“Para entender o direito árabe, é preciso entender as diversas religiões”

Qua, 12/05/2010 - 19:12
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Em entrevista para o ICArabe, Jalusa dicorreu e explicou um pouco o direito no mundo árabe, visto que o tema é extremamente abrangente e variado. “Percebo que o Brasil sabe pouco sobre o país dos meus antepassados. Os juristas, em especial, nada sabem sobre o direito em um país árabe”, analisa. 

 

De onde veio seu interesse pelo direito?
Meu pai é advogado, meu interesse pelo direito foi motivado por ele. Fiz mestrado em direito em 1985 e, em 1996, fiz doutorado. Como havia terminado meus títulos, comecei a pesquisar Direito Ambiental a nível internacional, surgiu então a ideia de pesquisar sobre o tema nas chamadas sociedades de risco, e o Líbano foi meu ponto de partida já que a Universidade Federal de Santa Maria tinha um convênio com a Université de Saint Esprit de Kaslik, o qual eu coordenava. 

Quais são as principais diferenças e semelhanças entre as bases do direito brasileiro e do direito árabe?
Primeiramente, precisamos fazer um acordo semântico, pois falar em direito árabe é muito amplo.  Poderíamos falar em Direito Ambiental no Brasil e Direito Ambiental no Líbano, isto seria mais correto, se levarmos em conta minha pesquisa naquele país.  Por outro lado, em sentido mais abrangente podemos fazer alguma referência ao direito islâmico, o que não significa, necessariamente, o direito árabe. Sobre o direito islâmico, qualquer expressão pública do elemento muçulmano está acompanhada sempre de um selo tipicamente religioso, os muçulmanos se baseiam em leis (charias) e têm como referência o alcorão. Nenhuma instituição é estranha à vida religiosa, e este caráter sobre estatal reveste todas as leis e instituições que irão reger a vida cotidiana na busca de soluções para as necessidades sociais que se apresentem. Os princípios do direito positivo do ocidente são representados pela personalidade religiosa do direito islâmico. Na aplicação do direito há um predomínio da personalidade frente à territorialidade. O ente jurídico tem um matiz religioso. As fontes básicas do direito islâmico são, além do alcorão e a “sunna”, o consenso, a analogia, dedução e opinião pessoal. Há ainda fontes complementares, como a preferência, correção, costumes, presunção jurídica, etc. 

O direito islâmico possui diferentes doutrinas?
Há varias escolas jurídicas, por exemplo, temos, dentre outras, a escola de hanifí de origem persa, escola awza, escola mãlikí e a escola safí. A literatura jurídica muçulmana pode se classificar em dois grandes grupos: as obras de criação e metodologia jurídica, onde se encontram os tratados e coleções dos “hadit” e o livro sobre as fontes do direito; e as obras jurídicas de aplicação prática do direito, os “kutub al-nawãzil”, que equivalem à nossa jurisprudência, que consiste nas respostas jurídicas dadas pelos juízes a problemas concretos, bem como as leis de mercado ou “hisba” (código comercial). 

E as outras religiões?
Os cristãos e druzos, por exemplo, também se baseiam em códigos religiosos, principalmente em matérias que envolvem o direito de família e suas conseqüências, como o direito sucessório e o divórcio. Portanto, para entender o direito árabe, é necessário entender as diversas religiões; este é o ponto de partida para que o cidadão ocidental compreenda a forma de expressão do estado e do direito no oriente.  

De que forma a cultura, o pensamento, a religião e os costumes árabes influenciaram as leis e o conceito de justiça no mundo árabe? 
Bem, aí já estamos delimitando um pouco e direcionando melhor. O Islã influenciou sobremaneira o modus vivendi e a ideia de direito e de justiça. Por esta razão não podemos falar em direito árabe como uma cátedra.  

O direito nos países árabes se assemelha aos de outros países do oriente? Que características são essas?
No que diz respeito ao direito privado, direito de família ou de propriedade, por exemplo, todos estão muito subordinados às religiões e seus ritos respectivos.  No Líbano, há 18 comunidades religiosas (islâmicas, cristãs e druzas) e cada uma tem o seu estatuto para resolver questões jurídicas na maioria das matérias que envolvem o direito privado. Quanto ao Direito Ambiental propriamente dito, ainda há muito o que desenvolver no Líbano, apesar de haver inúmeros acordos internacionais sobre meio ambiente, como é o caso da proteção da bacia do Mediterrâneo e da fauna e flora marinhas.  

Qual é o conhecimento que o Ocidente tem sobre o direito árabe e vice-versa?
Ainda há uma falta de conhecimento no ocidente, quando se fala em direito islâmico. Acredito que a globalização está forçando a mudança, e os problemas ambientais obrigam o diálogo entre Estados. Acredito que estamos andando rumo à consolidação dos direitos de terceira geração (solidariedade) e caminhando em direção aos de quarta geração, isto é, a universalização do direito.  

Que benefícios essa troca de conhecimento poderia trazer para ambos os lados?
Os benefícios seriam primeiramente para o operador do direito, o acadêmico e o jurista em geral, pois é um novo paradigma importante para compreender a sociedade do século XXI como um todo. 

Você utiliza em sala de aula os conhecimentos que adquiriu durante seu pós-doutorado no Líbano? De que forma os alunos lidam com os conceitos e bases do direito árabe? 
Estou tentando motivá-los através de exemplos comparativos, mas ainda me sinto em um terreno árido. 

Por que você decidiu focar seus estudos em Direito Ambiental? 
Há muitos anos que me dedico a esta questão, desde o final dos anos 80, quando da discussão sobre a constituição de 1988, quando foi incluído pela primeira vez um capitulo sobre o meio ambiente. Foi o processo constituinte que me motivou a estudar o tema. 

Como você avalia o desenvolvimento do Direito Ambiental libanês e quais são as principais diferenças e semelhanças com o brasileiro?
No Líbano observei situações curiosas, por exemplo: no que tange ao ambiente rústico, natural e/ou cultural, as leis de proteção das reservas naturais são muito bem aplicadas, haja vista as reservas de Tannourine, onde há produção de mel, áreas de visitação restrita, como a gruta de Jeita que tem uma estrutura maravilhosa e muito bem preservada. Por outro lado, a questão do meio ambiente urbano é um caos. Percebi que tem razão para ser devido aos conflitos bélicos que são periódicos. A guerra de 2006, além de destruir a infraestrutura e mutilar a economia do país, impactou o meio ambiente, com os efeitos das bombas sobre a fauna e flora marinhas, sobre a qualidade do ar, etc. No Brasil temos leis tecnicamente muito boas, mas temos problemas na sua aplicação devido à deficiência de entes públicos qualificados para gerir.  

Que bibliografia você indicaria a alguém que tenha interesse em começar a estudar o direito no mundo árabe? 
Eu estudei a lei libanesa e a doutrina estrangeira (francesa) sobre Direito Ambiental.  Sobre o direito islâmico sugiro ler: “The origins of islamic law”, de Yasin Dutton. É uma obra que faz uma abordagem histórica e permite compreender o paralelo entre o estado e o individuo em uma sociedade islâmica, mas não se deve olvidar que no Líbano há muitas outras comunidades religiosas que não se limitam à dualidade islamismo/cristianismo, conforme comentário anterior.