As Guerras contra o Iraque

Ter, 02/10/2007 - 09:00
Na véspera do dia em que o Iraque invadiu o Kuwait (2 de agosto de 1990), eu estava em Bagdá e um daqueles que os estadunidenses identificariam depois como “Cartas do Baralho” mandou um emissário a meu apartamento, no Hotel Al-Rashid, com um recado que dizia textualmente: “A Gahba disse ao Presidente que eles não tinham nada a ver com os problemas da fronteira sul e, então, meu irmão, pegue hoje o avião da Air France hoje à noite e vá para casa”. Quando cheguei a Paris o Iraque já ocupava o Kuwait. O que disse a “Gahba” (prostituta na pronúncia iraquiana), a Embaixadora dos Estados Unidos no Iraque, April Glaspie, no dia 25 de julho de 1990, durante uma entrevista com o presidente Saddam Hussein não era a primeira mentira que os Estados Unidos aplicariam contra o Iraque. O que ela disse, vim a saber depois, foi meticulosamente gravado e foi retomado em crônicas posteriores com os autores invariavelmente afirmando que Saddam interpretara mal a fala de Glaspie, mas há dúvidas quanto a isto. O então Secretário de Estado James Baker confirmaria depois que a ordem dada à Embaixadora era precisamente aquela: informar que os Estados Unidos nada tinham a ver com problemas de fronteira entre Estados árabes. Dias depois, no dia 31, o Pentágono seria mais franco, ao declarar em nota oficial: “Estamos fortemente engajados no apoio à autodefesa, individual ou coletiva, de nossos amigos no Golfo” . Dito isto, colocaram suas forças navais em alerta máximo. A I Guerra do Golfo, Irã contra Iraque, terminara sem vencedor e Saddam estava com quatro problemas urgentes à sua frente: o impacto da não vitória da guerra na opinião pública, dar emprego aos 200.000 soldados desmobilizados e desempregados há três anos, a necessidade de reconstruir o país e, como sempre, seu apego a realizar o seu eterno sonho de se tornar a figura dominante da região. A reconstrução do Iraque, que contribuiria para a solução das demais, estava dependendo da renda proporcionada pelo petróleo. Com o Kuwait excedendo em 40% a sua quota de exportação de petróleo e os Emirados Árabes Unidos em 30%, o preço do óleo baixou de US$ 18,00 o barril para US$ 11,00, deixando o Iraque apenas capaz de atender a suas despesas correntes e nada mais para investir. O Kuwait havia escolhido o petróleo como arma para pressionar o Iraque a um acerto de suas fronteiras e a pagar a dívida de US$ 16 bilhões contraída pelo Iraque durante a guerra com o Irã. Em 30 de maio, na reunião da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), em Bagdá, Saddam discursou: “Guerra é feita com soldados e o prejuízo é feito com bombas, matança e golpes atentatórios, mas também é feita às vezes por meios econômicos... Eu digo àqueles que não querem batalhar contra o Iraque que isto é, de fato, uma guerra contra o Iraque”. As palavras caíram em ouvidos moucos. Em 31 de julho, o Iraque enviou o seu vice-presidente Izzat Ibrahim para encontrar o herdeiro do trono do Kuwait Shaikh Saad al-Sabah em Jeddah e só ouviu deste palavras duras: “Não nos ameacem. O Kuwait tem amigos muito fortes. Vocês serão obrigados a nos pagar todo o dinheiro que nos devem”. Se os Estados Unidos fecharam os olhos ou encorajaram o Iraque a ocupar o Kuwait, fica a critério de quem interpreta os fatos e filtra as notícias dos lados envolvidos. O fato é que o governo estadunidense voltou atrás e, aliado ao Reino Unido, liderou uma coalizão que empreendeu a II Guerra do Golfo (1990-1991). Golpe de inteligência para que o Iraque ocupasse o Kuwait e, depois, retaliasse seria esperar muito da potência hegemônica. Na realidade, eles queriam dar mais força ao Iraque para contrabalançar o poder iraniano, mas o Reino Unido, Israel e conhecidos países árabes que temiam muito mais um Iraque encurralado em seus problemas, convenceram os Estados Unidos para que não se acomodassem. Mentira leva a idiotice e a II Guerra do Golfo estancou, contrariando o interesse maior dos Estados Unidos e da coalizão que era a ocupação do Iraque. Este se tornara o objetivo. Ninguém, na realidade, queria ter à sua porta ou em sua zona de influência um dono da maior reserva de petróleo do mundo e, por isto, deveria ser subjugado. O argumento de George Herbert Walker Bush, então presidente, no entanto prevaleceu: acabar com Saddam Hussein e subjugar o Iraque seria uma oportunidade para o Irã se fortalecer. O Iraque é um país criado pelo Império Britânico – Império da Índia, costumava dizer 10 Downing Street quando lhe interessava - já tendo desde o nascedouro problemas internos: árabes xiitas, em região petrolífera, e árabes sunitas na capital onde nada se produz exceto tramóias e fuxicos. Para complicar mais ainda e não deixar todo o petróleo nas mãos do Estado que estavam criando, os britânicos tiraram da antiga província otomana de Basra o que se tornou o Kuwait. Para influenciar os sunitas de Bagdá e o Rei que lá implantaram, trazido da Hijaz (parte da atual Arábia Saudita), adicionaram ao Estado iraquiano um pedaço do Curdistão; uma parte de um Estado a cujos representantes as potências aliadas e a sua Liga das Nações, ao final da I Guerra Mundial, haviam prometido independência, o que nunca aconteceu. Uma mentira a mais! É importante lembrar este episódio, pois, ao final da II Guerra do Golfo, os norte-americanos que haviam prometido aos xiitas do sul e aos curdos do norte apoio pleno e total em sua rebelião contra o regime baathista, renegaram as suas promessas e deixaram que Saddam Hussein aplicasse toda a sua maldade sanguinária nas duas partes mais importantes de seu país, ao norte e ao sul, contribuindo assim para o restabelecimento de antigos problemas religiosos e raciais. Aí já começara o atoleiro no qual se meteram os Estados Unidos, pois apesar da vitória parcial e inacabada sobre Saddam Hussein os curdos começaram a fugir através das fronteiras para se abrigarem junto aos demais curdos, principalmente aqueles dentro da fronteira turca, criando um problema com a Turquia, o segundo aliado da potência hegemônica não árabe na região. A solução que deram: a criação de uma zona livre para os curdos no norte, estabelecimento de zonas de exclusão no norte e no sul, o patrulhamento aéreo de todo o território iraquiano, bombardeios ininterruptos e o cometimento de um crime contra a humanidade representado pelas sanções contra o Iraque, executadas pelas Nações Unidas, com orientação estadunidense, que gerou a morte de iraquianos de fome e falta de remédios e encorajou um contrabando de petróleo que em nada contribuiu para aliviar as dores do povo iraquiano, pois tudo o que se arrecadava servia para Saddam Hussein se preparar para a próxima guerra. Não se deve esquecer que as armas biológicas e químicas que Saddam Hussein procurou desenvolver têm origem principalmente em fornecimentos norte-americanos feitos durante a Guerra Irã-Iraque. Quanto a armas nucleares, se de fato procurou desenvolver, os ataques aéreos iniciados já no governo William Clinton, a todas as instalações militares, deve ter frustrado o desejo dos iraquianos. A próxima guerra contra o Iraque, mais uma vez baseada em mentiras, partia de argumentos totalmente falsos: o Iraque ameaçava a segurança dos Estados Unidos e dos países seus vizinhos, é responsável pelos ataques de 11 de setembro, está fabricando armas de destruição em massa, o que tornava seu desarmamento uma renovada prioridade. Líderes mundiais, tendo o presidente francês Jacques Chirac à sua frente, tentaram convencer aos Estados Unidos e ao Reino Unido de que o governo iraquiano estava cada vez mais cooperando, porém, como sua intenção era outra, George W. Bush e seu aliado preferido Anthony Blair, deram um ultimato para que Saddam Hussein deixasse o Iraque em 48 horas. Como Saddam não atendeu, o que era de se esperar, em 20 de março de 2003, as forças da coalizão, que já estavam preparadas há muito tempo, atacaram o Iraque começando a III Guerra do Golfo.