A percepção do outro, uma reflexão do seminário “Diálogo das Civilizações”

Sex, 13/12/2013 - 10:19
Perceber o outro e quebrar o estranhamento é o passo mais importante para estabelecer o diálogo. A premissa permeou os debates do seminário “Diálogo das Civilizações”, evento que teve apoio do ICArabe e contou com conferencistas nas áreas de literatura, história, filosofia e artes se reunirão para refletir sobre o encontro das tradições da cultura cristã, árabe e judaica da Idade Média com o mundo contemporâneo e sobre o cosmopolitismo do espírito como um bem coletivo e direito de todos. Da programação participaram estudiosos como o jornalista e escritor Gilles Lapouge, o historiador Youssef Rahme, presidente do Instituto do Cedro, no Líbano, o filósofo americano Edward Alam, o doutor em História das Religiões pela Universidade de Chicago, Lawrence Sullivan, o diplomata francês Anis Nacrour e o professor livre-docente da USP em Literatura Árabe, Mamede Mustafa Jarouche, entre outros.

Em sua palestra no primeiro dia do evento, na Biblioteca Mário de Andrade, o presidente do ICArabe, Salem Nasser, explicou que, como estudioso e professor de Direito Internacional, pode, através do Direito, fazer um exercício de reflexão sobre a importância de entendermos cada sociedade dentro do contexto cultural e histórico em que esta está inserida. “Em um trabalho que venho realizando com um colega, fomos percebendo o quanto o Direito está inserido num banho social e histórico. Quando o Direito conversa menos com a tradição social em que está inserido, ele é menos operante, ele é ignorado pela sociedade. A estrutura social se impõe ao Direito, este é quase que ignorado, o Direito formal criado pelo Estado é, em grande medida, ignorado no funcionamento real da sociedade, por exemplo, numa estrutura autoritária, numa autoridade pessoal, na questão do machismo.”

Mas em diversas sociedades, em diversos banhos culturais e históricos, como afirma Nasser, há uma outra tensão possível, que se estabelece  entre o código individual e o código coletivo. “Talvez seja extremamente significativo falar disso, talvez possa dizer que há sociedades em que a unidade fundamental é o ser humano, o ser individual e há outras em que a sociedade só se entende como coletivo, que o coletivo se impõe ao individual. Isso é muito fácil de sentir, há referências disso na China, em que as pessoas sacrificam suas vidas pessoais, não só pelo coletivo, mas pelas gerações futuras. No mundo árabe muçulmano isso é vivido muito claramente, a força do código coletivo como sendo primordial, enquanto que pra nós isso causa estranhamento.”

O professor abordou os sistemas jurídicos que em princípio colocam a ênfase nos direitos e as sociedades em que o direito cobre primeiro a linguagem dos deveres. E ressaltou a importância de entender as diferentes sociedades e suas características para a compreensão do outro, a partir do exemplo da sala de aula.  “Era preciso uma certa flexibilidade de pensamento para admitir essas diferenças e, sobretudo, para fazer com que nossos alunos admitissem aquilo como possível, como Direito, como o nosso Direito, reconhecessem com igual valor esses vários modos diferentes de conceber a regulação da vida, ainda que pra nós causasse um grande estranhamento.”

Nasser ressaltou ainda as questões que emergiram a partir das revoluções do mundo árabe, sobre a possibilidade de democracia, se os direitos humanos são pensados pelos árabes como no ocidente, a questão da liberdade e sobre qual liberdade se está falando, se sobre uma autonomia coletiva, dos coletivos árabes, ou uma autonomia individual, se estão se revoltando porque estão fora do sistema e querem entrar no mundo do consumo ou se é justamente o contrário, eles se insurgem contra o sistema capitalista liberal e querem algo diferente. “Acho que há uma vontade muito grande de autonomia, mas é uma autonomia pensada como autonomia dos coletivos árabes, enquanto coletivos, serem mestres dos seus destinos e não tão marcadamente individualista, como muita gente ficou a imaginar. E é claro que fica também pergunta sobre o lugar do sagrado nessas sociedades e a relação que o sagrado teria com o político. A primeira tarefa seria perceber a diversidade de linguagens e tentar estabelecer o diálogo a partir dali, tentar escapar um pouco da armadilha do falso diálogo. Enquanto eu pensava sobre as revoltas, sobre o Islã, a  tarefa primordial sempre foi percebida por mim como a de quebrar o estranhamento. Devemos reconhecer no outro alguém que, na essência, é igual.”

Finalizando sua palestra, Salem Nasser refletiu sobre a questão da identidade e sobre o papel do ICArabe. “Nossa missão é ajudar a pensar a cultura árabe como parte da cultura brasileira e universal.”

Líbano em destaque

No segundo dia do seminário, realizado na tenda Cultural Ortega y Gasset, na USP, foram apresentados os temas “História mundial no contexto do Líbano: reflexões no Diálogo das civilizações e culturas e “Árvores sagradas no Líbano e nas culturas indígenas no Brasil”, expostos, respectivamente, por Youssef Rahme, coordenador do Programa SAIL e membro do Comitê Diálogo das Civilizações e Culturas no Líbano, e Lawrence E. Sullivan, presidente emérito e membro sênior do Instituto Fetzer. Além destes temas, os conferencistas retomaram assuntos debatidos no dia anterior, na Biblioteca Mario de Andrade, como as questões da liberdade e da democracia na atualidade e a relação com o outro.

Sullivan ressaltou a importância do Líbano como centro de cultura para a história da humanidade. “É um legado espiritual rico e ainda vibrante nos dias atuais. São 18 grupos religiosos coexistindo lado a lado no país”.  

Salem Nasser falou sobre a dualidade que envolve o Líbano, sua realidade e seus símbolos. “O símbolo é algo que a gente constrói e em parte esse diálogo é uma tentativa de reconstrução do símbolo ou dar novos significados a eles. O Líbano é terra de diversidade, de uma historia riquíssima de convivência dos grupos, mas com um grande potencial de desagregação.  A diversidade é vivida ao mesmo tempo em que as fronteiras são rigidamente impostas pelo sistema político, dentro desta mesma sociedade. A guerra civil tornou-se guerras sectárias abertas entre vários grupos religiosos.”

Para o diplomata francês, Anis Nacrour, é preciso haver menos debates intelectuais e teóricos e mais pragmatismo em relação às interferências. Neste contexto, afirmou ele, cabe a cada um que faz o papel de mediador dos povos, decidir até onde pode ir, como o intuito de preservar a liberdade e ao mesmo tempo ser o link para a intervenção. “Temos de construir uma relação de confiança individual ou em grupo, dentro de uma experiência real. Há riscos imediatos, práticos, no sentido de que não podemos brincar com a vida. Precisamos ser cuidadosos e acreditar que estamos tentando realizar algo”.

Denise Milan, uma das coordenadoras do seminário, ressaltou o objetivo do ciclo de debates na cidade de São Paulo, em relação ao Líbano e às pessoas ligadas àquela origem, que é “a possibilidade de coexistência e de sobrevivência e como a conferência pode reverberar de maneira positiva naquela terra que tem uma história tão grandiosa, milenar e com tantas civilizações coexistindo”.

A iniciativa de reflexão e troca de experiências culturais nasceu no Líbano, mas, em sua primeira versão, definiu-se que aconteceria em São Paulo, como explica Denise. Segundo a escultora, “São Paulo, como definiu o poeta Haroldo de Campos, é urbe multilíngue, abrigo de muitas civilizações. Aqui se convive.”