Presença de Milton Hatoum

Ter, 09/06/2009 - 13:31
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Gabriel Bonduki


Um mergulho no universo ficcional da obra de Milton Hatoum revela uma tensão tênue em que se mesclam contrastes dramáticos e um padrão de linguagem que mantém uma uniformidade... uma certa constante narrativa. Essa narrativa também está associada às paisagens de Cidades que nasceram à beira de grandes rios, e rios são um símbolo da passagem do tempo, nos dramas (sociais e individuais), presente em importantes obras de grandes nomes da Literatura, como Faulkner, Conrad e Euclides da Cunha. Assim escreve Davi Arrigucci Jr. na orelha da primeira edição (1989) de 'Relato de um Certo Oriente': 'O romance é aqui... a arte de reconstruir a casa que se foi. Uma casa, um mundo... Não se resiste ao fascínio dessa prosa evocativa, traçada com raro senso plástico e pendor lírico: viagem encantatória por meandros de frases longas e límpidas, num ritmo de recorrências e remansos, de regresso à cidade ilhada pelo rio e a floresta amazônica, onde uma família de imigrantes libaneses... vive seu drama de paixões contraditórias'. Nesse primeiro romance, Milton Hatoum ancora sua criação já no cenário da Manaus de sua infância, com narradores e testemunhos entrelaçados, como nas 'Noites Árabes'. Descreve, numa compilação gravada, a busca de um tempo vivido ao redor da figura matricial de Emilie, a dona da casa, e de sua saga familiar, narrada pela 'neta adotiva' que chega a Manaus depois de muitos anos fora e reencontra um grande pátio vazio: '...as passagens entre os vastos jardins, passagens de uma infância sob os jambeiros e palmeiras mais altas que as casas; as cantigas, o convívio com as falas dos outros e nossas gargalhadas, ao escutar o idioma híbrido que Emilie inventava todos os dias...' Em Relato já aparece um contraponto entre dois polos, duas visões sociais, também presente em Dois Irmãos (através de Domingas): o contato da figura central da mãe libanesa com as expressões da cultura nativa e no convívio de Emilie com uma das criadas prediletas, a 'quase-escrava' Anastácia Socorro: 'Emilie, ao contrário de meu pai... e de nossos vizinhos, não tinha vivido no interior do Amazonas. Ela, como eu, jamais atravessara o rio... Maravilhava-se com a descrição da trepadeira que espanta a inveja, das folhas malhadas de um tajá, que reproduz a fortuna de um homem... Anastácia falava horas a fio, sempre gesticulando... Ao contar histórias, sua vida parava para respirar; e aquela voz trazia para dentro do sobrado, para dentro de mim e de Emilie, visões de um mundo misterioso: não exatamente o da floresta, mas o do imaginário de uma mulher que falava para se poupar, que inventava para tentar escapar ao esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do martírio', nas palavras do filho que emigrou para o sul do país, aqui referindo-se explicitamente à arte de sobreviver através de contar histórias... Como nas noites de Sherazade e em tantos outros ofícios, como o ofício do escritor... Uma outra passagem desse trecho de Relato alude à figura de Dorner, fotógrafo e estudioso alemão amigo da família objeto da descrição do romance: 'Numa das cartas que me enviou da Alemanha... (diz) que na província a calúnia é cultuada como uma deusa.' 'É o que há de mais inventivo na vida provinciana...' escreve Dorner '...além de ser a única opção para que os idiotas resistam ao tédio. Por isso, não seria um disparate afirmar que os idiotas também inventam.' Assim, a busca da perfeição narrativa em Milton Hatoum assume um caráter possível e ambicioso, e se constitui já em seu primeiro e premiado livro na revelação de um universo literário único, que consegue ligar o regional e o universal, o pessoal e o brasileiro, o 'oriental' e o 'moderno'. Tanto 'Dois Irmãos' quanto 'Cinzas do Norte' e 'Órfãos do Eldorado' avançam na direção dessa construção e dessa busca. A preocupação com as questões históricas, as fraquezas e tragédias humanas, assim como com os problemas da Amazônia, não prevalecem sobre a procura em seus romances dessa perfeição, da construção de uma narrativa cada vez mais original e consistente. *a partir de texto publicado originalmente na revista Chams