A fé do Islã nos questiona
Muitas são as leituras que se estão fazendo acerca das reações muçulmanas contra as charges da figura de Maomé. Das que li, ao meu ver, nenhuma delas apontou o cerne da questão; quem mais se acercou foi Mauro Santayana aqui no JB. Precisamos ir mais a fundo na análise, pois ela esconde o estopim de uma provável guerra de civilizações preconizada por S. P. Huntington em seu discutido livro O choque de civilizações(1996).
Equivocam-se os que pensam se tratar de fundamentalismo. Para o Islã, por
detrás das charges, está a cultura moderna do Ocidente hoje globalizada. É tida
como sem fé, imoral, exploradora, belicosa, arrogante e violadora de tratados da ordem mundial. Ela se julga universal e por isso digna de ser imposta a todo mundo: um pretenso universalismo que se transforma em imperialismo, como se vê explicitamente na política externa de Bush e em declarações de Berlusconi. Há que se reconhecer que a maior fonte de instabilidade e de possível conflito num mundo pluricivilizacional é exatamente o Ocidente. Sua arrogância, embutida também nas igrejas cristãs, pode nos levar todos a perder.
Para o Ocidente, por detrás das reações às charges está o radicalismo islâmico fundado no orgulho de sua cultura e no sentimento de superioridade por manter viva a fé pública em Deus. Está também o rancor pelo fato de seus territórios serem militarmente ocupados em razão do petróleo e de serem considerados anti-modernos, fundamentalistas e nichos do terrorismo mundial.
Confrontamo-nos aqui com preconceitos mútuos que ressuscitados no contexto
globalizado podem gerar incontrolável violência. Mas o verdadeiro pomo de discórdia reside na fé e no lugar que ela deve ocupar na vida pessoal e social. As sociedades modernas ocidentais são filhas da razão ilustrada. Só se legitima aquela realidade que passa pelo crivo da razão crítica. Por esse crivo não passou a fé tradicional. Ela não é fator determinante na sociedade. Foi relegada ao mundo privado. Vendo de fora, o
Ocidente socialmente não tem fé. Vive-se etsi Deus non daretur ('como se Deus
não existisse') na famosa formulação do teólogo-mártir do nazismo D. Bonhoeffer,
que anteviu esse obscurecimento social da fé.
Esse ponto de vista é inaceitável para o Islã. É impensável uma sociedade
sem uma dimensão institucional de fé. É não ver sentido no universo, sustentado
pelo Criador do céu e da terra, é desconhecer os seres humanos como irmãos e
irmãs. Isso não funda necessariamente um estado teocrático como se comprova
hoje na Indonésia, o maior país muçulmano do mundo. O Estado reconhece
explicitamente na sua organização a fé em Deus, sem identificar esse Deus com o
do Islã, do Cristianismo ou de outras religiões. É um estado não confessional,
com forte identidade nacional e fé ecumênica. A herança irrenunciável de Maomé é esta proclamação pública de Deus e da irmandade de todos os seres humanos, valores tidos no Ocidente por pré-modernos.
Fazer caricaturas do Profeta é pôr à irrisão esta fé que orienta a vida de milhões. Daí a reação compreensível de muçulmanos do mundo inteiro. A fé é central no Islã enquanto é irrelevante no Ocidente. As charges procuram ridicularizar esta diferença. O desrespeito ao Sagrado põe à amostra a irrefreável decadência espiritual do Ocidente.