Massificação cultural ameaça Síria

Dom, 28/08/2005 - 21:00

Como descendente de sírios, decidi viajar ao país para aprender a dança folclórica nacional. Pensei que na Síria, país que se resguardou mais em comparação com seus vizinhos árabes, poderia encontrar a memória mais presente. Mas o que percebi foi uma grande influência da cultura ocidental, principalmente na capital Damasco. Talvez no interior, em regiões mais afastadas do centro, as coisas fossem diferentes. Mas como chegar nesse interior, uma mulher ocidental, sozinha e desconhecida para eles; “oi, quero aprender essa dança com vocês”? Decidi realizar meus estudos em Damasco. Na dança, a influência se nota na excessiva mistura de ballet clássico e jazz moderno ao folclore, modas ocidentais que vão sendo incorporadas. O mercado força os grupos a essa incorporação. Isso acaba despersonalizando e massificando a dança. O ballet clássico, por exemplo, não tem nada a ver com o povo e a cultura árabe, que é bem forte, emocional, ligada à terra. A dança do mundo vai ficar toda com a mesma cara, a ocidental, e mais provavelmente, a norte-americana! Ninguém percebe que isso é dominação cultural e artística? Será ballet moderno com música e figurino árabe, ou coreano, ou espanhol, mas sempre ballet moderno, ou qualquer outra moda do momento. É o que “todo mundo está fazendo”. Só que o folclore é eterno, perpassa esses modismos e deveria se manter lá, vivo e sempre renovado, para ser uma fonte de inspiração, para quem faz e para quem vê, pois se reconhece naquilo como povo, que tem sua história, sua cultura e arte, seu jeito de se expressar e que é tão rico. Isso deveria ser motivo de orgulho, e não de vergonha. Somos diferentes e isso é uma grande riqueza, pois podemos ver e conhecer vários modos de ser e de se expressar, mas mantendo o nosso. Hoje na Síria é muito difícil encontrar alguém que conheça os vários tipos de dança de cada cidade, que queira e saiba ensinar, que ache isso importante. Também é difícil ter acesso às músicas, as pessoas das lojas olham torto: “ah, mas isso é muito antigo, você não quer ver o novo lançamento desse cantor pop?” Não tenho nada contra o pop, mas substituir um pelo outro, invalidar o que é nativo, é uma atitude típica de um país que foi colonizado por muito tempo: o que é nosso não tem valor, o do outro é sempre melhor. Já vimos (e ainda vemos) esse “filme” no Brasil, e agora acordamos para o perigo disso. Tomara que a Síria acorde logo! As pessoas tratam a memória como se fosse passado e não como memória viva e contínua. Como diz um amigo meu, a coisa mais revolucionária que temos é a Tradição, porque lida com a essência, é a fonte onde eu bebo para dar um passo adiante, vai sendo sempre atualizada. É diferente da conservação, que vê que “funcionou assim, então eu paro aqui”, não dá um passo adiante. O diretor do grupo de dança folclórica no qual estagiei, o Ali, viveu esse dilema enquanto estive lá. Ele não me parecia convencido, mas sim, empurrado pelo “mercado”, o fantasma que ronda a arte hoje em dia, transformando-a em objeto de consumo. E o fato de ter uma pessoa, vinda de tão longe para conhecer a dança DELES, também o levou a questionar tudo isso e assim voltar a criar coreografias com movimentos bem árabes, mas nem por isso fáceis ou bobinhos. Ele dizia que o folclore deve se expressar por meio de gestos que representem o caráter árabe, que é emocional, passional, e tem o momento apaixonado, o guerreiro, o doce, etc, e que tudo isso deve estar presente desde que respeite o modo de o árabe se movimentar. Com certeza, não é saltitando por aí. E assim criou peças folclóricas de muita riqueza e beleza. Foi muita sorte encontrar esse diretor e também a Afaf , uma bailarina já madura, que aprendeu as danças como elas são, as atualizou, mas tenta sobreviver hoje dando aulas de aeróbica. Ela ficou feliz em saber que alguém ainda se interessava e me ensinou as danças de várias regiões, o porquê dos movimentos, a teatralidade, o caráter de cada lugar. E outro achado foi o Hussam, um professor de música que me ensinou a característica da música de cada cidade, como diferenciar (achava esse aprendizado imprescindível, para não sair por aí dançando frevo com música gaúcha) e reconhecer. Todos esses contatos foram para mim como tesouros, encontrados depois de muita insistência e procura. Assim minha viagem não foi em vão e pude voltar com a certeza de que acompanhei processos bonitos e intensos de busca das raízes. Raízes que nos dão bases para podermos crescer, e não para ficarem lá, esquecidas e afundadas, inertes.