Historiador Christian Karam faz a crítica da entrevista de Samuel Huntington

Amina R. Chaudary, da Islamica Magazine "O Ocidente e o Islã não são blocos homogêneos e têm embates internos a enfrentar", diz Huntington Tiros de canhão disparados por militares israelenses matam 18 civis na Faixa de Gaza - entre eles 7 mulheres e 8 crianças. O primeiro-ministro palestino, Ismail Haniyeh, decide, assim, suspender as negociações para a formação de um governo de união nacional. Enquanto isso, o Irã tenta assumir uma posição de liderança na região, mas conquista cada vez mais inimigos por seu governo xiita. Para o cientista político Samuel Huntington, autor do polêmico O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial, de 1996, os conflitos internos no mundo islâmico impedem o surgimento de uma potência que possa responder pelo Oriente Médio. E tornam as relações com o Ocidente ainda mais difíceis. Esse choque entre as culturas não mais se dá entre gigantescos blocos, como acontecia no mundo dividido entre comunistas e capitalistas, diz Huntington. O embate, agora, se dá dentro de blocos menores, como no Islã ou nos limites fronteiriços dos Estados Unidos, que tentam estabelecer uma relação mais positiva com os imigrantes hispânicos. Nesta entrevista que concedeu à jornalista Amina R. Chaudary, da Islamica Magazine, Huntington analisa as inter-relações entre as nações muçulmanas, que compartilham as mesmas crenças, mas nem sempre a mesma velocidade em direção a um regime democrático. “É impressionante a lentidão com que os países muçulmanos têm se deslocado em direção à democracia”, dispara. “Mas já é possível observar os primeiros sinais de uma mudança no plano social e econômico no mundo muçulmano que, no tempo certo, resultará em mudanças políticas”. A seguir, trechos da entrevista, publicada pela revista Global Viewpoint. P: O senhor escreveu que a Cortina de Ferro deslocou-se e separa, hoje, as populações do cristianismo ocidental dos muçulmanos. A formulação de uma distinção dicotômica entre o Ocidente e o Islã implica a existência de uma uniformidade no interior dessas categorias? R: Essa implicação está totalmente equivocada. Não quero dizer com isso que o Ocidente seja homogêneo. No entanto, há elementos comuns em cada um deles. As pessoas se referem com freqüência ao Islã e ao Ocidente. É provável que isso tenha alguma relação com a realidade e tenha algum significado. Naturalmente, o fulcro dessa realidade são as diferenças religiosas(1). P: Existe alguma possibilidade de reconciliação ou ponto de convergência entre os dois lados dessa nova “Cortina de Ferro”? R: Conforme eu disse, ambos os lados têm divisões. Os países ocidentais colaboram com os países muçulmanos, e vice-versa. A política mundial continua extremamente complexa e os países têm interesses distintos, o que os levará a fazer amigos e aliados aparentemente estranhos. Os EUA continuam a colaborar com várias ditaduras militares no mundo todo. É claro que preferiríamos vê-las convertidas à democracia, mas insistimos em nos relacionar com elas porque temos interesses nacionais a defender, seja em relação ao Paquistão, ao Afeganistão, seja com quem for (2). P: Como é que o lado muçulmano tem se saído no contexto de um mundo que praticamente abraçou a democracia liberal, se não na prática, pelo menos na teoria? R: Já é possível observar os primeiros sinais de uma mudança significativa no plano social e econômico no mundo muçulmano que, no tempo certo, resultará em mudanças políticas. É claro que as sociedades muçulmanas estão se tornando cada vez mais urbanas, muitas delas estão se industrializando. Mas como muitos países têm petróleo e gás, não há um impulso muito substancial de mudança. Além disso, a receita gerada pelos recursos naturais dá a eles condições de mudar. Países como o Irã estão começando a desenvolver um componente industrial. P: O senhor acha que a “civilização islâmica” se tornará cada vez mais coesa no futuro? R: Sem dúvida já pudemos observar alguns movimentos nessa direção. Há vários movimentos políticos trans-islâmicos, que procuram atrair os muçulmanos de todas as sociedades. Tenho dúvidas, porém, de que possa haver algum tipo de coesão real nas sociedades muçulmanas, de modo que formem um único sistema político governado por um grupo eleito ou não eleito de líderes. Mas nada impede que os líderes das sociedades muçulmanas cooperem uns com os outros, assim como as sociedades ocidentais cooperam umas comas outras. Eu não excluiria a possibilidade de que países muçulmanos, ou pelo menos árabes, desenvolvessem algum tipo de organização comparável à União Européia. P: O senhor escreveu: “A cultura islâmica explica, em boa medida, o fracasso da irrupção da democracia em grande parte do mundo muçulmano”. Contudo, em boa parte do mundo islâmico há países democráticos - Indonésia, Mali, Senegal e até mesmo a Índia, com sua enorme população muçulmana. Qual seria o ponto de conexão aí? R: É impressionante a relativa lentidão com que os países muçulmanos, principalmente os países árabes, têm se deslocado em direção à democracia. Sua herança cultural e suas ideologias talvez sejam parcialmente responsáveis por isso (3). A experiência colonial por que passaram talvez seja um fator na luta contra a dominação ocidental. Muitos desses países eram, até pouco tempo atrás, sociedades quase que totalmente rurais governadas por elites latifundiárias. Acho que estão se urbanizando e caminhando em direção a sistemas políticos muito mais pluralistas. Obviamente, é cada vez maior seu envolvimento com as sociedades não muçulmanas. Um aspecto fundamental que influenciará a democratização será a migração de muçulmanos para a Europa. P: O que o senhor acha da idéia de seu colega de Harvard, Stephen Walt, e John Mearshmeier, da Universidade de Chicago, de que a política externa americana está submetida de forma desproporcional a grupos de pressão favoráveis a Israel, os quais não atuam em conformidade com os interesses dos Estados Unidos? R: Não saberia avaliar se a política externa dos EUA estaria sujeita, sob todos os aspectos, à influência de grupos étnicos de um tipo ou de outro, bem como de grupos econômicos ou regionais. Há um lobby irlandês que influencia a política externa americana há um século e meio, e por vezes dificultou muito nossas relações com o Reino Unido. Há outros lobbies desse tipo. O lobby israelense não é mais especial do que os demais. Talvez ele seja diferente porque se dedica a uma única questão - a sobrevivência de Israel e a obtenção de ajuda para o país (4). P: O senhor acha que a instabilidade que se observa no Oriente Médio estaria vinculada basicamente à tensão entre israelenses e palestinos, conforme muitos acreditam? R: É óbvio que ainda há pontos de conflito no Oriente Médio entre israelenses e palestinos, mas sempre houve vários outros pontos de conflito - entre Israel e Egito, batalhas entre facções religiosas diversas no Líbano, entre partidários do Baath e movimentos de oposição (5). Não se sabe ao certo qual país despontará como potência dominante no Oriente Médio. Na América do Sul, temos o Brasil; na África, a África do Sul; na África Central, a Nigéria; no leste asiático, a China e o Japão; no sul da Ásia, a Índia. Qual seria a potência no Oriente Médio? Israel está aparelhado militarmente e pode superar qualquer outra potência da região, mas é um país pequeno. Os demais povos do Oriente Médio são muçulmanos, Israel não é. É difícil que o país se torne uma potência dominante. P: Afinal, que país poderia assumir esse papel? R: O Irã é uma possibilidade, mas o país é xiita, ao passo que a maior parte dos árabes são sunitas. Além disso, o Irã não é uma nação árabe, ao contrário do que ocorre com boa parte dos muçulmanos do Oriente Médio. Há também a Turquia, que é um estado importante, mas que também não é árabe e tem vários interesses bastante concretos em petróleo e gás no norte do Iraque. Além disso, tem de garantir suas fronteiras contra os movimentos separatistas. Portanto, não há um candidato óbvio. A Arábia Saudita tem dinheiro, mas sua população é relativamente pequena. O Iraque era um provável candidato a líder, mas acabou seguindo pela direção errada. Talvez o Iraque ainda volte a ser a potência dominante entre os países árabes (6). P: Os EUA estariam interessados em garantir que não surja nenhuma potência regional hegemônica? R: Tudo depende de quem seja esse líder hegemônico. Teoricamente, os EUA consideram muito mais fácil lidar com situações em que haja um país nessa posição. Isto permite que você vá até os líderes desse país e diga, por exemplo, à Índia: “Há muitos problemas em Bangladesh. O que poderíamos fazer em comum acordo?”. Mas quando não se tem o equivalente da Índia, é preciso ir de capital em capital tentando montar uma coalizão, o que é extremamente difícil, principalmente no mundo árabe, dadas as rivalidades históricas e as várias ramificações do Islã. P: Outro colega de Harvard, Amartya Sen (prêmio Nobel de Economia em 1998) critica sua tese civilizatória com o argumento de que “identidade não é destino”, e que cada indivíduo pode construir e reconstruir as identidades escolhidas. O que o senhor acha dos cidadãos que têm múltiplas escolhas? R: Creio que essa declaração está totalmente equivocada. Nunca disse isso, porque acredito que as pessoas tenham múltiplas identidades. O que digo em meu livro é que a base da associação e do antagonismo entre países mudou com o tempo. Nas próximas décadas, as questões de identidade, isto é, de herança cultural, língua e religião, desempenharão um papel fundamental na política. Concebi essa idéia há dez anos e muito do que eu disse na ocasião foi comprovado desde então (7). P: Como se deve lidar com pessoas de identidades múltiplas, por exemplo, um muçulmano ou um judeu que vive nos EUA e que tenha dupla identidade? R: Essas pessoas procuram se adaptar. É o que tem acontecido há pelo menos dois ou três séculos. Quando se tem uma forte migração de populações e de minorias étnicas e religiosas, cria-se uma série de regras que a sociedade como um todo possa aceitar e que, ao mesmo tempo, seja aceita também pela comunidade minoritária. A sociedade como um todo precisa admitir algum grau de autonomia para as minorias: o direito à prática da sua religião e do seu modo de vida e, em certa medida, da sua língua. Várias das questões mais complexas relativas ao papel das minorias étnicas referem-se à língua. Em que medida essas pessoas foram escolarizadas em seu idioma nativo ou em sua língua nacional? Em que medida a sociedade torna-se, formal ou informalmente, um país de duas línguas nacionais? Ou apenas uma língua é utilizada nos processos judiciais, nos tribunais, legislaturas, no poder executivo e na política? P: Como o fundamentalismo influencia a política mundial atualmente? Há um radicalismo específico associado apenas ao Islã, ou isso seria é comum a todas as religiões? R: Creio que o fundamentalismo é isso mesmo: essa atitude radical do indivíduo para com sua própria identidade e civilização quando comparadas com as identidades e culturas das outras pessoas. As tendências e os movimentos fundamentalistas sempre existiram em todas as sociedades e civilizações. Certamente houve aqui nos EUA movimentos fundamentalistas que tiveram uma atitude crítica e hostil em relação à imigração e à assimilação dos imigrantes em nossa sociedade e cultura. Portanto, essas tendências são razoavelmente universais. O problema surge quando esse comportamento fundamentalista perde o controle e se torna o fator dominante de uma sociedade. Isto leva necessariamente à opressão das minorias e até mesmo à guerra com as sociedades vizinhas de culturas diferentes. Por isso é importante procurar manter essas tendências extremistas sob controle (8). P: Por que há mais tensão entre muçulmanos e outros grupos nas sociedades européias do que entre diferentes grupos nos EUA, onde os muçulmanos parecem ter se ajustado melhor? R: Em primeiro lugar, a maior diferença no tocante aos muçulmanos na Europa e nos EUA é que o número de muçulmanos nos EUA é pequeno se comparado à população muçulmana européia. Em segundo lugar, os que estão aqui tiveram de cruzar milhares de quilômetros de águas oceânicas, não atravessaram simplesmente a fronteira e nem tampouco fizeram uma curta travessia de barco pelo Mediterrâneo. Não temos fronteira com países muçulmanos, como os europeus, e essa me parece ser uma diferença fundamental. P: De que maneira isso se aplica à sua tese sobre identidade e cultura no que diz respeito às comunidades hispânicas nos EUA? R: Há diferenças fundamentais. Os hispânicos que vieram para cá são oriundos em boa parte do México e da América do Sul. São católicos, que é uma religião praticada nos EUA. Os hispânicos falam espanhol ou português, que são línguas com as quais estamos familiarizados, portanto não oferecem o mesmo tipo de problema que o árabe falado pelos muçulmanos na Europa. A principal diferença a imigração hispânica ocorre em grandes quantidades e vem de países vizinhos, e não de países do outro lado do Atlântico ou do Pacífico. Isto dá margem a questões diferentes e a diferentes problemas se comparamos com o que ocorria no passado. P: De acordo com sua teoria sobre o choque das civilizações, a política global de hoje decorre de conflitos arraigados nas diferentes culturas e religiões. O senhor acha que sua tese foi mal aplicada a partir do 11 de setembro? R: As relações entre os países na próxima década serão reflexo do compromisso cultural de cada um deles, dos laços culturais que os unem e do antagonismo de uns para com outros. É óbvio que o poder continuará a desempenhar um papel de destaque, como sempre desempenhou. Contudo, quase sempre há algo mais por trás dos conflitos. No século 18, na Europa, esse algo mais remetia a questões que opunham a monarquia aos movimentos republicanos emergentes, primeiro na América e, depois, na França. No século 19, havia a questão dos estados, que buscavam uma identidade no nacionalismo. No século 20, a ideologia ganhou destaque por causa da Revolução Russa, mas não só por isso. Tivemos o fascismo, o comunismo e a democracia liberal competindo entre si. Tudo isso praticamente acabou.. (9) Portanto, a questão, de fato, resume-se ao seguinte: qual será o foco central da política mundial nas próximas décadas? Continuo a defender que as identidades culturais, os antagonismos e as afiliações desempenharão um papel da maior importância nas relações entre os estados.