A Guerra das Mentiras

Qua, 02/04/2008 - 21:00
A respeito do Iraque, segundo Charles Lewis e Mark Reading-Smith, do The Center for Public Integrity, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao jornalismo investigativo e responsável a respeito de assuntos de interesse público nos Estados Unidos e através do mundo, em recente estudo intitulado False Pretense (Falsa Pretensão), confirma e prova que entre 11 de setembro de 2001 e o início da guerra do Iraque George W. Bush e seis de seus mais próximos colaboradores mentiram em 935 ocasiões a respeito do perigo que representava o Iraque para os Estados Unidos. Hoje em dia, entrando no sexto ano da guerra que resultou na ocupação do Iraque, Bush continua a mentir para, entre outras objetivos, preparar o terreno para que seu sucessor continue no mesmo caminho por ele percorrido. Fora ele chegado a estudo, ou até mesmo à simples leitura, poderíamos considerar que ele aprendeu a mentir nas fontes hitlerianas, revendo o que escreveu Walter C. Langer, do Office of Strategic Services, de Washington DC, EUA, falando de Adolf Hitler em A Psycological Analysis of Adolph Hitler. His Life and Legend (Uma análise psicológica de Adolf Hitler. Sua vida e legenda), em relatório preparado durante a II Guerra Mundial, para uso das autoridades de seu país: “Sua primeira regra é nunca deixar que o público esfrie, nunca admitir uma falha ou erro; nunca conceder que pode haver algum bem no seu inimigo; nunca deixar margem para alternativas; nunca aceitar culpa; concentrar-se em um inimigo por vez e culpá-lo de tudo o que der errado; o povo acreditará numa grande mentira mais cedo do que numa pequena mentira; e, se a repetir com bastante freqüência o povo, mais cedo ou mais tarde, acreditará nela”. Porém as suas e as mentiras daqueles que o cercam foram além do Führer, resultando em verdadeiro desastre. Uma delas foi durante uma bem produzida e pomposa conferência de imprensa, destinada a justificar a guerra. A administração Bush declarou considerar Saddam Hussein imprudente, implacável e irracional e justificou a ação que viria depois com o argumento de que um homem como aquele, dotado de armas nucleares, era imprevisível demais e deveria ser detido para não ameaçar os Estados Unidos. Este era o argumento dos falcões, a turma de mentirosos acima mencionados. A avaliação do passado de Hussein, em seu relacionamento com o mundo, no entanto, provava que ele, apesar de cruel e calculista, era eminentemente passível de dissuasão. Isto os estadunidenses já sabiam desde quando a CIA (Central Intelligence Agency) e Saddam Hussein, à frente de seu Partido Baath conspiraram para eliminar o Partido Comunista do Iraque, em 1963, o que resultou na morte de 3.000 a 5.000 comunistas. Hussein e a CIA consideraram este fato um sucesso e, a partir daí, cooperaram a respeito de tudo; o Iraque se opondo e procurando influenciar os demais países árabes e muçulmanos para que se opusessem à ocupação do Afeganistão pela União Soviética e o governo estadunidense apoiando o Iraque na invasão do Irã. Neste último episódio os Estados Unidos forneceram apoio logístico ao Iraque, armas (principalmente químicas), munições, financiamento e tudo o mais. A invasão do Kuwait pelo Iraque não deixou também de ser consentida pelos Estados Unidos. Pode-se dizer mesmo que os Estados Unidos têm a mesma culpa que o Iraque em todas as acusações que levantaram contra este país árabe e seu então líder, para justificar a guerra e o governo estadunidense deveria ter participado no julgamento de Hussein, na qualidade de réu. Os Estados Unidos apoiaram o Iraque durante os anos 1980 quando Hussein usou gás contra os curdos e contra os iranianos e ajudaram mesmo diretamente, neste último caso, a usar as armas químicas com mais eficiência fornecendo imagens de satélite da posição das forças iranianas. Esta cooperação vem desde a administração Ronald Reagan que ajudou nos esforços de Bagdá ao permitir que importasse material biológico para a fabricação de vírus, toxinas e outros, destinados a dotar o Iraque de armas causadoras de doenças infecciosas. O grande vilão que representou o governo Reagan, em 1983, na visita que levou solidariedade e apoio a Hussein foi ninguém menos que o antigo dirigente de indústrias químicas e, depois, Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld. É bom também lembrar que o Presidente George H. W. Bush, em outubro de 1989, cerca de um ano após o uso de gás por Hussein contra os curdos, assinou uma diretriz de segurança nacional declarando que “As relações normais entre os Estados Unidos e o Iraque servem os nossos interesses durante bastante longo tempo e promove a estabilidade tanto no Golfo quanto no Oriente Médio”. Os Estados Unidos queriam transformar o Iraque numa base para o domínio hegemônico dos países islâmicos da região, notadamente das repúblicas ex-soviéticas e a leste incluindo Irã, Afeganistão, Paquistão, Bangladesh. Teriam assim duas colunas mestras de poder militar, representadas pelo Iraque a leste e Israel a oeste. Ouvir-se-ia o grito de “o petróleo é nosso” em inglês dos Estados Unidos. Irã-Iraque Cabe indagar, já que eram íntimos e atuavam em conjunto, Saddam e os sucessivos governos estadunidenses, quando e porque as relações entre o Iraque e os Estados Unidos se deterioram a ponto de resultar numa guerra. É que a guerra contra o Irã já representava um sério risco para o Reino da Arábia Saudita e para todas as monarquias do Golfo Arábico. Enquanto Hussein acreditava, e com ele a CIA, que os iranianos de origem árabe iriam se levantar contra o regime da República Islâmica do Irã, tão logo as forças iraquianas atravessassem a fronteira, os países árabes do Golfo, temiam exatamente o contrário: que a maioria xiita de suas populações (em todos eles sem exceção) se levantaria em apoio ao Irã. O resultado disto seria desastroso para o Reino e demais monarquias, pois se Hussein ganhasse a guerra passaria a ser o detentor da maior reserva petrolífera do mundo e o senhor regional inconteste, ao juntar petróleo do subsolo do Iraque com o do Irã e teriam eles suas rendas petrolíferas sujeitas à vontade do senhor de Bagdá e seus tronos ficariam ameaçados pelo Iraque de um lado e pela maioria xiita em seus próprios territórios; e, se perdesse, imprevisível como ele era, ninguém poderia ter certeza do que ele seria capaz de fazer. Foi quando os governos árabes começaram a pressionar o governo estadunidense, mas este, entre contentá-los e prosseguir em seu projeto para a região, se contentou em criar mais bases militares no Golfo e cercanias, para tranqüilizá-los, deixando Hussein à solta. Mas, quando o Iraque perdeu a guerra contra o Irã, os estadunidenses fecharam os olhos à aventura de Hussein no Kuwait. Era uma nova tentativa guiada pelos mesmos objetivos comuns que resultaram na guerra Irã-Iraque. A reação do Reino e demais monarquias foi, desta vez, mais forte ainda, a ponto de os estadunidenses expulsarem os iraquianos de terras kuwaitianas porém, no entanto, preservando a máquina de guerra de Hussein de destruição, o que pode ser considerada uma ajuda por parte de Bush, o pai, prevendo a volta de alguma cooperação futura se e quando fosse necessário voltar-se novamente contra o Irã. Outro ponto digno de nota é que o Governo estadunidense vinha tendo problemas com Hussein desde o fim da guerra Irã-Iraque, pois ele vinha exigindo dos Estados Unidos e dos governos do Golfo não somente o perdão das dívidas do Iraque como também novos financiamentos para a reconstrução. Mas ninguém quis bancar o prejuízo. O Irã saiu enfraquecido da guerra e o Iraque de duas e Bush, o filho, começou uma campanha de mentiras tendentes a justificar a invasão do Iraque, como alternativa para consecução do plano para a região. Mentiu para os cidadãos de seu próprio país e para o mundo inteiro, nos cenários das Nações Unidas e, como as mentiras não colaram, o Iraque foi invadido sem aprovação de qualquer das partes que teria voz no assunto. O livro de Dilip Hiro, jornalista e autoridade em Oriente Médio, Iraq In the Eye of the Storm (Thunder’s Mouth Press / Nation Books, New York, 2001) relata visita realizada pelo autor ao Iraque às vésperas da invasão e lista as acusações dos Estados Unidos contra o Iraque. A incriminação era de toda ordem, sempre carregadas de mentiras e vale a pena lembrá-las e comentá-las, pois a impostura é aplicada hoje em outros países, sob outras circunstâncias e os povos da região têm a obrigação de ficar de olhos abertos. A invasão As duas guerras, contra o Irã e o Kuwait, tinham sido instigadas, apoiadas ou consentidas pelos sucessivos governos dos Estados Unidos. A acusação de Bush de que Saddam estava novamente ameaçando os países vizinhos foi desmentida pela Liga dos Estados Árabes e até mesmo, em sessão de setembro de 2002, protestou contra as ameaças a países, notadamente o Iraque. A acusação de que Hussein usou gás contra o seu povo não era novidade e, àquela altura, até mesmo Bush, o pai, não cansava de rasgar elogios a Hussein e ao papel do Iraque na região. Em documento com 22 páginas editado pela Casa Branca em 12-09-2002 intitulado A decade of Deception and Defiance (Uma década de decepção e desafio), há uma única página sob o título de Support for International Terrorism (Apoio ao Terrorismo Internacional) acusando o Iraque, quando se sabe que o último ato que se possa chamar de terrorista, patrocinado pelo Iraque, foi a tentativa fracassada de assassinato de Bush, o pai, quando visitava o Kuwait, em 1993. O referido documento não traz uma só linha a respeito das barbaridades do terrorismo de estado praticado todos os dias por Israel nos territórios ocupados da Palestina e territórios ocupados pelo Estado hebreu, pertencentes à Síria e ao Líbano. O documento acima também não mencionava, como declarava Bush, anos depois, para justificar o ataque, que o Iraque dava abrigo à Al-Qaida em seu território e nem tampouco que menciona um encontro, no Iraque, entre Mohammad Atta, um dos seqüestradores dos aviões do Onze de Setembro, com o serviço secreto iraquiano, comprovadamente parte do rol de inverdades. Hussein também não financiou os homens bombas suicidas em Israel, pois a contribuição às famílias daqueles que morreram durante os primeiros dois anos da Intifada, em número de 1.500 lares, só incluía 70 famílias de homens-bombas que atacaram os centros de cidades israelenses; e nunca se ouviu algum presidente estadunidense falando de Deir Yassin e centenas de outras aldeias palestinas que desapareceram do mapa. Quanto à violação dos direitos humanos, ainda que Hussein não tenha sido propriamente um exemplo de respeito a eles, nada fica devendo a Israel e Estados Unidos em matéria de desrespeito a direitos, Khiam no Líbano e Guantânamo, para citar apenas dois, ainda aí estão para prová-lo. Risível foi a acusação de que o Iraque não respeita resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas; Israel também não o faz, nunca fez, e recebe fortunas em ajuda e os Estados Unidos simplesmente passam por cima ou até mesmo vetam atos que contrariam a sua ou a vontade de seu pupilo. O absurdo das acusações chegaram até àquela de que o Iraque, ao hostilizar Israel, é empecilho que deve ser dominado, em prol da paz no Oriente Médio. Nem mesmo os inspetores das Nações Unidas encarregados da verificar de existência de armas nucleares escaparam de acusações, somente por contrariarem os objetivos dos Estados Unidos. Desavergonhada foi, àquela altura, a tentativa de atribuir a Hussein e seu governo todo o sofrimento do povo iraquiano, pois o boicote, ano após ano e durante mais de uma década, foi imposto pelas Nações Unidas, sob orientação dos Estados Unidos e de nada serviram a seus interesses. Os iraquianos, até mesmo incentivados por Hussein, atribuíam aos Estados Unidos todos os seus sofrimentos, desde a falta de remédios e alimentos até a destruição de suas casas e escolas pelos bombardeios diários das aviações de guerra dos Estados Unidos e Reino Unido. O Iraque, no entanto, só tem em seu currículo duas guerras: uma contra o Irã e outra contra o Kuwait, o que é nada comparado a todas as guerras na qual se envolveu Israel desde 1948 e sua desobediência a todas as resoluções das Nações Unidas, Conselho de Segurança e Assembléia Geral, menos a metade de uma, relacionada à divisão da Palestina e a criação de dois Estados. Cinco anos depois da invasão, apesar da chegada de mais cinco brigadas estadunidenses no ano passado, que teve algum sucesso em abafar os altos graus de violência no centro e no norte do Iraque e reduzir as mortes entre soldados ianques e civis iraquianos, o mérito não se deve, como alardeia Bush, unicamente à sua decisão de enviar mais tropas para o país árabe ocupado. O cessar fogo unilateral, de seis meses, decidido por uma das duas maiores milícias xiitas iraquianas: Muktada Al-Sadr, e o seu comandado Exército do Mehdi, tiveram enorme influência na redução da violência. Os Estados Unidos, no entanto, mal passou o aniversário de cinco anos rompeu a trégua e atacou os xiitas em geral e não somente o Exército do Mehdi, em quatro grandes cidades iraquianas, com a ajuda do exército e da polícia do Iraque. Al-Sadr, mais uma vez, decretou uma nova trégua que não deve ser respeitada pelos Estados Unidos e governo títere do Iraque. Cabe aqui um lembrete aos atuais governantes do Iraque: os iraquianos, quando chegada a hora, costumam arrastar seus governantes pelas ruas de suas cidades; é só lembrar o Rei Faiçal II, seu tutor Príncipe Abd Al-Ilah e o Primeiro Ministro Nuri Al-Said, que tiveram este fim, com muitos outros, na revolução de 1958; um movimento que teve como estopim a contínua aliança com as potências estrangeiras, contra os interesses do povo iraquiano. Deve-se a relativa calmaria também à migração de xiitas e sunitas, que viviam em tempos passados em bairros mistos, para comunidades exclusivas das duas confissões muçulmanas, reduzindo drasticamente a ocorrência de violência entre as comunidades. Isto causou lamentavelmente movimentos massivos de refugiados, calculados em dois milhões de deslocados internamente e outros dois milhões de refugiados em países vizinhos. O Senador Eduardo Suplicy, em seu di´´ario da visita que realizou ao Iraque, entre 16 e 18-01-08, publicado no Suplemento Aliás do O Estado de S. Paulo, de 17-02-08, testemunha: “Bagdá agora está toda cercada de muros de concreto que impedem você de ver, a cada quarteirão, os edifícios, os palácios, as residências”. Na verdade, é pior do que o simples “não ver” pois os cidadãos iraquianos estão encarcerados e incomunicáveis em sua própria terra. O exemplo não vem de longe, vem da ação de Israel, em terras palestinas. Mas, durem estes muros o quanto durarem, na Palestina ou no Iraque, todos certamente terão o mesmo destino do Muro de Berlim. Outro fator ainda foi o recrutamento pelas forças estadunidenses de ocupação de grupos sunitas opositores à violência que vinha de alguns elementos da Al-Qaida e que teve sucesso no combate aos homens de Bin Laden. As forças armadas dos Estados Unidos custeiam hoje cerca de 70.000 destes homens com soldos, armas e munições, porém, em finais de fevereiro deste ano já se sentia descontentamento por parte deste grupo sunita, devido à constatação de que nada mudou a respeito da dominância dos partidos xiitas no governo iraquiano. Este grupo, apesar de criado e sustentado pelos Estados Unidos, tem demonstrado com substancial evidência de que são ferozmente opostos à presença estadunidense, como potência ocupante. Desde a destruição das Torres Gêmeas, conta-se no Afeganistão e no Iraque 80.000 a 150.000 civis mortos pela ação das forças invasoras e outro tanto de feridos graves e 120.000 detidos sem julgamento, alguns já tendo atingido os seis anos de prisão. Segundo relatado pelas forças de ocupação e pelo governo iraquiano havia em fevereiro deste 2008, 27.000 suspeitos de insurgência nas prisões daqueles e mais 10.000 nas deste. As baixas de soldados estadunidenses nos cinco anos de guerra no Iraque já ultrapassou os 4.000 e isto sem contar as forças irregulares contratadas ao arrepio da lei nacionais e internacionais. Al-Qaeda, à solta e dispersa, tem demonstrado habilidade em sua atuação tanto no sudeste asiático quanto na Argélia, Marrocos e Líbano. Na Líbia, há sinais de resistência contra a tentativa de Muammar Al-Qaddafi de se aproximar do ocidente. Na Somália, há grupos de resistência sendo atacados por mísseis estadunidenses no sul do país. Tudo isto leva a crer que os Estados Unidos à frente, seguido por seus aliados, permanentes ou eventuais, devem rever não somente a sua conduta no Iraque e no Afeganistão, mas também o “combate ao terrorismo” de forma ampla, iniciado após o Onze de Setembro. Há alguns meses, havia indicações de que se poderia esperar por mudanças. Havia grande debate no Congresso dos Estados Unidos e o Relatório Baker-Hamilton sugeria, entre outras medidas, a retirada do Iraque e do Afeganistão. No entanto, foram meras esperanças que não se realizaram. A campanha presidencial de 2008 nos Estados Unidos e a aparente redução da violência no Iraque adiou mais uma vez uma solução para os problemas que afligem o mundo inteiro e que têm na solução do problema no Iraque uma chave para o início da solução de muitos problemas no Oriente Médio, do Afeganistão e Paquistão à Palestina e Líbano. Mas se Bush está neste momento construindo bases militares permanentes no Iraque, transformando sua bazófia original de transformar o Iraque num país que irradiaria a democracia e a liberdade para toda a região, para reduzir o país árabe a um protetorado, é ousado pensar que a ocupação não se estenderá por anos, além dos cinco já sofridos.