Contra a solidariedade que precisamos, Jean Wyllys e a “esquerda” sionista

Qui, 14/01/2016 - 14:54
“Quando cidadãos em uma posição privilegiada formulam e desenham uma solução e a impõem a um povo colonizado e sob ocupação como a única solução viável e o ‘único passo construtivo restante’, isso não é solidariedade, mas sim outra forma de ocupação.” A afirmação é da palestina Budour Youssef Hassan em seu artigo intitulado “A falsa solidariedade da esquerda sionista”. O brilhante texto refere-se à realização de uma marcha em Jerusalém em 15 de julho de 2011 cujos slogans eram “luta compartilhada” e “solidariedade” contra a ocupação dos territórios palestinos – obviamente nenhuma menção ao direito legítimo de retorno dos milhares de refugiados às terras de onde vem sendo expulsos há mais de 67 anos ou sobre o racismo inclusive contra os palestinos que vivem onde hoje é Israel (criado em 1948, mediante limpeza étnica, a nakba – catástrofe palestina). Para Budour Hassan, “uma marcha palestino-sionista não oferece uma oportunidade para se estabelecer um diálogo produtivo, mas dá aos sionistas uma chance de marginalizar vozes palestinas sobre como devem resistir e o que devem aceitar”. Ela acrescenta: “Assim, essas manifestações que ostensivamente exigem igualdade, na realidade, visam manter o privilégio dos israelenses.” Por conseguinte, condenam, enfatiza Budour Hassan, “os cidadãos palestinos em Israel à inferioridade perpétua e discriminação”. A ativista conclui: “A solidariedade não é medida por números; não é sobre quantas pessoas vieram a uma manifestação pró-Palestina. Trata-se de porque essas pessoas vieram. Lutar ao lado de cinquenta israelenses realmente comprometidos com a causa palestina é, portanto, muito mais importante e valioso do que marchar na sombra de milhares de israelenses que pensam que a Palestina é apenas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.”

Convocada por sionistas “de esquerda”, a marcha contou com algumas poucas presenças palestinas – a maioria declarara, como aponta o artigo em questão, que via em sua participação a oportunidade de obter a tão negada visibilidade na tradicional imprensa internacional. Ou seja, mesmo conscientes de que havia diferenças fundamentais e vale acrescentar – irreconciliáveis –, decidiram aproveitar uma suposta oportunidade de se fazer ver e ouvir. A despeito da atitude compreensível diante do regime de apartheid imposto cotidianamente por Israel aos palestinos, certamente um equívoco, como identifica a ativista palestina: “Essas manifestações são dominadas por sionistas liberais, e as vozes palestinas, as quais supostamente querem se fazer ouvir, são inaudíveis em meio a um coro de cânticos em língua hebraica sobre a paz e coexistência. Mesmo os slogans e os cartazes que foram levantados durante as manifestações foram decididos de antemão pelos organizadores israelenses, transformando os protestos em uma rotina entediante, dolorosamente previsível e elitista.” Em outra parte do artigo, ela revela o grande risco de que esses grupos sequestrem o crescente movimento popular de resistência sob o manto da solidariedade e da coexistência. E vai além: “A solidariedade não é nem um ato de caridade, nem um festival de discursos arrogantes e retórica vazia. É uma obrigação moral que deve ser realizada com todo o empenho, firme e incondicional. (...) As tentativas de explorar o sofrimento palestino para fins políticos e de transformar a causa palestina a partir de uma luta pelos direitos humanos, justiça, liberdade e igualdade em um desfile de independência e clichês falsos devem ser combatidas.”

A essa “solidariedade” é que tem feito coro o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), desde o início de sua viagem para participar de conferência na Universidade Hebraica de Jerusalém. Sua atitude lembra a de movimentos que seguem a lógica do que vem sendo chamado de feminismo colonial, fundamentado na falsa dicotomia Oriente-Ocidente para ditar regras de comportamentos às árabes e às muçulmanas e, portanto, em ideias que mantêm o colonialismo e servem ao imperialismo. Entre essas, as de que as ditas “ocidentais” seriam a civilização a ser levada àqueles povos atrasados. É esse pensamento que demonstra Jean Wyllys quando afirma que não poderia ir a algumas cidades palestinas ou a países árabes vizinhos porque, como homossexual, seria morto. Um discurso que destila o preconceito que ele diz combater e revela o desconhecimento que se nega a ter humildade em reconhecer.

“Pombas da paz”

Quando o deputado reproduz a ideia de um diálogo possível, em contraposição à campanha central de solidariedade ao povo palestino – um chamado amplo dessa sociedade feito em 2005 ao mundo –, ignora a realidade no terreno e a história. Com a autoridade de quem luta por justas causas democráticas, presta um desserviço à causa palestina. Confunde a fundamental solidariedade internacional, ao falar em “esquerda” sionista como possível interlocutora e trazer questionamentos à eficácia da campanha BDS.

Em primeiro lugar, é preciso entender de que interlocutor possível e esquerda Jean Wyllys fala. “Na gíria israelense local e no discurso político utilizado pelos meios de comunicação e pela comunidade acadêmica, o ‘campo da paz’ em Israel é a ‘esquerda’. Noutras partes do mundo, tal significaria necessariamente uma plataforma social-democrática ou socialista, ou pelo menos uma preocupação acentuada com os grupos social e economicamente desfavorecidos numa dada sociedade. O campo da paz em Israel tem se concentrado inteiramente nas manobras diplomáticas desde a guerra de 1973, um jogo que tem pouca relevância para um número crescente de grupos”, ensina o historiador israelense Ilan Pappe em “História da Palestina moderna”.

Em resenha sobre a publicação “Falsos profetas da paz”, de Tikva Honig-Parnass, o Ijan (Rede Internacional de Judeus Antissionistas) demonstra que historicamente a “esquerda” sionista esteve tão alinhada com o projeto de colonização da Palestina quanto a direita. “Como esse livro mostra, desde antes da fundação do Estado de Israel, a esquerda sionista falou demasiadas vezes a língua do universalismo, enquanto ajudava a criar e manter sistemas jurídicos, governos e o aparato militar que permitiram a colonização de terras palestinas.” 

A raiz dessa esquerda está no chamado “sionismo trabalhista”, constituído ao início da colonização, em fins do século XIX e início do XX. Seus membros reivindicavam a aspiração de princípios socialistas e cultivaram, como informa o texto do Ijan, deliberadamente essa falsa ideia. Os diários dos trabalhistas à época demonstram seu intuito não declarado: assegurar a “transferência” dos habitantes nativos (árabes não judeus em sua maioria) para fora de suas terras e a imigração de judeus vindos da Europa para colonizar a Palestina – um eufemismo para limpeza étnica. “Em um de seus momentos mais francos, David Ben Gurion, principal liderança desse grupo e chefe do movimento operário sionista (que se tornaria primeiro-ministro de Israel em 1948), confessou em 1922 que ‘a única grande preocupação que domina nosso pensamento e atividade é a conquista da terra, através da imigração em massa (aliá). Todo o resto é apenas uma fraseologia’.” O artigo cita ainda outra observação de Honig-Parnass: "No 20º Congresso Sionista, em 1937, Ben Gurion defendeu a limpeza étnica da Palestina (...) para abrir caminho à criação de um estado judeu." 

Independentemente de se autodenominar de “esquerda”, de “centro” ou de “direita”, o sionismo visava a conquista da terra e do trabalho, que seria exclusivo a judeus. Para tanto, a central sindical israelense Histadrut – ainda existente e alicerce do estado colonial, proprietária de empresas que exploram palestinos – teve papel central, e seu fortalecimento é defendido por sionistas de “esquerda”. Em outras palavras, a diferença entre os trabalhistas e os revisionistas (como Netanyahu) é que os últimos eram – e continuam a ser – mais francos. 

O único partido hoje que se autodenomina sionista de esquerda é o Meretz, criado nos anos 1990. Como ensina Ilan Pappe em “A história moderna da Palestina”, o novo grupo de “pombas pragmáticas” surgiu da fusão do “movimento de direitos civis de Shulamit Aloni, um partido liberal da linha dura chamado Shinui (‘mudança’) e o partido socialista Mapam”. O autor acrescenta: “Pragmatismo nesse caso significava uma veneração tipicamente israelita de segurança e dissuasão, não um juízo de valor sobre a paz como conceito preferido, nem simpatia pelo problema do outro lado no conflito, nem reconhecimento do seu próprio papel na criação do problema.”

A “esquerda” sionista apoiou a invasão de Israel ao Líbano em 2006 e ofensivas subsequentes em Gaza, à exceção da operação terrestre em 2014. Sua alegação é que não abrem mão do direito de “defesa” de Israel. É o que conta Honig-Parnass em artigo publicado no The Palestine Chronicle. Durante o massacre em Gaza há 1,5 ano, informa a autora, o Meretz recusou-se a participar de manifestação conjunta com árabes-palestinos contra a ofensiva e pelo fim do cerco a Gaza, porque questionava esse “direito”. Em seu artigo, Honig-Parnass cita declaração de uma liderança do Meretz, Haim Orom, a respeito: “Nossa posição é essencialmente diferente do denominador comum daqueles grupos que organizaram a manifestação: Meretz apoia a operação em Gaza. Esses grupos não aceitam o direito básico de autodefesa do Estado de Israel, o que nos apoiamos. A massiva maioria do partido votou pela operação e por uma resolução em oposição ao ato terrestre.”

Arvorando-se a favor da paz, a “esquerda” sionista tenta apagar ou justificar a nakba. Racionaliza a afirmação da natureza democrática de um estado judeu e defende a lógica de “separados, mas iguais”. Essa “solução”, de dois estados, tornou-se inviável diante da expansão contínua da colonização, cuja face mais agressiva são os assentamentos – os quais não só não cessaram durante os sucessivos governos trabalhistas (no poder inclusive em 1967, quando Israel ocupou o restante da Palestina), como foram impulsionados por eles. Parte da esquerda mundial defende essa solução, mas um número crescente tem percebido sua impossibilidade e reconhecido que é preciso lutar por um estado único, laico e democrático, com direitos iguais a todos que queiram viver em paz com os palestinos.

Hoje, pensar nessa proposta seria semelhante a legitimar o regime institucionalizado de apartheid, com um estado dividido em bantustões, sem qualquer autonomia, em menos de 20% do território histórico da Palestina. Se essa “solução” hoje está enterrada, como reconhecem especialistas no tema, desde sempre é injusta, por não contemplar a totalidade do povo palestino, mas somente os que residem na Cisjordânia e Gaza - a maioria não vive ali, mas fora de suas terras, e há ainda 1,5 milhão no que é hoje Israel, considerados cidadãos de segunda classe.

Negociações e Oslo

Defendidas e impulsionadas pela “esquerda” sionista, as inúmeras negociações fracassaram não à toa: em nenhuma, a pretensão era pôr fim à colonização de terras e assegurar justiça aos palestinos. Como escreve Waldo Mermelstein em seu artigo intitulado “Turnê de Jean Wyllys por Israel foi um desastre para a causa palestina”, a oferta generosa denominada Iniciativa de Genebra, de 2005, era de pouco mais do que “as já reduzidas propostas de Clinton e Ehud Barak em 2001. Retorno simbólico de poucos milhares de refugiados, manutenção das colônias com a permuta de territórios entre essas e as regiões em que os palestinos são majoritários nas fronteiras de 1948.”

Os acordos de Oslo firmados em 1993, mediante a rendição da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) a Israel, aprofundaram o apartheid e a ocupação. Segundo a jornalista Naomi Klein denuncia em seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre”, entre aquele ano e 2000, o número de colonos israelenses dobrou.

Como demonstra ela, Oslo foi um ponto de virada numa política que sempre teve na sua base a limpeza étnica dos palestinos. De 1948 até então, havia certa interdependência econômica, a qual foi interrompida. “Todos os dias, cerca de 150 mil palestinos deixavam suas casas em Gaza e na Cisjordânia para limpar as ruas e construir as estradas em Israel, ao mesmo tempo em que agricultores e comerciantes enchiam caminhões com produtos para vender em Israel e em outras partes do território”, aponta Klein na obra. Após os acordos de 1993, o estado judeu se fechou a essa mão de obra, que desafiava o projeto sionista de exclusão dessa população. Simultaneamente, Israel passou a se apresentar, nas palavras da jornalista, “como uma espécie de shopping center de tecnologias de segurança nacional”. Em seu livro, a autora afirma que, ao final de 2006, ano da invasão de Israel ao Líbano, a economia do estado sionista, baseada fortemente na exportação militar, expandiu-se vertiginosamente (8%), ao mesmo tempo em que se acentuou a desigualdade dentro da própria sociedade israelense e as taxas de pobreza nos territórios palestinos alcançaram índices alarmantes (70%).

Apartheid e a justeza do BDS

Diante de uma economia a solidificar o regime de apartheid, o contraponto veio sob a forma do chamado da sociedade civil palestina por BDS em 2005. Suas demandas são: o fim imediato da ocupação militar e colonização de terras árabes e a derrubada do muro de segregação, que vem sendo construído na Cisjordânia desde 2002 e divide terras, famílias e impede a livre circulação; a garantia de igualdade de direitos civis a todos os habitantes do território histórico da Palestina, independentemente de religião ou etnia; e o respeito ao direito de retorno dos refugiados palestinos às suas terras e propriedades.

Em diversas partes do globo a campanha de BDS tem se intensificado. Na Europa, governos como o da Noruega desinvestiram em contratos com empresas israelenses. Cidadãos comuns recusam-se a comprar produtos oriundos da potência ocupante, sindicatos e intelectuais têm se engajado nessa luta, bem como universidades têm cancelado convênios de cooperação com instituições que mantém e legitimam o regime de segregação. Netanyahu estimou a perda de bilhões de dólares com o BDS – e o Parlamento israelense aprovou uma lei que proíbe os residentes em Israel de endossá-lo e criminaliza o boicote. A eficácia da campanha tem levado sionistas a desqualificarem-na e considerá-la uma ameaça. A “esquerda” segue nessa direção. Amplamente utilizados por Jean Wyllys, argumentos como o de que o BDS visaria indivíduos e impediria o possível “diálogo” são uma forma de enfraquecer a principal ação de solidariedade internacional ao povo palestino.

O boicote acadêmico é outra linha de frente nessa luta. Entre seus adeptos estão a própria Naomi Klein e o cantor Roger Waters. Conforme escreve o ativista Omar Barghouti em “BDS – Boycott, divestment, sanctions, the global struggle for palestinian rights”, nesse sentido, o chamado palestino reivindica: cessar qualquer forma de cooperação acadêmica e cultural, colaboração ou projetos com instituições israelenses; suspender todas as formas de fundos e subsídios a essas e ‘desinvestir’ nelas; trabalhar para condenar as políticas de Israel e pressionar pela adoção de resoluções nesse sentido; apoiar instituições acadêmicas e culturais palestinas sem contrapartida em relação ao estado sionista. 

Como afirmou Indra Habash em artigo de sua autoria sobre o tema, as instituições israelenses têm funcionado “como instrumento facilitador e normalizador da situação de ilegalidade das colônias israelenses, da construção do muro de separação e dos crimes cometidos contra os palestinos”. Além de se dar em uma das universidades que não foge à regra  e ainda tem parte de seu campus construído em território ocupado – como aponta carta da Frente em Defesa do Povo Palestino a Jean Wyllys (leia em http://goo.gl/ER08Uw) –, a conferência e a viagem de Jean Wyllys foram um exemplo dessa “normalização”, a partir do uso de causas democráticas justas para manter o projeto colonial.

De encontro a isso, a campanha por BDS a Israel é tarefa urgente e precisa ser elevada ao topo da lista da solidariedade internacional pela Palestina. À frente de seu tempo, diferentemente de Jean Wyllys, o educador Paulo Freire recusou convite para participar de conferência em universidade israelense sobre “diálogo”, por entender que, diante da ocupação, parte dos interlocutores não seria ouvida. A propostas de “diálogo” que ousem a paz dos cemitérios, essa é lição a ser aprendida.