CONTADORES DE HISTÓRIA*

Qui, 16/03/2006 - 00:00
CONTAM QUE... “Conta-se, ó rei venturoso e de correto parecer, que, quando o gênio ergueu a mão com a espada, o mercador lhe disse: Ó criatura sobre-humana, é mesmo imperioso me matar?” (O Livro das Mil e Uma Noites). Um tecido novo e ao mesmo tempo antigo se recompõe e traz luz ao presente. Quantas razões teríamos para contar e ouvir histórias? Tão eterna quanto atual, uma boa história nos reencanta porque o tempo suspenso, o jogo de palavras, a trama, nos remete a um universo mágico de possibilidades, quem sabe aquele da morada dos gênios. Afinal, as histórias salvaram Sharazade, e mais, salvaram o próprio rei que reviveu ao ouvi-las. Histórias de alcova, lendas, histórias diante do fogo sagrado dos índios, os contos das avós, histórias de sabedoria à sombra de um Baobá. Em culturas primitivas, como entre os povos nativos americanos, havia o “contador de histórias”, responsável por conservar vivo o conhecimento da tribo, através de histórias. Os índios das planícies norte-americanas costumavam chamar seus contadores de história de “Cabelos Trançados”, porque usavam uma pequena mecha, com tranças e nós, que caía no meio da testa. Circulavam de um acampamento a outro, entre tribos e nações, e pela trança, eram identificados de longe. As crianças festejavam sua chegada, antes que desmontasse do cavalo no centro do acampamento, onde era saudado pelo chefe. “Há muitos invernos, no tempo em que ainda havia muitos búfalos e os únicos inimigos dos Sioux eram os Crow, eu ainda mamava no peito de minha mãe. Eu era muito pequeno mas observava o acampamento e ouvia os tambores dos meus Ancestrais falando com o povo” ("Mão Erguida", um Cabelo Trançado Sioux). Depois do jantar, diante da fogueira comunitária, o Cabelo Trançado contava notícias de outras tribos, os golpes contra um inimigo, um sonho de cura, histórias de sabedoria. Respeitado como indivíduo que constrói a ponte entre as tradições e o momento presente, ele também integrava o Conselho dos Anciões. Nas sociedades pré-islâmicas, a lembrança é cultivada como arte. Figura eminente, o poeta interpretaria as mensagens dos gênios e os belos poemas deste tempo evocavam as lutas, caçadas, um amor perdido, histórias poéticas do cotidiano das tribos. Os poemas eram interpretados pelo rawi, o declamador (quando não pelo próprio poeta); ele também contava as histórias que inspiraram o poema. Cada apresentação era única, uma diferente da outra, fosse improvisos em reuniões tribais ou em feiras de aldeias. “As moradas estão desertas, os lugares onde paramos e acampamos, em Mina; Ghawl e Rijan acham-se ambos abandonados. Nas inundações de Rayyan, os leitos dos rios mostram-se nus e lisos, como a escrita preservada em pedra. O esterco enegrecido jaz imperturbado desde que partiram os que lá estiveram: longos anos se passaram sobre ele, anos de meses santos e comuns...” (F.A. al-Bustani e outros). Nessa época teria nascido a expressão diwan dos árabes: os encontros para ouvir poemas, os poemas como um registro dos acontecimentos, a expressão da memória coletiva posta num louvor à tribo, no enfrentamento dos próprios limites, no reconhecimento do possível frente às forças dos destino. A expressão poética é, também, manifestação das esferas divinas e impregnada de sementes. Para o povo Dogon, habitante das falésias de Bandiagara (Mali), a palavra é sagrada, nascida do corpo e composta dos quatro elementos integrantes do universo: a vida (água), o sentido (terra), o calor (fogo) e o sopro (ar). A palavra do conto é a palavra boa: cativa e alimenta os homens. Para essa cultura rica e complexa da África negra, a palavra tem um indiscutível poder transformador: carregada de intenção, é semente impregnada de força. Tem o poder de criar, transformar, destruir. A memória é atributo singular nas culturas primitivas, e a cada vez que uma história era repetida, crescia o nível de compreensão conforme o amadurecimento e sensibilidade. Não havia a preocupação direta de transmitir "lição de moral"; cada um deveria elaborar o conteúdo de acordo com sua intuição e observações, dentro do seu ritmo, da sua forma de ser, e tomar para si as mensagens reveladas. Nesses tempos de culto à eficácia e internet, inseridos numa experiência caótica do mundo, tudo isso nos parece distante, a espontaneidade, momentos de silêncio qualitativo, estar com quem vale a pena, dizer e ouvir o essencial. Como creio termos um anticorpo anímico para transpor a modernidade corrosiva, cometo este convite: vamos contar e ouvir, ler e viver histórias, do Al Andaluz, de um amor, de uma viagem, histórias do cotidiano, de um sonho, das mil e uma noites. Histórias. Avance a fronteira, viva uma história, vamos cultivar nossa capacidade de deslumbramento. *conto originalmente publicado no dia 16 de setembro de 2005, na edição nº 16 da newsletter do Icarabe