A fé do Islã nos questiona

Qui, 02/03/2006 - 21:00
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Muitas são as leituras que se estão fazendo acerca das reações muçulmanas contra as charges da figura de Maomé. Das que li, ao meu ver, nenhuma delas apontou o cerne da questão; quem mais se acercou foi Mauro Santayana aqui no JB. Precisamos ir mais a fundo na análise, pois ela esconde o estopim de uma provável guerra de civilizações preconizada por S. P. Huntington em seu discutido livro O choque de civilizações(1996). Equivocam-se os que pensam se tratar de fundamentalismo. Para o Islã, por detrás das charges, está a cultura moderna do Ocidente hoje globalizada. É tida como sem fé, imoral, exploradora, belicosa, arrogante e violadora de tratados da ordem mundial. Ela se julga universal e por isso digna de ser imposta a todo mundo: um pretenso universalismo que se transforma em imperialismo, como se vê explicitamente na política externa de Bush e em declarações de Berlusconi. Há que se reconhecer que a maior fonte de instabilidade e de possível conflito num mundo pluricivilizacional é exatamente o Ocidente. Sua arrogância, embutida também nas igrejas cristãs, pode nos levar todos a perder. Para o Ocidente, por detrás das reações às charges está o radicalismo islâmico fundado no orgulho de sua cultura e no sentimento de superioridade por manter viva a fé pública em Deus. Está também o rancor pelo fato de seus territórios serem militarmente ocupados em razão do petróleo e de serem considerados anti-modernos, fundamentalistas e nichos do terrorismo mundial. Confrontamo-nos aqui com preconceitos mútuos que ressuscitados no contexto globalizado podem gerar incontrolável violência. Mas o verdadeiro pomo de discórdia reside na fé e no lugar que ela deve ocupar na vida pessoal e social. As sociedades modernas ocidentais são filhas da razão ilustrada. Só se legitima aquela realidade que passa pelo crivo da razão crítica. Por esse crivo não passou a fé tradicional. Ela não é fator determinante na sociedade. Foi relegada ao mundo privado. Vendo de fora, o Ocidente socialmente não tem fé. Vive-se etsi Deus non daretur ('como se Deus não existisse') na famosa formulação do teólogo-mártir do nazismo D. Bonhoeffer, que anteviu esse obscurecimento social da fé. Esse ponto de vista é inaceitável para o Islã. É impensável uma sociedade sem uma dimensão institucional de fé. É não ver sentido no universo, sustentado pelo Criador do céu e da terra, é desconhecer os seres humanos como irmãos e irmãs. Isso não funda necessariamente um estado teocrático como se comprova hoje na Indonésia, o maior país muçulmano do mundo. O Estado reconhece explicitamente na sua organização a fé em Deus, sem identificar esse Deus com o do Islã, do Cristianismo ou de outras religiões. É um estado não confessional, com forte identidade nacional e fé ecumênica. A herança irrenunciável de Maomé é esta proclamação pública de Deus e da irmandade de todos os seres humanos, valores tidos no Ocidente por pré-modernos. Fazer caricaturas do Profeta é pôr à irrisão esta fé que orienta a vida de milhões. Daí a reação compreensível de muçulmanos do mundo inteiro. A fé é central no Islã enquanto é irrelevante no Ocidente. As charges procuram ridicularizar esta diferença. O desrespeito ao Sagrado põe à amostra a irrefreável decadência espiritual do Ocidente.