Civilização ou Barbárie?

Sex, 03/03/2006 - 09:00
A hegemonia ocidental trouxe consigo uma história reescrita. Quem ganha não somente leva o botim, mas também o direito de reinterpretar o mundo a partir da sua vitória. O poder é o poder das armas e do dinheiro, mas também o poder da palavra. Conforme Walter Benjamin, nessas condições, nem o passado está seguro, ele é abalado permanentemente pela ótica dos novos vencedores. A ascensão européia como pólo dominador no mundo impôs a dicotomia civilização ou barbárie para tratar de justificar seu poder e a colonização da periferia do sistema. Apropriando-se do termo civilização e desqualificando as civilizações mais antigas do mundo, tachando-as de bárbaras , as potências coloniais procuraram legitimar sua dominação e justificar os maiores massacres da história da humanidade cometidos em nome dessa categoria apropriada pelos colonizadores. Foi em nome desse projeto civilizatório que foram dizimadas as populações indígenas das Américas. Foi sob esse nome que se deu o tráfico de escravos. Juntos, esses massacres representam a pior matança da história da humanidade. E foram elas que marcaram a chegada do capitalismo ao nosso continente. Mas se tomamos episódios mais recentes, que marcaram o século passado, as duas guerras mundiais, conflitos inter-imperialistas, produziram a maior quantidade de mortos que o século conheceu, resultado das disputas entre as potências imperialistas para redividir o mundo entre elas, incluídos os regimes fascista, nazista, franquista e salazarista. Em nome de que civilização pode falar o ocidente capitalista? Com que direito tratam de desqualificar as outras civilizações como bárbaras? De qualquer forma, em sua versão eurocêntrica e, agora, do “american way of life”, tornaram hegemônico esse discurso da civilização contra a barbárie . Edward Said já desmistificou esse enfoque, ao denunciar o “orientalismo” como simplesmente “o outro”, o universo que não é o ocidental dominante. Resta agora destacar o caráter racista dessa visão de mundo. Um filósofo midiático – na era da mídia, esta projeta falsos filósofos -, Alain Finkelkraut já pregou que “o anti-racismo será o anti-comunismo do século XXI”. Isto é, o inimigo da civilização ocidental é o anti-racismo. É uma afirmação audaz, mas honesta. Porque a hegemonia cultural da civilização ocidental se construiu na base da “superioridade racial” dos brancos. Nenhum instrumento foi tão importante para essa hegemonia do que Hollywood. E os arquétipos de Hollywood têm um profundo caráter racista. Os filmes de “cow-boy” ou de “far-west” apresentavam os indígenas, massacrados pelos colonizadores, como “bandidos”, enquanto John Wayne e seus colegas, como “mocinhos”. Por sua vez, os filmes de guerra dos Estados Unidos são sempre contra outras raças – asiáticos (japoneses, coreanos), africanos, árabes. Pouparam sempre o país que promoveu a maior “limpeza étnica” da história da humanidade – os alemães, contra os judeus, os ciganos, os socialistas e comunistas. O único filme de peso que atacou frontalmente o nazismo – “O grande ditador” -, feito por Chaplin, causou tanto mal-estar, que seu diretor teve que abandonar os Estados Unidos antes mesmo da estréia do filme. Sabe-se como o cinema reescreve a história e deixa profundas marcas no imaginário das pessoas. Hollywood inaugurou uma série de filmes que tentavam reescrever a história da guerra do Vietnã, com os soldados dos Estados Unidos torturados pelos vietnamitas. Mais recentemente, um filme de guerra estadunidense fez as tropas desse país protagonizarem uma batalha que na verdade foi protagonizada pelos britânicos. Muito pior é a consolidação dos africanos, asiáticos, árabes como “bárbaros”. Eu diria mais do que isso – é um crime, quase uma incitação à discriminação e à violência, quando não ao extermínio. Uma “civilização” que discrimina dessa forma - que tem na sua conta o extermínio dos povos indígenas nas Américas, o crime tão brutal de trazer à força milhões de negros, arrancados do seu mundo, para trabalhar como escravos a fim de produzir riquezas para os colonizadores brancos, e o holocausto, que previa friamente a extinção de uma raça, com aproveitamento industrial de todos os que se pudesse “aproveitar economicamente” de seus cadáveres - pode ser chamada de “civilizada”? Pode considerar aos “outros” como “bárbaros”?