A atualidade do pensamento árabe sobre a tradução

Qui, 26/11/2009 - 16:50
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Atualmente é vasta a produção intelectual em torno de questões relativas à prática da tradução, embora esse tema tenha despertado o interesse de estudiosos ainda em épocas remotas. No entanto, nota-se uma escassez no que diz respeito à divulgação em língua portuguesa das ideias desenvolvidas por teóricos árabes no campo da tradução. Foi com essa preocupação em mente que desenvolvi dissertação de mestrado (“Os clássicos árabes da teoria da tradução", que pode ser lida integralmente em: http://www.pget.ufsc.br/curso/dissertacoes_defendidas.php) no curso de Pós-graduação em Estudos da Tradução, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Os objetivos da dissertação incluíram a tradução para o português de textos sobre a prática da tradução escritos por estudiosos árabes em diferentes épocas e o cotejo das ideias desses autores com as indagações de dois teóricos alemães, com a finalidade de se descobrir possíveis semelhanças no pensamento desses estudiosos. Os textos traduzidos foram escritos por al-Jáhiz (776-868), as-Safadi (1296-1363), Suleimán al-Bustáni (1856-1925) e Taha Hussein (1899-1973). As ideias contidas nesses textos foram confrontadas com algumas considerações teóricas de Schleiermacher (1768-1834) e Humboldt (1767-1835), intelectuais cuja obra ainda nos dias de hoje exerce grande influência no campo dos Estudos da Tradução. É desse estudo comparativo que trata o presente artigo. A análise dos textos em questão logrou demonstrar algumas semelhanças entre o posicionamento dos teóricos alemães e aquele dos estudiosos árabes. Por exemplo, a leitura dos textos de Humboldt, Taha Hussein (??????) e al-Jáhiz (??????) revela, por um lado, uma mesma preocupação com a atividade da tradução, qual seja, a dificuldade de se conciliar forma e conteúdo, ou forma e sentido, sobretudo na transposição de obras literárias, e por outro lado, visões semelhantes no que diz respeito ao papel do tradutor e aos conceitos de língua e cultura. No século IX, al-Jáhiz, importante prosador nascido em Basra, já se deparava com a questão da traduzibilidade da poesia, tema esse que veio a ser abordado também por Humboldt, quase um milênio mais tarde. Para al-Jáhiz, a dificuldade, senão a impossibilidade, de se traduzir a poesia reside principalmente no fato de que, na tradução, rompe-se a forma poética e elimina-se a métrica, justamente os elementos portadores da beleza de um poema, na visão do autor. Segundo al-Jáhiz, caso a poesia árabe tivesse sido traduzida para outras línguas, ter-se-ia destruído exatamente aquele elemento que constituiria a novidade para os leitores estrangeiros, visto que, no que diz respeito aos significados, nada haveria de novo para esses leitores. Humboldt, tendo traduzido para o alemão a obra Agamêmnon, do poeta grego Ésquilo, escreveu uma introdução, na qual discute alguns aspectos teóricos e práticos da tradução tal como ele os vivenciou durante a tradução desta obra. O seu principal argumento é que, se não levarmos em consideração as palavras e expressões que se referem somente a objetos físicos, não nos é possível encontrar numa língua palavras às quais correspondam com perfeição palavras de uma outra língua. Possivelmente, isso se deve ao fato de que as palavras refletem a experiência de seus falantes, e esta, por ser sempre situada, difere de uma cultura para outra. Portanto, salienta Humboldt, uma tradução que busque alcançar um grau elevado de fidelidade, torna-se desviante por esse mesmo fato. De modo semelhante, as-Safadi (??????) demonstrava ter grande preocupação com as maneiras ou métodos de traduzir. Segundo este autor, existiam à sua época dois métodos bem difundidos, os quais relaciona aos seus principais adeptos. O primeiro, que era o adotado por Yuhanna Bin al-Bitríq (??????? ?? ?????) e Ibn an-Ná’ima al-Homsi (?????? ??????? ???), consistia em examinar uma palavra árabe que lhe fosse sinônima. O segundo método, por sua vez, empregado por Hunayn Bin Ishaq(???? ?? ????) e al-Jawhari (???????), consistia em analisar cada frase com o intuito de compreender o seu significado e, posteriormente, traduzi-lo para o árabe, sem que se preocupasse com a equivalência entre as palavras. É interessante notar que tal tema, aproximadamente cinco séculos mais tarde, viria a ocupar um lugar relevante entre os interesses de Schleiermacher, um dos mais destacados teóricos ocidentais do século XIX.
Segundo Schleiermacher, quando o objeto da tradução é de natureza prosaica, é comum que não haja dificuldade para se encontrar numa língua palavras correspondentes àquelas de uma outra, fato que confere à tradução um caráter quase mecânico. Todavia, quando a tradução tem por objeto produções literárias ou científicas, surgem imediatamente duas questões que tornam o trabalho mais complexo. O autor argumenta que, se as palavras de uma determinada língua tivessem correspondentes exatas numa outra, a tradução de textos artísticos e científicos continuaria a ter um caráter mecânico. Contudo, afirma Schleiermacher, com exceção das línguas aparentadas entre si, não há palavras de uma que abarquem a totalidade de sentidos contida nas palavras de outra língua, o que faz da atividade da tradução uma tarefa de grande complexidade, tamanha a vastidão de conhecimento específico e o domínio das duas línguas em questão que tal tarefa impõe ao tradutor. Todos os autores discutidos nos parágrafos anteriores ofereceram, cada um à sua época, contribuições teóricas importantes e produtivas para o campo da tradução. No entanto, é interessante citar que, obviamente sem o intuito de diminuí-los, alguns desses autores foram controversos também em questões relativas a uma suposta superioridade de suas culturas em comparação com as demais. Num comentário que poderia soar chauvinista aos ouvidos modernos, Humboldt defende a ideia de que o destino intelectual de uma nação é definido ou caracterizado pelo modo como na sua língua “as letras se combinam em sílabas, as sílabas em palavras e como essas palavras estão no discurso em uma relação de tempo e de som”, graça essa concedida aos gregos e, em épocas recentes à língua alemã, sendo esta última provavelmente a única “capaz de reproduzir este ritmo [o ritmo dos clássicos gregos]”. Surpreendentemente, atitude semelhante a respeito do árabe já manifestara al-Jáhiz aproximadamente mil anos antes. Este autor afirma, “Diz-se: o mérito da poesia se limita aos árabes e àqueles que falam árabe. A poesia não se pode traduzir, nem é possível a sua transposição. Quando se verte, a forma poética se rompe, e a métrica se elimina; sua beleza desaparece e se perde aquilo que está relacionado à admiração. Tal não ocorre com a prosa.” A breve discussão apresentada aqui leva-nos a algumas conclusões importantes. É possível verificar tanto nos teóricos árabes quanto nos alemães, e em momentos bastante distintos, inquietações relacionadas ao ato da tradução. Como buscou-se demonstrar grande parte da dificuldade imposta ao tradutor deriva do caráter único da organização conceitual subjacente a cada língua, e em consonância com as culturas particulares. Por outro lado, há também problemas resultantes da estratégia de tradução utilizada pelo tradutor. Com o que foi exposto, espera-se ter demonstrado certa coincidência ou continuidade seja no que diz respeito aos aspectos da tradução considerados problemáticos tanto por autores árabes quanto por autores ocidentais, seja no que diz respeito às possíveis estratégias propostas para superar tais dificuldades e possibilitar a tradução, sobretudo no campo das artes.