O Iraque na TV brasileira
Se a Guerra do Golfo (1990/1991) foi a primeira considerada “televisiva”, a invasão em 2003 se valeu do avanço da tecnologia da telecomunicação, dos novos dispositivos que simplificavam a transmissão de imagens e geração dos links (entradas ao vivo) do campo de batalha. Isso possibilitou que os jornalistas tivessem maior mobilidade – ainda que relativa, pois era uma zona de guerra – e propiciou também o surgimento da figura dos correspondentes embedded, que acompanhavam tropas norte-americanas na invasão por terra. O fato foi polêmico até mesmo nos Estados Unidos, uma vez que para não colocar em risco o deslocamento dos soldados, o veículo de comunicação – no caso a CNN – tivera que firmar um compromisso abrindo mão de tudo o que poderia restar de reserva de bom jornalismo: sem furos, localização, identificação. Era a história total e assumidamente “chapa branca”, ou seja, só um lado, somente uma versão, após a aprovação das Forças Armadas. Além dessa relação promíscua, o avanço tecnológico reforçou também a presença das imagens de TV também no cotidiano dos militares norte-americanos envolvidos na guerra. Um relato impressionante foi feito ao cineasta Michael Moore, uma das poucas vozes que, desde o começo da guerra, era contrário à invasão. Publicamente ele repudiou a decisão de Bush durante a entrega do Oscar e, por isso, foi acusado de ser antipatriota, pois criticava em um momento em que “homens e mulheres davam a vida no front”. Mas ao criticar Bush e sua política, Moore começou a receber e-mails e cartas de militares que também não concordavam com os bombardeios, mas não tinham a quem contar. Um deles é de um oficial que estava em um dos porta-aviões e, enquanto apertava botões que liberavam mísseis, acompanhava pelas transmissões da rede CNN os projéteis explodindo em terra. Tamanha era a proximidade e intimidade que os recursos modernos trouxeram ao trato da imagem que não havia mais limites.
E foi nesse contexto que as emissoras brasileiras acompanharam a cobertura de guerra. Ao estudar as fontes de informação usadas para mostrar o que acontecia no Iraque aos brasileiros, copiou-se um modelo sem que fosse aproveitada a chance de dar um tratamento local ao tema. Embora por aqui tenha-se usado fontes diferentes das usadas pela grande imprensa até então, como as rede Al Jazeera (em árabe, a Al Jazeera English foi lançada anos depois) e Al Arabiya, o material foi subaproveitado, enquadrado aos moldes do telejornalismo norte-americano: rápido, curto, superficial. Ainda que a linguagem da televisão seja mesmo clara, direta e simples, algumas oportunidades foram perdidas na abordagem do tema. A televisão pública, que tem como compromisso informar e formar, abriu um debate sem dar voz ao iraquiano, no melhor exemplo saidiano “do Oriente visto pelo Ocidente”. A repetição de estereótipos pode ser melhor verificada na TV aberta, nas entradas ao vivo. Mostrava-se muitas vezes tecnologia árabe (imagens de emissoras do Oriente Médio que abasteciam o mundo) mas com informações oficias dos Estados Unidos. Nesses momentos, repetia-se a frase tão propalada pelas Forças Armadas, de que era feito “um bombardeio cirúrgico contra os palácios de Saddam Hussein”. De uma hora para outra, milhões de pessoas, habitantes da capital iraquiana, desapareciam como num passe de mágica. Bagdá era reduzida apenas a palácios e fortificações do ditador. Nos primeiros meses, quando a situação corria – mais ou menos – conforme o previsto por Washington, a cobertura replicava o modelo das imagens aéreas, explosões noturnas. Parecia mesmo que não havia pessoas naquele país, apenas palácios, armas biológicas, bombas químicas, Saddam, Baath... Milênios de história da civilização haviam sido reduzidos a um baralho, com os rostos mais procurados do regime. Esse discurso maniqueísta foi aqui repetido, por fórmula, despreparo... por descaso.
Conforme a guerra se prolongou, o conflito ganhou rostos humanos, pessoas mortas, feridas, torturadas. Situação mais complexa e uma rede de interesses, semelhanças, diferenças e poderes começou a pesar. Os fatos já não podiam ser reduzidos em manchetes, apertados em colunas, narrados em um minuto. Ao mesmo tempo que crescia a complexidade, diminuía o interesse da imprensa e o espaço na TV. Hoje, a poucos meses de se completar uma década da invasão, os carros-bombas ainda explodem, mas não ocupam mais tanto espaço nos telejornais. Pouco se fala sobre o Iraque. E nenhuma linha, nenhuma nota de página ou chamada de programa sobre as gerações perdidas nos últimos 10 anos, e que a tevê não mostrou.
Veridiana Morais é jornalista, Mestre em Língua, Literatura e Cultura Árabe pela FFLCH (USP)
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