Islã histórico e islamismo político

Dom, 11/03/2007 - 21:00
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Nos tempos que correm, a religião pareceria ter substituído as ideologias políticas. A politização das religiões seria uma melhor maneira de definir o fenômeno; de qualquer modo, a questão é raramente explicada, ela é simplesmente dada como um fait accompli, que não admite nem precisa de explicações. No máximo, alguns historiadores da contemporaneidade se referem ao “ressurgimento das religiões”, em geral, na década de 1980. As colunas de jornais e revistas “sérias” estão cheias de informações acerca da natureza das mais diversas religiões, ou acerca dos perigos dos “fundamentalismos” respectivos; o mesmo tema domina as prateleiras dos livros de non fiction mais vendidos e, ultimamente, até os de fiction. Somos também advertidos acerca do perigo de uma espécie de cruzada islâmica contra o Ocidente (cristão), ou acerca do iminente (ou corrente) “choque das civilizações”. Iradas, ou moderadas, vozes “anti-fundamentalistas” se levantam por todo lado. O respeitado historiador (e ex sedicente marxista) Eric Hobsbawm propõe, num Manifesto pela História, um retorno aos valores universais (e universalistas) do Iluminismo. Outras vozes clamam por um “multiculturalismo”, numa perspectiva oposta à existência, real ou potencial, de uma cultura universal; uma construção “multicultural” da qual, por outro lado, estão excluídas a opressão nacional e as contradições de classe, tornadas insuperáveis em virtude de uma subdivisão cultural, que seria ela mesma insuperável pela própria História. A questão da “identidade”, de natureza variável (étnica, cultural, grupal, religiosa, raramente nacional, nunca de classe), substituiu-se às noções de classe ou de nação. A dinâmica histórica pareceria ter tornado a opressão nacional e a exploração de classe irrelevantes, ou meros dados suplementares, em absoluto decisivos, dentro de um devir histórico determinado pela “cultura”, da qual a religião pareceria ser a expressão concentrada e suprema. Para uma certa esquerda, só restou, nesse quadro a possibilidade de criticar o “fundamentalismo de mercado” (ou neoliberalismo), propondo uma volta às receitas (capitalistas) keynesianas do “Estado Benfeitor” (na verdade, interventor), e ignorando que, na época dos monopólios, levada atualmente até o paroxismo, é mais do que escasso o espaço reservado para o mercado de livre-concorrência. Não há globalização comandada livremente pelo mercado. Há uma economia mundial, sob a égide do capital financeiro, organizada de modo rígido, impondo uma verdadeira camisa-de-força às nações mais fracas: os grandes “globalizam”, os “pequenos” (economicamente, não necessariamente em tamanho) adaptam-se. As economias, mundial e nacional, nunca como hoje estiveram submetidas a tantas regulamentações; o comércio internacional intra-empresas assume hoje proporções gigantescas: mais de um terço das transações comerciais internacionais (supostamente “de mercado”) tem lugar no próprio interior dos grandes grupos monopolistas. Limitando-se à crítica do “fundamentalismo de mercado”, a (pseudo) esquerda adapta-se, por uma via terminológica, a uma concepção idealista-religiosa da história. No processo que foi coroado com o fim da URSS e a chamada “morte do comunismo”, na década de 1980, duas construções “teóricas” foram oferecidas no mercado ideológico capitalista, com intenções prospectivas. A malfadada teoria do “fim da história” defendida pelo nipo-americano Francis Fukuyama (que previa “séculos de tédio”, devido à vitória definitiva da democracia liberal, em escala histórica e mundial) foi contraposta pelo “choque das civilizações”, de Samuel P. Huntigton, com a idéia subjacente de uma básica incompatibilidade do gênero humano consigo mesmo, em virtude de uma contraditoriedade cultural insuperável. Para Edward Said, “Huntington é um ideólogo, alguém que quer transformar “civilizações” e “identidades” em algo que elas não são, entidades estanques e fechadas, destituídas das múltiplas correntes e contracorrentes que animam a história humana e que, ao longo dos séculos, tornaram possível que essa história não apenas contenha guerras de religião e conquista imperial, mas que também seja feita de intercâmbios, fertilizações cruzadas e partilhas”. * Esta é a Introdução do texto “Islã histórico e islamismo político”, análise sobre o percurso político-social em países do Oriente Médio durante o século XX, influenciado tanto por movimentos internos como pela influência imperial dos Estados Unidos. O texto completo está disponível na seção de Downloads do Icarabe.