“Comunidade de descendentes de árabes no Rio de Janeiro tem identidade múltipla”, diz autor
No dia 15 de dezembro ocorre no Palácio da Cidade, na capital carioca, o lançamento do livro "Árabes no Rio de Janeiro – uma identidade plural", escrito por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. A publicação conta histórias curiosas sobre a chegada dos árabes no Brasil, o contexto de origem desses imigrantes, a ocupação espacial na cidade, bem como as atividades econômicas por eles exercidas. Em entrevista para o ICArabe, o autor fala um pouco do processo de pesquisa e faz uma introdução das conclusões as quais chegou. “Até agora, não havia nenhuma publicação tratando dos árabes no Rio de Janeiro, sendo que a cidade abriga a segunda maior comunidade desses descendentes no Brasil”, diz o autor.
Quando ocorreu a maior onda de imigração árabe para o Rio de Janeiro e de onde vieram essas pessoas?
A imigração árabe em massa ocorreu na década de 1890, atingindo seu auge nas décadas de 1920 e 1930. Depois, com a criação das cotas de imigração pelo governo brasileiro houve uma redução grande desse volume. Essas pessoas eram provenientes principalmente da região da Síria e Líbano.
Qual contexto histórico motivou essa imigração?
Foram vários. Entre eles estão a crise econômica da indústria da seda na montanha libanesa; as ações de escolas missionárias protestantes; a Primeira Guerra Mundial, que gerou muita destruição e epidemias, e as ocupações imperialistas francesa e inglesa do Oriente Médio.
Que características tinham esses imigrantes em seus países de origem em termos de classe social, atividade profissional e religião? Quais atividades eles passaram a desenvolver no Brasil?
Eram basicamente cristãos. Havia, em menor quantidade, uma classe média educada, com pessoas formadas na Universidade Americana de Beirute, que incluía profissionais liberais de diversas áreas. E vieram, em maior número, comerciantes já acostumados com uma realidade econômica altamente monetarizada. Ou seja, a primeira geração era basicamente de comerciantes que, ao chegarem ao Brasil, permaneceram nessa mesma atividade, principalmente nos ramos têxtil e nos chamados armarinhos, pois já tinham experiência. Já a segunda geração passou a investir na educação superior e hoje temos descendentes de árabes de grande êxito nas mais diversas atividades, entre elas a medicina, advocacia, política, artes, etc.
Onde esses imigrantes se estabeleceram inicialmente no Rio de Janeiro?
Até 1920 se estabeleceram na região da Rua da Alfândega, no centro da cidade. Depois começaram a se interiorizar. Na capital, eles seguiram o ritmo de crescimento da cidade. Então, nos anos 30, vão para a Tijuca e depois para Copacabana, etc. A imigração árabe no Brasil é urbana, não houve um movimento de pessoas que vieram trabalhar na terra, mas alguns adquiriram propriedades rurais. Quando os árabes chegaram, a o centro da cidade já eram um núcleo de comércio, mas os árabes acabaram tomando conta porque possuíam estratégias eficazes, como a venda a crédito em grande escala.
Essas áreas ainda são ocupadas por seus descendentes ou deixaram traços de sua presença?
Sim, muitas pessoas ainda são de origem árabe, isto é, descendentes. Até hoje, a região central do Rio de Janeiro é caracterizada pelo comércio popular e isso é uma marca forte deixada pelos árabes. E as práticas de venda, de organização do espaço, de apresentação das mercadorias, a possibilidade de barganha ainda mantêm forte influência das práticas introduzidas por esses imigrantes. A própria área é chamada de SAARA, que é uma sigla de Sociedade de Amigos e Adjacências da Rua da Alfândega. Os árabes também deixaram rastros na formação da paisagem urbana com a construção de mesquitas, igrejas e com investimentos no setor imobiliário, como são os casos dos bairros Jabour, criado por Abraão Jabour, e Coelho Neto, criado por Gabriel Habib .
Criador do curso de letras árabes da UFRJ, monsenhor Alphonse Sabbagh.De que forma esses imigrantes construíram sua identidade no Brasil ao longo dos anos?
Como todos os imigrantes os árabes sofreram preconceito no Brasil, mas essa imigração assumiu uma posição ambígua. Na época, a sociedade brasileira era dividida em categorias raciais, mas os árabes não eram negros, nem amarelos, mas também não eram brancos. No início houveum discurso positivo proveniente da riqueza gerada pelo comércio, mas quando esses estrangeiros começaram a construir instituições religiosas e etnicas, como clubes, o discurso se tornou racista, inclusive na imprensa, onde, muitas vezes, se tribuiu aos árabes comportamentos grotescos. Para escapar do preconceito, muitos árabes deixaram de passar sua cultura para a família, não ensinaram o idioma aos filhos, matendo apenas algumas tradições domésticas, como a comida. Por outro lado, afirmaram sua identidade por meio do discurso de que eram herdeiros de uma grande civilização e de que eram representantes de Estados Nacionais, para contrapor o estereótipo turco.
Seu livro tem um capítulo dedicado à imprensa. Qual foi a participação dos imigrantes árabes nesse setor?
Foi enorme. De 1890 a 1950, a imprensa árabe reuniu 50 jornais e havia, incluisve, um sindicato dos jornalistas árabes. Esses periódicos eram escritos em árabe e foi o que permitiu, em grande parte, que criassem uma comunidade. Muitos títulos também circulavam no oriente Médio.
Você acha que os imigrantes árabes do RJ adquiriram características diferentes das de outros grupos que foram, por exemplo, para São Paulo, para o interior do Brasil e para a Região Norte?
Com certeza, pois esses locais possuem características diferentes. Na época, a cidade do Rio de Janeiro era a capital do Império, depois capital da República. Diferente de São Paulo, centro econômico do país, no Rio estava a diplomacia dos seus países e, por meio dela, os imigrantes puderam manter o diálogo com suas pátrias mães, ficando antenados com o que ocorria em seus países.
Hoje há um estereótipo bastante negativo do árabe muçulmano divulgado pela imprensa, relacionando o Islã ao terrorismo e à barbárie. Você acha que essa visão influencia a população brasileira?
Esse tipo de informação de fato circula, mas acho que como a comunidade árabe foi muito bem sucedida no Brasil, esses estigmas adquirem peso relativo, de forma que essas pessoas não ficam tão vulneráveis a esses estereótipos.
De que forma os descendentes de árabes manifestam hoje sua identidade com a origem?
A identidade dos que hoje formam a comunidade de descendentes de árabes é múltipla. Os laços com as suas origens se mantêm pela relação afetiva com algum membro da família, pela culinária, pelo aprendizado da língua. Mas o conteúdo cultural, em cada membro da comunidade árabe, foi mudando com o passar do tempo e a vinda das novas gerações. Algumas pessoas se consideram árabes pela tradição familiar, alguns participando de instituições árabes, outros usam a origem como fonte de inspiração, como é o caso de escritores e atores de descendência árabe. Já os acadêmicos usam isso como forma de criar uma problemática intelectual, instituir um estudo e se debruçam sobre temas da região.
Como surgiu a ideia e a oportunidade de escrever esse livro?
Desde 2001 pesquiso o Islã na Síria e, desde 2003, estudo a comunidade muçulmana no Brasil. Sabendo disso, a Editora Cidade Viva me convidou para escrever esse livro, o que foi um incentivo par mudar um pouco o foco do meu trabalho, sair da questão religiosa e olhar para a étnica. Fazendo isso, notei que até agora, não havia nenhuma publicação tratando dos árabes no Rio de Janeiro, sendo que a cidade abriga a segunda maior comunidade de descendentes no Brasil.
Em quanto tempo você fez o livro?
A pesquisa foi feita de abril a novembro do ano passado. Pesquisei, além de literatura em geral sobre o tema, produção da própria comunidade sobre a sua história, em árabe e português, fiz levantamentos no Arquivo Nacional, em instituições, igrejas e acervos pessoais, e entrevistei 30 pessoas que se consideram árabes, entre elas estão Demétrio Habib, criador do Saara, o maior centro de comércio de rua do Rio de Janeiro, o ator de origem síria Mouhamed Harfouch, que usa a identidade árabe no processo criativo de seu trabalho, o criador do curso de letras árabes da UFRJ, monsenhor Alphonse Sabbagh, os deputados federais Jorge Bittar e Jandira Feghali, o escritor Alberto Mussa, entre outras personalidades, além de engenheiros, historiadores, corretores de imóveis, padres e outros cidadãos anônimos.
Série Imigrantes do Rio de Janeiro
O livro "Árabes no Rio de Janeiro – uma identidade plural" é o terceiro da série "Imigrantes no Rio de Janeiro", da Editora Cidade Viva, com patrocínio da Light e Lei Estadual de Incentivo à Cultural do Rio de Janeiro. O primeiro volume abordou a imigração portuguesa, seguido por um livro sobre a imigração judaica. A publicação tem 200 páginas e será vendido em livrarias do país, além de distribuído por seus organizadores. Para a obra, Rocha Pinto teve como assistente de pesquisa Natália Rodrigues. Interessados em adquirir o livro em São Paulo devem entrar em contato com a Catavento Distribuidora de Livros.