“Acho que há regiões por lá que vão ficar desertas, há cidades que já estão completamente destruídas por Israel”
Icarabe: A emigração árabe, principalmente libanesa, passou por muitas fases e ocorreu por uma série de motivos. Você destacaria algum - problemas econômicos, o domínio otomano, depois a guerra civil -, como o mais importante ou decisivo? André Gattaz: Existiram fases diferentes. A questão econômica foi preponderante, esteve presente em todas as fases da emigração, mas no seu decorrer, ela foi tendo características diferentes. No começo, ela ocorreu por oposição ao império turco-otomano, pois no caso desses imigrantes que vieram, havia oposição e descontentamento ao recrutamento de jovens pelo império. Posteriormente, foi a oposição aos franceses. Algumas pessoas vieram porque não gostavam de interagir com os franceses na região. Mas depois da Segunda Guerra Mundial, começaram a existir outros problemas no Líbano. Em determinado momento, por causa das divisões sectárias entre os diversos grupos de religiosos no Líbano, começou a haver problemas políticos. Então, na segunda metade do século, os problemas políticos foram cada vez mais se agravando e se sobrepondo aos problemas econômicos. O auge disso é quando na década de 70 e de 80, que há a guerra no Líbano, as pessoas têm que realmente fugir. Então, ao longo de cada fase, os motivos políticos vão mudando e cada vez ficando mais graves. Antes as pessoas fugiam para não servir o exército, depois elas fugiram pelas guerras, e agora isso está se repetindo novamente. Aquilo que aconteceu na década de 80 se repete e o pessoal está fugindo do Líbano. Icarabe: Você acredita que possa haver uma nova onda de imigração libanesa para o Brasil? Gattaz: Sem dúvida. Israel está com um plano de destruição sistemática do Líbano e algumas pessoas esperam o momento de voltar. Como muita gente do sul do Líbano, mas muita gente mesmo, tem parente no Brasil – veja que tivemos até brasileiros mortos ali na região -, como é a região que tem a maior quantidade de imigrantes no Brasil, é possível que boa parte dessa gente deslocada temporariamente do sul do Líbano acabe tentando vir pra cá. Acho que há regiões por lá que vão ficar desertas, há cidades que já estão completamente destruídas por Israel. Icarabe: Essa agressão pode chegar a ser o momento de maior violência sofrida pelo Líbano? Gattaz: Espero que não. Pois a última vez que Israel invadiu, só do lado israelense, foram 20 mil mortos e a invasão israelense fez parte de um conjunto de conflitos que envolveu a invasão síria, os exércitos americanos, exércitos da ONU e todos os grupos libaneses em um conflito que deixou milhares e milhares de mortos. Então tomara que não. Porque agora, pelo menos, não há guerra civil no Líbano. E nem parece que vai haver, pois a população está unida. Espero que Israel comece a sofrer mais pressão da comunidade internacional, o que é meio difícil. Mas a outra guerra foi muito violenta, por isso espero que essa não seja tão violenta. No entanto, o ritmo já é preocupante, pois parece que as mortes já chegam a mil. Icarabe: Mas no cenário que se desenha, não há calma aparente à vista? Gattaz: Não, não parece. Icarabe: A união da população libanesa, até entre diferentes grupos, surpreende de alguma forma? Gattaz: Nos dois primeiros dias do conflito, quando os bombardeios de Israel foram localizados, mais ao sul, ao aeroporto, a população libanesa, boa parte, se colocou contra o Hizbollah, começou a criticá-lo duramente por agir daquela forma, seqüestrando os soldados israelenses e, posteriormente, jogando foguetes em Israel. Só que isso mudou completamente por causa do tamanho da agressão sionista. A agressão do Hizbollah parece agora pequena perto da agressão sionista. Podia-se dizer, “Não deveria seqüestrar os soldados”, tudo bem. Mas se o problema envolveu os soldados, que se restringisse aos soldados. Foram mortos seis e seqüestrados dois soldados israelenses. Mesmo que se tivesse que responder a isso, ao ver o tamanho da agressão israelense, matando crianças, bombardeando áreas civis, hospitais e ambulâncias, as pessoas têm percebido, e há correspondentes em Beirute dizendo isso, que a população toda está apoiando o Hizbollah e que eles vão sair como um grupo político fortíssimo. Mesmo que sejam desmilitarizados, pela questão da presença dos estrangeiros, vão sair como um grupo político fortíssimo, até pan-árabe, fora do limite libanês. Mas a tendência para a escalada do conflito existe. Icarabe: Voltando à questão da imigração, há a idéia de que a maioria dos imigrantes libaneses eram a cristãos árabes. E quanto à migração de muçulmanos, isso ocorreu? Gattaz: Eu não consegui uma estatística que me desse uma idéia exata disso, pois as estatísticas imigratórias já são confusas em geral, e no caso dos libaneses é mais confusa ainda. No começo, eles eram registrados como turcos, depois como sírios, depois como sírio-libaneses. Até 1940, isso acontece, não tem muito uma coisa unificada. Agora é capaz que o Museu da Imigração tenha estatísticas mais avançadas do que na época de minha pesquisa. De outra forma, como não tinha estatística, pude ter uma visão empírica. O que percebi é que há uma grande quantidade de muçulmanos em diversas regiões do Brasil e que a partir da década de 50 a grande maioria dos imigrantes foi de muçulmanos. Exatamente porque depois da década de 50 o poder foi dividido no Líbano, os cristãos foram beneficiados pela França quando ela saiu e os muçulmanos começaram a emigrar. Também porque tinham maiores problemas econômicos, eles vinham do sul e do vale do Bekaa, basicamente. Eles emigraram em grande número para a Tríplice Fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina). Na cidade, Foz do Iguaçu, você ouve árabe sendo falado na rua porque 10% da população é libanesa. Mas a historiografia da imigração libanesa ignorou isso até o meu trabalho e um outro trabalho anterior ao meu de uma mestranda da USP, Samira Abel, que fala especificamente da imigração muçulmana. Percebi que há essa comunidade que foi ignorada pela historiografia e que é forte e poderosa. Já há mais de 50 mesquitas no Brasil. Lógico que não são só libaneses, mas o islamismo começa no Brasil com esses imigrantes libaneses, que depois passa a outros grupos nacionais. Inclusive há muitos brasileiros conversos. Há três tipos de muçulmanos aqui dentro. Há muçulmanos de origem muçulmana e de descendência árabe, de afro-descendentes, especialmente na Bahia, de muçulmanos que vinham da África - e os descendentes desse pessoal estão começando a retomar essa origem histórica do islamismo - e um terceiro grupo de brasileiros sem ligação com esses dois grupos e que se converteram ao islamismo. Icarabe: Na sua pesquisa, você conseguiu ter uma idéia de como se dá a emigração de outras populações árabes, como os sírios? Gattaz: Por cima, me refiro um pouco aos sírios, sem muitos detalhes. Os libaneses representem em uma estatística também empírica, não muito exata, 70% dos imigrantes árabes. Além de libaneses, houve sírios, egípcios e palestinos, basicamente. Deve ter alguma coisa de árabe-saudita e também iraquianos. Mas desses grupos árabes, os libaneses devem ser 70%. Icarabe: Os sírios têm uma trajetória parecida com os libaneses? Gattaz: No começo, quando eles vieram no começo do século XX, mal havia distinção entre Síria e Líbano. O Líbano, até 1920, era apenas uma região, não existia como entidade autônoma. Os franceses que criaram o Líbano como entidade autônoma. Quando meu avô nasceu no Líbano, não existia o país, era a Síria, e ele se declarava sírio, porque a região que ele nasceu, no sul libanês, pertencia à Síria e havia unidade histórica com a Síria. Icarabe: Há confusões como essa, de se acreditar que sírios e libaneses são a mesma coisa? Gattaz: As características físicas e culturais de ambos são praticamente indistintas. Você não consegue distinguir, a não ser que você seja da região, mas o brasileiro não distingue o sírio de libanês. Nariz grande, fala árabe, come quibe, e, além disso, quando eles vieram, eles eram confundidos muito com os turcos, vinham com passaporte turco. E não veio imigrante turco para o Brasil, o que veio foi imigrante sírio e libanês que quando chegava era considerado turco. E também há uma coisa que as pessoas não distinguem, as religiões. O que as pessoas acham é que todo árabe é muçulmano, ou que todo muçulmano é árabe, confunde judeu com árabe e com muçulmano, não sabem que um judeu pode ser árabe, ou pode ser de outra origem étnica. Uma das minhas primeiras preocupações quando fui escrever minha tese era justamente esclarecer isso, porque no Brasil o pessoal faz uma confusão danada com todos esses temas sobre o Oriente Médio. Icarabe: E quanto a casos de outras populações árabes que têm uma outra trajetória de migração, como egípcios e palestinos? Gattaz: O caso egípcio, conheço pouco. Os palestinos já têm uma caso mais peculiar, pois vieram depois das levas de expulsão, em 1948 e 1949, e depois em 1967. Depois houve uma nova leva, nos anos 90. Então os palestinos têm um caso bem específico, pois está totalmente ligado aos avanços e deslocamentos de população provocados por Israel. E uma outra coisa. Os palestinos têm muita ligação com os libaneses, inclusive familiares. Os palestinos fugiram para o Líbano e acabaram vindo para o Brasil com passaporte libanês ou jordaniano, casaram com libaneses, então há uma certa ligação sentimental entre palestinos e libaneses. Icarabe: Como se constrói e se mantém a identidade libanesa no Brasil? Gattaz: O que percebi mais foi que, justamente pelo fato de o Líbano ser um país artificial, criado artificialmente, as identidades não são propriamente com o país Líbano. Isso até acontece em alguns casos, mas normalmente a identidade passa mais pela região de origem e pela religião. Então, eles se agrupam - isso os primeiros imigrantes, depois, na segunda e terceira geração, isso se perde -, mas os imigrantes se agrupam em colônias que representam os grupos religiosos e as regiões de origem. Tanto que no começo, os clubes, Homs, Marjayoun, representavam as cidades de origem e não havia o clube Líbano. Só posteriormente foram se unindo e ficou somente um clube Líbano ou Sírio. Então, eles se identificam com a região de origem e com a religião propriamente. Também não há muita identidade entre os libaneses muçulmanos e libaneses cristãos, não convivem muito nos mesmos ambientes. Não que haja oposição, pois há inclusive casamentos, mas de modo geral os grupos são distintos. Se você perguntar, um libanês vai se identificar como de Marjayoun, como muçulmano, ou “sou do Vale do Bekaa”, e por outro lado, em outro extremo da formação da pessoa, ele tem a identificação com o árabe, com o arabismo, com a cultura árabe. A cultura árabe está dentro do libanês. Por exemplo, a esfiha, que é uma comida libanesa, é, na verdade, uma comida árabe, pois existe na Síria e também no Iraque. A língua, as tradições culturais de um modo geral, não são libaneses, são árabes. Então, os imigrantes libaneses de um modo geral têm também uma identidade com o arabismo muito forte, com a cultura árabe e as tradições árabes. Então, a própria questão Líbano acaba ficando um pouco esquecida. A não ser por um grupo específico, como o grupo de maronitas, pois ao redor deles foi criado o Estado do Líbano e eles fazem questão de se sentir mais como libaneses do que como árabes. Icarabe: De forma geral podemos dizer que esses imigrantes, ao lado de regionalidades e religiosidade, cultivam o caráter árabe de sua identidade? Gattaz: Isso é uma coisa relativamente forte, as pessoas têm orgulho, um orgulho árabe, que nesses últimos cinco anos, depois do dia 11 de setembro, ficou um pouco difícil. E aí as pessoas foram para dois lados, ou esconderam, ou começaram a ser mais orgulhosos ainda, que é o meu caso. Digo que sou árabe mesmo. Acho que a cultura árabe é relativamente forte, ainda mais no Brasil, pois há muitos descendente de árabe e de libanês por aqui. Icarabe: Mas essa influência árabe chega muito antes dos imigrantes. De certa forma, podemos dizer que um pouco dela chega através dos portugueses? Gattaz: Um pouco? Pouco nada. Pega o Antônio Houaiss, ele estima que 25% das palavras de língua portuguesa são de origem árabe. E se 25% das palavras são árabes, 25% dos costumes são árabes também. Coisas como tecnologias agrícolas, frutas – laranja e limão -, arroz, açúcar, café, estou falando de coisas que a gente come todo dia. Isso foi levado para a Europa pelos árabes. A laranja é da Pérsia (Irã), o arroz é da Índia. Outras coisas, como táticas comerciais e o número zero. O zero chegou à Europa por meio dos árabes, os europeus não tinham o conceito de zero. Então, a influência dos árabes na Espanha, no sul da Espanha, e em Portugal, onde ficaram por mais tempo, é enorme. Ou seja, o Brasil já teria uma imensa influência árabe mesmo sem os imigrantes. Icarabe: Mas a população brasileira desconhece essa influência. Inclusive, no senso comum, aqui predomina a imagem distante e exótica do árabe, e se ignora que essa cultura é muito mais enraizada do que se imagina. Gattaz: E nesses últimos anos, no Brasil, se forma uma imagem muito negativa do árabe. E não é assim, ele é mesmo muito mais próximo do que a gente imagina. As ligações, inclusive, entre o candomblé e o islamismo, há uma influência dentro do candomblé, essa história do branco, da roupa branca. Várias peculiaridades entre as culturas que se ninguém alertar, a gente não vai saber.