Fotógrafo fala de experiência nos territórios ocupados
Em 2002, Rogério Ferrari, fotógrafo e graduado em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia, resolveu conhecer de perto um conflito que apenas pudera acompanhar por fontes da imprensa. Por 4 meses, durante a Segunda Intifada, ele andou pelos territórios ocupados da Cisjordânia e, na época, de Gaza. Ele se lançou a retratar algo que pela complexidade da situação e pela crueldade da relação dominante/dominado, não poderia apenas ser um artigo ou registro momentâneo do que vira. Precisava ser algo mais definitivo. Virou um livro, “A Eloqüência do Sangue”.
O livro é consequencia de um trabalho independente que tomou do fotográfo cerca de dois anos. De Salvador à Ramalah, Gaza e Rafah, Ferrari procurou construir um documento histórico que registrasse e denunciasse o tamanho da tragédia, coisa que poucas pessoas têm noção.
Sua tarefa não era fácil. Determinado a unir jornalismo e militância, seu objetivo poderia ser confunido com o de tantos outros jornalistas e fotógrafos que fazem a cobertura do conflito. "Os palestinos têm um certo rechaço, pois estão sendo fotografados constantemente, e tem ali jornalistas. Mas aquela função não tem servido muito à causa deles". Mesmo crítico, o fotógrafo prefere não julgar a conduta dos fotógrafos que cobrem os territórios. "Só o fato de o cara estar ali como profissional já tem valor, pois ele está documentando aquilo, independente da maneira como o trabalho dele vai ser veiculado, da edição que se faça, da leitura subliminar que se coloque". No entanto, uma outra atitude vista por Rogério é inaceitável, a espetacularização da guerra. "Alguns estão contaminados por esse espírito da guerra como espetáculo, daquilo como algo excitante, é bom que aconteça porque traz adrenalina, aquele espírito que está desprovido de qualquer ética. São 'voyuers' mesmo".
Na entrevista que segue Rogério Ferrari fala de sua passagem por cidades palestinas, a opressão do exército israelense, a ajuda das populações locais na realização de seu trabalho e a análise que faz da cobertura dos correspondentes nos territórios ocupados.
Icarabe: Como e por onde você começou a viagem?
Ferrari: Consegui viabilizar a viagem com uma agência de comunicação que me ajudou na passagem, e fui com pouquíssimos recursos, apensa cinqüenta filmes, muito pouco. Saí de Salvador, fui para Paris, e depois fui para Amã, na Jordânia. Fiquei dois dias lá para me informar. Daí entrei em território palestino controlado por Israel. Fui a Ramalah e Jerusalém. Como tinha muito pouco dinheiro, fui tratando de ver como fazer o trabalho no limite das condições de filmes e equipamento, e por sorte fui recebido e pude conhecer muitos palestinos. Passei uma grande parte do tempo vivendo com eles, comendo, convivendo, na mesma condição. Metade do tempo fiquei em Rafah, em casas de famílias palestinas, depois em Gaza morei na casa de um campo de refugiados assim que conseguiram uma casinha mínima para mim.
Icarabe: Quando você chega lá, do que pôde observar, qual foi o maior contraste entre o que a gente fica sabendo na imprensa e o que realmente acontece?
Ferrari: O contraste maior é saber que diariamente crianças estão sendo assassinadas com tiro certeiro na cabeça. O que eu vi foi expressão maior da covardia do exército israelense e a expressão maior da opressão, da humilhação ao povo palestino, e depois a cumplicidade da comunidade internacional, porque é intolerável você ver e saber que não se trata de uma guerra entre dois exércitos, mas sim do sexto, quinto maior exército do mundo, humilhando e matando um povo cercado. Com o agravante que as maiores vítimas são as crianças. O que eu vi de mais absurdo e de mais revoltante, esse fato cotidiano que são as de crianças sendo mortas diariamente, que as pessoas do mundo inteiro, na sua maioria, não têm a menor idéia de que isso acontece. O noticiário reverbera na imprensa um atentado de homem-bomba, mas esse fato cotidiano de as crianças estarem sendo mortas não aparece. Então isso me deixou indignado, com uma sensação de impotência muito grande, com uma revolta muito grande porque isso está sendo permitido por nós, pelo mundo na medida em que é cúmplice.
Icarabe: A mídia colaborava para ocultar esse tipo de quadro?
Ferrari: Que há uma conivência, que há uma parcialidade, sim. Os grandes meios, as grandes agências de notícias estão reféns de interesses sionistas no mundo. Basta ver que grandes meios de comunicação no mundo têm capital sionista. Eu digo sionista porque acredito que é preciso dizer que há uma diferença entre ser judeu e ser sionista.
Acho, então, que a mídia estigmatiza os palestinos como terroristas, não entra no mérito do problema, de maneira que, da forma que é veiculado o problema, o conflito sempre coloca os palestinos como fanáticos terroristas. Não deixa claro que aquilo ali é uma coisa absurda, imaginar que um povo teve tomada sua terra e que hoje, vítima do que é, está sendo negado seu direito. Então acho que a mídia não está sendo honesta.
Icarabe: Em determinado momento, há uma declaração de um palestino que diz: “o mundo deve reconhecer o nosso direito. A imprensa deve mostrar a verdade, a dor dos palestinos. Ela mostra a razão dos israelenses”, e numa outra parte diz “queria dizer para os povos do mundo que nos dêem paz, que façam com que os israelenses saiam de nossas casas”. Existe esse espírito entre a população de lá, eles esperam desesperadamente da comunidade estrangeira algum tipo de atitude como forma de acabar com o conflito?
Ferrari: Claro, tem essa esperança, essa expectativa porque eles se vêem cercados. Aquilo de alguma forma está sendo permitido pela ONU e pela comunidade internacional. Eles têm clareza de que estão vivendo uma humilhação diária e são tratados como animais da pior espécie por parte exército israelense e se perguntam, ‘como o mundo permite isso’? Mais adiante há um depoimento longo em que um deles diz ‘quando um de nós e quando nós estamos passando tudo isso, que vem de estranho a nossa casa, fazem o que fazem, como esperar que um jovem palestino diante da sensação de revolta, diante da impotência, não resolva fazer algo, e que esse algo, na maioria das vezes, só tem a possibilidade de ser feito através de seu corpo, botar uma bomba em seu corpo e explodir numa rua israelense’. É um problema que tem uma dimensão, que de longe, até mesmo aquelas pessoas mais informadas, mais conscientes, não alcança perceber o tamanho da tragédia. Porque, até eu, no meu caso, tenho muito claro que uma coisa é a gente estar informado por notícias, que por mais aproximadas que sejam da realidade, estão longe de dar a dimensão da tragédia. É uma coisa que é urgente resolver.
Icarabe: Que tipo de escolha você fez para a edição do texto e das fotos no livro?
Ferrari: Houve uma prioridade de mostrar as conseqüências da opressão israelense, uma intenção clara de mostrar realmente as conseqüências da ocupação israelense. Tanto que há uma ênfase na dor das mães, das famílias, nos funerais, nas quantidades de mortes, porque isso foi o que eu vi de maneira mais cotidiana. Então, por mais que haja o risco de alguém entender isso como algo apelativo, não há intenção de forçar a barra, nenhum interesse explícito de apelar para através disso sensibilizar as pessoas. O que há é uma transcrição através de imagens e depoimentos literais da realidade. Há uma edição direcionada nesse sentido, mas também conjugado com o que é a resistência através das pedras e as poucas armas que eles têm, resistindo diante de situações de cidades ocupadas, com fuzis velhos, tendo do outro lado tanques. Mostra esse lado que é mais literal, diante da dor, a conseqüência da agressão, mas ao mesmo tempo a resistência e a esperança que está no meio disso tudo. Há uma dor muito grande, há uma violência muito grande sobre eles, a morte é uma coisa cotidiana, mas no meio disso há vida, há esperança, há resistência.
Icarabe: Houve alguma preocupação, no momento de lidar com o objeto de seu relato, de evitar a estetização da dor das pessoas?
Ferrari: Eu devo dizer que não fui para lá com a primazia de um correspondente de guerra ou de um jornalista, mas com a fotografia como uma forma de exercer uma militância, de me colocar diante do mundo. Não estive norteado pelo espírito e a objetividade jornalística, e no caso específico da condição de fotógrafo, estive atento diante do que é a guerra como espetáculo, ou seja, da estetização da dor. Saber que, de uma situação como aquela, e como a própria guerra propicia, você pode obter imagens espetaculares, chocantes e daí resultar alguma coisa interessante por conta disso, ou seja, instrumentalizar a tragédia e se beneficiar da tragédia dos outros. Isso para mim estava muito claro.
Icarabe: Mas como então a cobertura se dá nesse contexto?
Ferrari: Ali vi muitos correspondentes de guerra, alguns com ética, alguns imbuídos do espírito profissional para fazer o que tem ser feito, e outros completamente tomados por essa idéia que você mencionou, que a guerra é um espetáculo e dali se pode tirar imagens espetaculares e não ter nenhum tipo de envolvimento com a realidade, ou seja, uma falsa imparcialidade. Sem falar no fato de que os correspondentes de guerra, das grandes agências, sempre estão fazendo as fotos desde o lado dos israelenses. Eu posso dar exemplos de situações em que eu só tinha cinco fotogramas e saber que se eu esperasse cinco minutos eu teria a foto espetacular, porque eu sabia que em uma fração de tempo mínima era muito previsível que uma criança ia morrer na minha frente e eu poderia fazer a foto. E isso passou, como passa na cabeça de qualquer profissional, mas eu não estava imbuído desse espírito. Isso é só um exemplo de como as coisas acontecem e como você deve exercer a sua coerência e sua ética de maneira, assim eu penso, de não deixar de ser humano a pretexto de ser um bom profissional.
Icarabe: Quanto tempo você ficou dentro da Palestina e quais as dificuldades que teve pela diferença de cultura?
Ferrari: Por incrível que pareça não tive, cara. Porque apesar da religião diferente, da língua diferente, eu me senti em casa, acredite. Claro que tem diferenças marcantes em algumas regiões, com relação, em Gaza principalmente, da interdição da mulher, do islamismo nessa vertente mais preconceituosa, mais fundamentalista. Fora isso, eu não senti um estranhamento. No meu caso sendo da Bahia, do Nordeste, o jeito de ser é muito parecido, o acolhimento, a generosidade, o humor, é uma coisa muito parecida com nosso jeito na Bahia, no Nordeste, onde as pessoas são mais espontâneas, mais abertas. Apesar da língua, não me colocava numa situação de perceber a diferença como um problema. Esse jeito de ser sem idiossincrasia é muito parecida com a nossa. Isso por um lado, depois por eu poder passar por um árabe, um palestino me colocava numa condição de me diluir no meio deles. Nós, aqui da Bahia, estamos muito mais próximos dos árabes e dos palestinos do que a um catarinense ou um curitibano.