ditaduras. Também desafiam as visões estereotipadas e provam que não há libertação sem a participação das mulheres. 

 

Termômetro da febre democrática, a emergência dos direitos de gênero no Islã abala as certezas do feminismo universalista e convida o Ocidente a despir seus véus.

 

As imagens da Praça Tahir, no Cairo, capital do Egito, mostram inúmeros rostos femininos. O ativismo da mulher nas revoltas do mundo árabe desafia as referências e causa certo desconforto: não era ela oprimida, violentada, anulada e impedida de sair às ruas e de expressar seus desejos por um futuro melhor? “Também, mas não só isso”, explica Soraya Smaili, diretora cultural do Instituto da Cultura Árabe, o Icarabe, em São Paulo. “Existem muitas mulheres árabes cristãs, sunitas, xiitas e menonitas. É um mito pensar que toda mulher árabe é muçulmana e que toda muçulmana é árabe. Outro mito é acreditar que toda mulher muçulmana é oprimida”, adverte, de saída.

As generalizações acontecem, acredita Soraya, porque há um enorme desconhecimento sobre o que chamamos mundo árabe. Essa ampla área geográfico-histórica corresponde aos países do norte da África e da Península Árabica, do Marrocos ao Bahrein, que atraem os países de cultura árabe-islâmica e africana como a Mauritânia, o Sudão e a Somália. Mas nada têm de árabes os países do Golfo Pérsico, de origem turca, persa ou asiática, que adotaram a cultura e a religião islâmicas, como a Turquia, o Irã, o Afeganistão, o Paquistão e a Indonésia. Essa vasta diversidade territorial e cultural impede falar de um “feminismo islâmico” e dificulta as especulações até sobre um “feminismo árabe”. Seria melhor admitir “feminismos árabes”.

Os dados sobre igualdade de gênero revelam a situação das mulheres nos países da região. O relatório de 2010 do Fórum Econômico Mundial, feito com dados de 135 países, coloca Tunísia, Bahrein, Egito e Iêmen nas posições 108, 110, 123 e 135, respectivamente, no que se refere à igualdade entre homens e mulheres. Ou seja, entre os últimos e os mais atrasados. Baseado na participação econômica, no poder político e no acesso à educação e à saúde, o índice reflete as mazelas estruturais que há décadas afastam as mulheres árabes dos centros de decisão.

O que elas querem? Em que essas mulheres acreditam? É o que você vai saber agora.

Feminismo e religião
Não há consenso sobre que caminho seguir para a mulher ser beneficiária dos processos de libertação no mundo árabe. O limbo político e econômico aberto pelos protestos recentes trouxe ao centro do debate as mais antigas discussões sobre os direitos civis. “Como já aconteceu antes, no momento da revolução, quando todos os esforços são necessários, a presença da mulher é aceita e até incentivada”, nota a brasileira Luiza Eluf, procuradora de Justiça do Ministério do Trabalho. “Uma vez que os revoltosos conquistam o poder, as mulheres são afastadas e não ocupam cargos de relevância”, ressalta. Como observadora, Luiza teme a emergência dos grupos fundamentalistas. As primeiras experiências eleitorais na Tunísia e no Egito confirmaram a popularidade dos partidos islâmicos.

Essa percepção encontra eco entre muitas mulheres árabes. “Sinto que temos de escolher entre dois monstros: a ditadura e o extremismo islâmico.” Quem fala é Joumana Haddad, jornalista libanesa, escritora e editora da revista Jasad (Corpo, em árabe), uma das publicações mais desafiadoras e libertárias do seu país. Subvertendo a criação numa família conservadora e católica, ela acredita ser impossível conciliar religião e direitos das mulheres. Definindo-se como pósfeminista, Joumana acredita que a participação da mulher nunca será possível sem que os preceitos patriarcais das três religiões monoteístas sejam totalmente abandonados. Fala com a expressão segura enquanto ajusta o vestido curto e arruma os longos cabelos morenos: “Não posso me dar ao luxo de ser otimista, mas espero que uma mulher concorra às eleições sem cobrir seu rosto com uma flor”, diz, com certo desprezo.

Joumana se refere a Marwa al-Qamash, candidata ao parlamento egípcio que, para não se expor, optou por trocar seu retrato nos panfletos eleitorais pela imagem de uma rosa vermelha. Marwa é do partido fundamentalista El Nur, o segundo mais votado nas eleições de novembro, e não acredita que o niqqab (a vestimenta que deixa os olhos à mostra por uma fresta, diferente da burka, que cobre tudo) a impeça de assumir um papel político no novo Egito. Para ela, basta a flor no panfleto. O embate discursivo que opõe Joumana e Marwa confirma que o “feminismo árabe” deve ser pensado no plural.

“Tenho condição de mostrar às iemenitas que a mulher pode e deve ser parte da mudança social e dinâmica no país”, diz à PLANETA Nadia al-Saqqaf, a primeira mulher do Iêmen a ocupar o cargo máximo em um meio de comunicação. Ela é a editora-chefe do Yemen Times, jornal que exerceu importante papel na cobertura dos protestos que culminaram com a renúncia do presidente Abdullah Salleh em novembro. Nadia defende que o novo governo crie um Ministério da Mulher e adote cotas femininas em cargos eletivos e não eletivos. Quer também que o sistema de ensino seja alterado para evitar distorções históricas e permitir que as meninas se tornem conscientes de seu poder desde a primeira lição.

“Chegará o dia em que a revolução de hoje será estudada nos livros de história. Temos de garantir que as mulheres sejam parte dela e não esquecidas, como sempre acontece”, afirma. No país campeão da desigualdade de gênero, a fala de Nadia é revolucionária. No Iêmen a mulher representa apenas 20% da força de trabalho e nenhuma possui assento no Parlamento. Junto com a também iemenita Tawakul Karman, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2011, a jornalista defende a liberdade religiosa e não acredita que o islamismo contradiga a luta feminista.

“O véu não cobre pensamento”, explica Francirosy Ferreira, antropóloga, professora de psicologia da USP e coordenadora do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes. Nem sempre o véu está diretamente associado a um contexto de opressão. “Por que uma mulher de véu é, necessariamente, mais oprimida que uma mulher de biquíni que se obriga a ter um corpo perfeito?”

   

“Se o feminismo é diverso e plural, o Islã também é diverso e plural”, nota. Para Francirosy, as pautas feministas se adaptam aos contextos históricos e culturais. Por isso mesmo, devem ser entendidas e respeitadas: “É muita prepotência do Ocidente achar que está libertando alguém impondo-lhe o seu próprio valor.”

Não por acaso, a França, país de tradição laica, tornou-se um dos principais laboratórios para esse embate cultural. Depois de aprovar uma lei que proíbe o uso do véu e de multar as mulheres que ousam desafiá-la, o país verá, pela primeira vez, uma muçulmana na corrida eleitoral: Kenza Dridier, mãe solteira de 32 anos, de origem marroquina, que já foi detida várias vezes por usar desafiadoramente seu niqqab, será candidata à Presidência. “Tenho a ambição de servir a todas as mulheres que são objeto de estigmatização ou discriminação social, econômica e política”, disse, ao apresentar sua candidatura. Kenza conseguiu importantes aliados, como o empresário Rachid Nekkaz, de origem argelina, que decidiu financiar a campanha e apoiar o direito ao uso do véu pagando as multas de todas as mulheres detidas.

Linha de frente
As mulheres árabes têm consciência plena dos problemas que incendiaram seus países: o desemprego, a desigualdade e a precariedade dos direitos sociais e políticos. Dada a complexidade da situação, defender o secularismo como condição determinante para o sucesso ou o fracasso dos regimes renascentes pode minguar a discussão sobre a transição e reduzi-la a um embate cultural. A palestina Lila Abu-Lughod, professora de Antropologia e Gênero na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, critica a polarização e a divisão artificial do mundo entre Ocidente e Oriente e defende um estudo aprofundado dos aspectos políticos, históricos e econômicos que reproduzem o patriarcalismo no mundo árabe.

Sai das palavras da palestina Leila Khaled o exemplo prático. Passava da meia-noite em São Paulo quando, depois de uma longa jornada de conferências, ela acendeu um cigarro e começou a falar sobre a experiência feminista na Palestina: “Já conquistamos muitos direitos, mas ainda não somos livres para expressá-los nas leis ou na Constituição, porque ainda não somos independentes”, disse. A liberdade das palestinas, sustenta, passa pelo processo de reconhecimento de seu Estado e pelo fim da ocupação israelense – o que depende de um duro embate político e econômico no âmbito internacional.

Leila, que não usa o véu e defende um Estado laico, foi uma das primeiras mulheres a integrar os movimentos de resistência armada contra Israel. Hoje, mais de 40 anos depois de ter participado do sequestro de um avião para chamar a atenção para sua causa, ocupa uma cadeira no Conselho Nacional Palestino e fala com a propriedade de quem se tornou um símbolo: “O feminismo ocidental é diferente do nosso. Quando falamos sobre nossos direitos, o primeiro é sempre o direito de resistir.”

   

As mulheres sauditas também enfrentam a dificuldade de lutar pela igualdade de gênero quando o poder econômico e geoestratégico está em jogo. A Arábia Saudita é o principal aliado dos Estados Unidos no Oriente Médio e o maior produtor de petróleo do mundo. Para continuar com os superlativos, o país também é considerado o mais restritivo no que tange ao direito das mulheres. Apesar da pressão interna e externa, a abertura democrática vem acontecendo a passos lentíssimos. Pressentindo que as revoltas batiam à porta, o rei Abdullah deu às sauditas o inédito direito de votar e de concorrer às eleições municipais em 2015. Elas agora podem participar do processo eleitoral, mas, paradoxalmente, seguem sem poder dirigir, abrir conta em banco ou viajar sem autorização.

Nem pensar em defender direitos em público. “Não posso falar com nenhum meio de comunicação estrangeiro. Estou sob observação da polícia. Já fui ameaçada indiretamente”, disse à PLANETA, por e-mail, em Riad, Wajeha al-Huwaider, fundadora da Sociedade de Defesa dos Direitos da Mulher na Arábia Saudita. Antes de se despedir, ela ressaltou: “A polícia também advertiu algumas de minhas amigas. Vai ficar muito pior antes de melhorar.”

 Hora de mudar
O protagonismo das mulheres na Arábia Saudita e na Palestina mostra que a pauta de reivindicações do feminismo árabe é tão diversa quanto suas realidades locais. Na Líbia, por exemplo, elas reagiram à declaração de Mustafa Abdeljalil, presidente do Conselho Nacional de Transição, que governa o país desde a queda do ditador Muamar Kadafi. No dia da Declaração de Libertação, Abdeljalil disse que a Líbia poderia reintroduzir a poligamia e desdenhou a presença da mulher no governo. Diante dos protestos, voltou atrás.

Na Tunísia a situação é bem diferente. Desde os anos 1960, a ex-colônia francesa mantém uma legislação avançada com relação aos direitos das mulheres. A poligamia foi banida, o divórcio é igualitário e o aborto é permitido. As mulheres ocupam cerca de dois terços das vagas nas universidades e apenas 3% das jovens entre 15 e 19 anos são casadas, divorciadas ou viúvas (na década de 1960, esse índice chegava a 50%).

Soumaya Ghannouchi, filha de Rachid Ghannouchi, novo líder do país, saiu a público para responder aos temores de que, vencedor das eleições, seu partido revogaria as leis que beneficiam as mulheres. Com o rosto maquiado, envolto em um lenço colorido, afirmou, com segurança, que a poligamia não será permitida e que nenhuma mulher será obrigada a usar o véu.

O Egito também está sob tensa observação. O primeiro ciclo das eleições parlamentares aponta para uma ampla vitória da Irmandade Muçulmana, com 36% dos votos, seguidos por 24% do partido fundamentalista Al-Nur. Os resultados definitivos só devem ser anunciados no fim do longo processo eleitoral, em março de 2012. De acordo com as estimativas do governo de transição, os partidos islâmicos terão 65% da preferência popular. Apesar da possibilidade de votar e de se eleger, teme-se que as leis egípcias, enjá desfavoráveis às mulheres em relação ao direito ao divórcio e à herança, se agravem.

 

O ocidente não aprendeu a ouvir a voz das mulheres árabes

 Direitos do Corão

 Qual é o estatuto da mulher no Islã? “A palavra sagrada é para todos, mas seus ensinamentos são vivenciados de modo diferente em cada lugar. São os contextos sociais que interferem na prática cultural”, diz a antropóloga Francirosy Ferreira. É bom desmistificar algumas suposições. A mutilação genital feminina, por exemplo, acontece em países árabes e de cultura muçulmana e em países de maioria animista e cristã. Mas não está descrita no Corão. “Essas práticas permaneceram não pela religião, mas por causa da tradição de um grupo específico.”

A antropóloga Claudia Voigh Espinola, da Universidade Federal de Santa Catarina, que estudou a violência de gênero no Corão, explica que o Islã, tal como o cristianismo, é um fenômeno de um período particular da história, e qualquer leitura de seus textos deve ser relativizada. Para ela, a interpretação comum a várias escolas de pensamento islâmico assegura direitos à mulher.

No Corão, Eva não é a única responsável pelo pecado original. Ela e Adão erraram e foram perdoados. Sua personalidade é independente e sua natureza não é inferior nem superior. Quanto à educação e instrução, o livro diz que a busca por conhecimento deve ser igual para homens e mulheres. A mulher não poderá crescer intelectualmente se estiver sob estado de submissão. Quanto à liberdade de expressão, sua opinião deve ser respeitada. Há relatos sobre mulheres dando opiniões e questionando Maomé, embora haja restrições quanto à condução da prece e à liderança do Estado.

Com referência à sexualidade, o casamento deve ser desfrutado igualmente pelo homem e pela mulher. O marido tem a obrigação de satisfazê-las sexualmente. Quanto à herança, o Corão diz que a mulher deve receber uma parte enquanto o homem recebe duas, dada a sua obrigação de prover a família financeiramente, dever que a mulher não tem. O livro não recomenda nem impõe a poligamia, mas tolera em casos específicos, quando há comum acordo e o marido pode cuidar de suas esposas de modo igualitário. A Bíblia, no Velho Testamento, também admite a poligamia.

Quanto ao uso do véu, segundo a antropóloga Lila Abu-Lughod, da Universidade de Colúmbia, ele pode ser visto também como defensor do lugar especial da mulher na sociedade islâmica: “A burca, assim como outras formas de cobertura, marca a separação simbólica entre as esferas masculinas e femininas. Ela delimita a associação da mulher com a família e a casa. Isso significa pertencer a uma vida moral na qual as famílias são supremas na organização das comunidades e a casa é associada à santidade da mulher.” Nem todos concordam, mas Lila explica que a vestimenta funciona, como em todas as sociedades, como símbolo de valores compartilhados responsáveis por um sentido de pertencimento.

“Acho que não vai haver retrocesso, mas, se houver, elas vão superar. Democracia é isso. Quem somos nós para dizer o que eles têm de fazer?”, questiona a brasileira Soraya Smaili. De fato, muitas mulheres árabes vêm dando mostras de uma consciência singular, até agora ignorada no Ocidente, apesar de sempre ter existido. Suas estratégias para subverter a ordem, em casa ou na rua, ecoam além das fronteiras culturais.

Um exemplo é o da jovem egípcia Aliaa Maghda El-Mahdy, que postou fotos na internet usando só um par de meias três-quartos e uma rosa vermelha no cabelo. A mesma rosa que simbolizava o recolhimento e o pudor de Marwa al-Qamash significa sensualidade e libertação nos cabelos negros de Aliaa. Para ela, basta a flor no cabelo.

As duas mensagens antagônicas, cheias de simbolismo, separadas por gerações e crenças, escancaram a verdade da diversidade e convidam a descartar a ideia de que as mulheres árabes só terão voz se o Ocidente as entender.

 

*Matéria exibida na Revista Planeta