Artigo: A Palestina não é aqui, nem fica em Israel

Qua, 15/03/2017 - 13:59

 

É sábio calar sobre o que não se conhece. Mas há poucos sábios em circulação.

De modo geral, tenho apreciado muito os textos de Gregorio Duvivier na Folha, normalmente inteligentes e positivamente provocadores.

Mas vejo agora que Duvivier padece de uma cegueira muito específica que acomete inclusive muita gente inteligente. Ele não consegue enxergar a tragédia palestina pelo que ela de fato é. E mais, usando desta vez (A Palestina é aqui, de 13/03) um discurso sério, no tom dos justos e dos sensatos, se deixa arregimentar, talvez sem saber, para a defesa das causas de Israel.

Ele não está sozinho na cegueira e na defesa do indefensável. Para ficarmos apenas com eventos recentes: nos Estados Unidos, durante os Golden Globe e o Oscar, a classe artística dos EUA (composta inclusive por imigrantes) esmerou-se na crítica aos absurdos da nova administração de Trump, apontou cada injustiça anunciada, fazendo prova de sua sensatez e de sua correção política; mas será difícil encontrar entre toda essa boa gente alguém que denuncie a ocupação e o apartheid israelenses.

Duvivier cerca a sua defesa de Israel (que talvez não saiba que está fazendo) com o que constituiria o objeto real de seu artigo: a denúncia da violência, da decadência, da exclusão pela qual ele vive cercado no Rio, e nós todos no resto do Brasil. O seu titulo se pretende retórico e manda o seguinte recado: preocupemo-nos com a tragédia em que estamos inseridos.

É interessante, no entanto – ou não é?! – que para descrever a tragédia tenha usado o nome da Palestina; ele não disse “Israel é aqui”.

Ele conta que foi a Israel e à Palestina a convite da Universidade Hebraica de Jerusalém. Será que ele não percebeu que isto só é possível porque Israel ocupa a Palestina? Ou ele imagina que poderia ser convidado para visitar a Palestina e Israel pela Universidade de Al Quds?

Ele nos derrama o discurso padrão de condenar os fundamentalistas dos dois lados – passando pela obrigatória menção negativa ao Netanyahu, uma espécie de credencial do bom senso. Mas não consegue lembrar que é descabida a equiparação entre o ocupante e o ocupado, entre o opressor e o oprimido.

Faz, sem confessá-lo, uma defesa de si mesmo diante das críticas que recebeu por ter feito essa visita. E o faz condenando o movimento de boicote a Israel que, segundo ele, prejudica os árabes israelenses, os negros israelenses e os drusos, ou seja, os excluídos, aqueles para quem o Estado Judeu não se pensa como sendo o lar natural. A inocência do argumento é chocante. E, não fosse por outra coisa, faltou pensar nos palestinos, ou não?

Mas o pecado maior de Duvivier nesse texto é outro. Ele afirma saber algo que outros ignoram ou fingem ignorar sobre os palestinos: que são raros entre eles os que apóiam o boicote e – pasmem os que pensavam saber algo sobre a Palestina! – mais raros ainda os que apóiam o Hamas.

Meu rapaz, de onde você tira suas estatísticas? Ou melhor, com quem será que andou conversando nessa viagem que lhe revelou tanto?

O fechamento do texto deve nos revelar a nós, seus leitores, muito mais: Israel é comparado à nossa polícia e o Hamas ao narcotráfico. Isto, junto com a ilustração do texto (uma muçulmana de burca) é material para longas discussões sobre comunicação subliminar.

Enfim, mais do que mera cegueira, Duvivier se permitiu um apagamento da própria inteligência. Não tendo tido a sabedoria de calar sobre o que não conhecia, fez pior, colocou sua voz a serviço de uma injustiça.

E quando ele nos falar de novo, com agudeza e inteligência, sobre outras injustiças, sua voz terá perdido força porque, afinal, o que pode nos contar um homem que esteve no coração da injustiça e da ocupação e não as viu.

 

Salem Nasser é professor de Direito da FGV e ex-presidente do ICArabe.

Artigo publicado originalmente no site da Revista Brasileiros.