Debate traça plano de pressão política para o Estado Brasileiro em solidariedade ao povo palestino

Qui, 09/12/2010 - 13:17
No dia 4 dezembro, o Núcleo de Estudos Edward Said do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe), em parceria com a Oboré Projetos Especiais em Comunicações e Artes e a Matilha Cultural, realizou um debate para discutir a questão palestina. A atividade compôs a programação da Semana do Povo Palestino, organizada pelas entidades, que envolveu também, entre os dias 3 e 5, a exibição dos documentários Nós e os outros, de Emmanuele Hamon, e Ponto de encontro, de Júlia Bacha e Ronit Avni.

O debate ocorreu às 19h, no Espaço Matilha Cultural, após a projeção dos dois filmes e teve como integrantes da mesa a jornalista Soraya Misleh, membro da Ciranda Internacional da Informação Independente e do Movimento Palestina para Tod@s e diretora de Imprensa e Divulgação do ICArabe; Abdel Latif Hasan Abdel Latif, palestino nascido em Betlehem, e o mediador Francisco Miraglia, professor titular de matemática da Universidade São Paulo, vice-presidente regional do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e coordenador do Núcleo de Estudos Edward Said do ICArabe. Cerca de 35 pessoas compuseram a plateia.

Para dar início à atividade, Abdel contou a história do início do conflito, no começo do século XIX, entre os sionistas recém-chegados e os árabes que já viviam na Palestina há pelo menos 5 mil anos. Segundo ele, os sionistas eram um grupo de fanáticos, minoritário entre os judeus na Europa, “e o que ocorreu é que houve um encontro dos interesses imperialistas da Grã-Bretanha com os políticos dos sionistas, travestidos em argumentos religiosos”, explicou. Isso porque os britânicos tinham enorme interesse em estabelecer uma base militar no Oriente Médio em função do petróleo e pelo fato de a região da Palestina ser um ponto de encontro dos continentes africano, asiático e europeu. “Desde o início, os sionistas fundamentaram seu estabelecimento na Palestina a partir de uma argumentação racista, de que o povo judeu seria a civilização ocidental contra a barbárie árabe. Já para as potências européias, era muito lucrativo financiar a instauração de Israel, uma vez que haveria ali um povo dependente e, portanto, aliado, hostil aos povos locais, que pudesse defender os interesses imperialistas na região”, esclareceu. Por outro lado, disse Abdel, os judeus eram considerados orientais na Europa e por isso sofriam tanto preconceito e eram perseguidos.

Abdel Latif Hasan Abdel Latif, palestino nascido em BetlehemNa época da partilha do território palestino, feita pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947, os judeus compunham apenas um terço da população da região, mas ganharam 56% das terras. “Vale dizer que, até então, todas as religiões, incluindo muçulmanos, cristãos, judeus, entre outros, conviviam em completa paz na região”, salientou Abdel.

O palestino contou ainda que uma das táticas da Grã-Bretanha e dos sionistas para escolher a Palestina como local para a criação de Israel foi a invenção e divulgação do argumento de que não existia gente na Palestina, de que ninguém vivia naquelas terras. Por isso, na ocasião da divisão, a população local sequer foi consultada, visto que não era considerada um povo.

“A política israelense sempre foi construída no sentido de eliminar o povo palestino e apagar qualquer vestígio da existência dele, destruir a memória. Uma prova disso é a vila do meu pai, destruída em 1948, e sobre a qual foi construído um parque nacional. E essa tática continua”, contou Soraya, que é palestino-brasileira e visitou a terra de seus descendentes pela primeira vez em outubro como participante do Fórum Mundial de Educação que aconteceu na Palestina. Segundo ela, outras formas de extermínio e expulsão se dão por meio dos assentamentos judaicos em área palestina; pela construção de um muro ilegal e monstruoso por Israel, que divide aldeias, separa famílias e rouba dos palestinos o direito de ir e vir em sua própria terra, impedindo o acesso a escolas, a locais de trabalho e a hospitais; por meio da humilhação nos checkpoints; da dificuldade em obterem recursos para educação e saúde etc. “A intenção é minar as possibilidades de sobrevivência, dificultar a resistência, tornar a vida insuportável, inviável, de forma que o povo deixe a terra. Mas os palestinos não vão deixar, continuarão resistindo, sempre”, garantiu a jornalista.

Soraya contou que quando seu pai foi expulso de sua aldeia, viviam nela 2 mil pessoas e ele tinha apenas 13 anos. No Brasil, não quis se naturalizar e não pode, assim, voltar à Palestina. Os familiares que permaneceram, até hoje, são impedidos de ir ao local onde nasceram. “Em muitos locais os sionistas estabeleceram parques afirmando que eram áreas vazias, quando na verdade eram habitados”, disse. Para a jornalista, a ideologia que justifica a forma como os os palestinos são tratados fundamenta-se no não reconhecimento do outro como um semelhante, na sua desumanização.

Outro fato destacado por Soraya para exemplificar a forma de ação dos sionistas para a expulsão dos palestinos é a situação atual de um bairro de Jerusalém Oriental, chamado Silwan, onde casas de árabes estão sendo destruídas arbitrariamente com a justificativa de construção de um parque em homenagem ao Rei Davi, que teria vivido na área há 4 mil anos. “São residências que estão lá desde o século XIX. As demolições vão atingir cerca de 1.500 pessoas e as que têm resistido são presas, inclusive crianças.” Apesar da situação dramática, nenhuma informação sobre Silwan é divulgada. “Ninguém sabe que o bairro existe e isso está totalmente ligado ao controle que Israel e os Estados Unidos impõem sobre o fluxo de informações”, denunciou ela. Hoje, há 770 mil refugiados vivendo em 19 campos espalhados pela Cisjordânia.

Soraya MislehDe acordo com a jornalista, os colonos judeus – habitantes de assentamentos criados por Israel a partir de invasões ilegais em áreas definidas pela ONU como palestinas – são os mais agressivos. “Eles chegam a bater em palestinos, ameaçar, xingar, jogar óleo e água quente, entre outras violências, tudo para tornar a vida insustentável, para ver se saem de lá.” A ideia, segundo a jornalista, é fazer com que os árabes pensem que é impossível reverter a situação, percam as esperanças e abandonem suas terras. "Israel justifica suas ações como defesa e resistência. Resistência a quê, se foram eles que invadiram e oprimem? Não faz o menor sentido!", colocou.
Francisco Miraglia lembrou ainda que Israel tem poder militar para destruir os palestinos em poucos dias, mas utiliza outros recursos de pressão, por meio do terror, para assustar o povo. “Não são táticas novas. Uma delas é atirar nas pernas das crianças, não para matar, mas para mutilar e deixar os pais com medo de levar os filhos às manifestações. Por outro lado, o controle da divulgação desses fatos e estratégias não permite a reação de indignação de povos de outros países, como ocorreu quando da Inglaterra na Índia”, analisou o professor. Em seguida, ele colocou a questão, “o que temos de pensar agora é quais são as pressões políticas efetivas que o Governo brasileiro pode exercer em solidariedade ao povo palestino? Precisamos criar uma pauta, um conjunto de reivindicações organizadas.”

Pauta de ação

No dia 3 de dezembro deste ano, o presidente Lula reconheceu o Estado palestino nas fronteiras de 1967, determinadas pela ONU. Abdel acredita que a declaração foi um passo correto, apesar de atrasado e pequeno. “O Governo brasileiro reconhece o Estado palestino, mas alimenta economicamente a política expansionista israelense. É difícil entender isso”, disse, referindo-se aos acordos de comércio entre ambos os países, sendo o Brasil hoje o segundo maior comprador de armas do Estado sionista. “O Brasil precisa ser mais ativo e declarar abertamente o crime contra a humanidade praticado por Israel”, complementou. Soraya Misleh acha que um passo importante seria pressionar o Governo a cancelar o tratado de livre comércio com Israel, estabelecer boicotes e sanções.

Sérgio Gomes, diretor da Oboré, lembrou que já existem muitos documentários e filmes que tratam e denunciam a situação dramática dos palestinos, vários já exibidos nas mostras de cinema do ICArabe. “Poderíamos fazer um esforço para conseguir que as redes públicas de televisão brasileiras exibissem essas produções. Seria uma forma de quebrar o bloqueio de informação”, sugeriu.
Francisco Miraglia acredita que também seria um caminho pressionar o Brasil a estabelecer convênios acadêmicos e de pesquisa com as universidades da região, nos quais houvesse intercâmbios de alunos e professores. “Essa é uma forma de auxiliar no desenvolvimento daquele povo e na divulgação da sua situação. O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), por exemplo, poderia fazer um plano para ajudá-los a trabalhar a terra”, finalizou.

Soraya Misleh encerrou dizendo que já existem algumas ações no sentido de pressionar governos a agirem mais efetivamente em defesa dos palestinos. Grupos como o Stop The Wall e o Comitê Nacional Palestino por BDS (Boicotes, Desinvestimentos e Sanções) já tiveram conquistas significativas em países do Hemisfério Norte e agora estão voltando o foco para os do Sul. “Acho que é um processo que vai se desenvolvendo com o tempo, unindo e organizando as pessoas. A minha certeza é de que impérios não duram para sempre e de que os palestinos vão resistir, não vão se calar e um dia nós voltaremos para nossa terra”, afirmou. 

A catásPalestino carrega lousa de escola destruída por isralenses na Cisjordânia; Israel afirma que construção era ilegaltrofe

Em 29 de novembro de 1947, portanto há 63 anos, em Assembleia-Geral da ONU , foi aprovada a Resolução nº 181, que decidiu pela partilha do território da Palestina histórica para o estabelecimento de um estado judeu e um árabe, sem qualquer consulta aos habitantes locais. Como consequência, o Estado de Israel foi implementado em 15 de maio de 1948 e o da Palestina não foi assegurado, culminando na nakba (catástrofe), em que foram expulsos mais de 700 mil palestinos de suas casas e centenas de vilas foram destruídas. O resultado é a ocupação mais longa do período contemporâneo, que tem sido aprofundada, ao arrepio das leis e convenções internacionais. Uma das maiores injustiças de que se tem notícia.

Consequentemente, todos os direitos inalienáveis do povo palestino têm sido desrespeitados, como à autodeterminação, à saúde, à educação, a transitar livremente. Um muro em construção desde 2002, que corta a Cisjordânia ao meio – projetado para ter 720 metros de extensão e 9 metros de altura –, e centenas de checkpoints e assentamentos sionistas, além de estradas exclusivas proibidas a palestinos, são símbolos do apartheid que se configura no território ocupado. Em Gaza, o lugar mais densamente povoado do mundo, com 1,5 milhão de pessoas que se espremem em cerca de 360km2, um bloqueio criminoso tem feito com que grasse a fome e a miséria, numa punição coletiva que deveria ser ainda mais impensável em pleno século XXI. O território palestino, mediante esses aparatos, é mantido sob a forma de bantustões à la África do Sul. É hoje impossível, por exemplo, ir da Cisjordânia a Gaza.

A semana de solidariedade pretende contribuir para dar visibilidade a essa questão e lembrar que, dia após dia, famílias são separadas, plantações são destruídas, crianças são impedidas de ir à escola e mães, de dar à luz com dignidade. Mais do que isso: soma-se às iniciativas em que a comunidade internacional é chamada à responsabilidade pela drástica situação na Palestina e cobrada a dar continuidade a ações concretas que pressionem e levem à mudança dessa realidade.

 

Veja entrevista no Jornal Futura, exibida em 16/12/2010, com Soraya Misleh e seu pai:

 

 

Veja entrevista com Soraya Smaili sobre os projetos do ICArabe em solidariedade ao povo palestino: