Em meio à pandemia, artistas mantêm a cultura árabe viva
Dois anos após o início da pandemia de covid-19 no Brasil, os efeitos devastadores para milhares de pessoas, com mais de 640 mil vidas perdidas no Brasil, e no cenário sociocultural e econômico ainda se fazem sentir.
A pandemia modificou radicalmente a rotina e criou novas formas de relacionamentos e de trabalho por conta da restrição social. A classe artística foi uma das mais atingidas, com a suspensão das atividades presenciais e os cortes de patrocínios e apoios culturais.
Neste período tão desafiador, o ICArabe promoveu duas edições da Mostra Mundo Árabe de Cinema em formato online, ampliando o acesso ao público de todo o Brasil, apoiou atividades culturais como lançamentos de filmes e realizou o curso “As Contribuições da Civilização Árabe-Islâmica para a Humanidade em Perspectiva Histórica", com apoio da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, da Casa Árabe e do Instituto do Sono. O curso, uma realização histórica do Instituto no período de enfrentamento à pandemia de covid-19, foi realizado 100% online, com inscrições gratuitas, e aconteceu por meio da plataforma zoom, com transmissão pelo canal do ICArabe no Youtube.A iniciativa expôs, ao longo de 21 aulas, a riqueza da cultura árabe nas suas mais variadas formas e durante a história: na medicina, matemática, física, artes, música, filosofia e muitas outras áreas, com participação de renomados especialistas atuando nas maiores universidades e instituições do país.
Além das atividades do Instituto, o esforço de muitos artistas e escritores árabes ajudou a manter viva a promoção da cultura no Brasil, por meio de lives com apresentações de dança e música, literatura e cursos, entre outras atividades.
Márcia Dib, bailarina e professora (foto abaixo), trabalha há mais de 20 anos com arte e cultura árabe. Ela conta que precisou se reinventar para manter seu trabalho e o adaptou para o mundo virtual, conseguindo assim aumentar o seu público.
"Preparei novos temas e adaptei minha maneira de dar aula, já que as aulas online têm uma dinâmica diferente da presencial. Além disso, precisei conhecer melhor o universo online, fazendo cursos, adquirindo ferramentas e equipamentos. Então tive ganhos financeiros, mas uma boa parte eu reinvesti para me manter no online", afirma.
Seu público é formado em sua maioria por professoras de dança que querem aprofundar seus conhecimentos a respeito de música, dança e cultura árabe. Além das aulas e palestras, utiliza as redes sociais para divulgar seu trabalho.
"Hoje tenho dado mais aulas práticas para grupos e aulas particulares para alunas que querem se aperfeiçoar em algum assunto específico e também palestras, cursos em instituições culturais e lives nas redes sociais. Ao longo de todo esse período, percebi o quanto as pessoas têm sede de conhecer melhor – e de forma mais realista e profunda – a cultura árabe. E tem sido um prazer contribuir para isso", ressalta.
A professora e bailarina Cristina Antoniadis (na foto do destaque e em seu estúdio, abaixo) enfrentou muito mais que o desafio da diminuição das atividades. Sua escola, a Pandora Danças, que foi inaugurada em 2010, estava muito bem até chegar a pandemia em 2020. Mas a verdadeira perda foi a morte de seu pai, uma das vítimas da covid-19. Para enfrentar esse momento tão devastador, contou com duas coisas para se reerguer: a sua paixão pela cultura árabe e helênica e a ajuda de suas alunas.
"Foi um período muito difícil, pois enfrentei o luto da perda do meu pai e fechei a escola. Minhas alunas me apoiaram e recomecei na profissão fazendo tutoriais de danças no YouTube e a Pandora passou a ser virtual. Fiz vídeos e lives nas minhas redes sociais mostrando um pouco não só da dança, mas também da música, da cultura e da culinária árabe. Juntamente com meu marido, Sami Bordokan, que é alaudista e cantor libanês, fizemos lives com música e dança e as pessoas se interessavam e compartilhavam o conteúdo", afirma
Hoje, a professora montou estúdio de dança numa sala em sua casa, melhorou a qualidade dos seus equipamentos e, além das aulas online regulares em tempo real, lançou cursos de EAD com temas específicos, como o curso “Ritmos Essenciais” (de ritmos árabes para dança oriental) e o “Baladi Essencial” (estilo popular de dança egípcia), além de palestras sobre musicalidade em conjunto com Sami Bordokan.
Cristina foi convidada para participar do Congresso Raízes, lecionando sobre o Tsifteteli (Dança do Ventre Grega), organizado pela Deborah Abdalah, que contou recursos da Lei Aldir Blanc. Neste mês de fevereiro, lança uma nova turma do Curso de Especialização Oriental, que já teve 4 turmas formadas no formato presencial e que agora está sendo adaptado para uma versão online, possibilitando que alunos de várias partes do Brasil tenham acesso.
"Poder divulgar a arte oriental para os quatro cantos do Brasil e do mundo é uma satisfação enorme. Como já dizia o grande poeta Gibran Khalil Gibran, “a arte alimenta a alma”, e fico imensamente feliz em saber que muitas almas puderam ser alimentadas com o meu trabalho de divulgação das artes árabes. Só espero que nós, pequenos artistas, possamos ser mais
valorizados e bem pagos, pois nossas contas também vencem e nossos corpos também precisam de alimentos", finaliza a bsailarina.
Música pelo Líbano
O músico Cláudio Kairouz (na foto abaixo, em uma transmissão pelo Facebook) também reforça os desafios para a classe artística. Para manter a saúde mental e o trabalho, passou a estudar mais e gravar vídeos, entre outras atividades. "No meu caso, a música ajudou a manter a saúde mental porque a minha vida social é bem ativa. Aproveitei o tempo em casa para estudar mais e gravar vídeos, entre outras coisas. A gente conseguiu no primeiro ano de covid em 2020, quando aconteceu a explosão no Porto de Beirute, no Líbano, gravar com o Sami Bordokan e com o Sérgio Reze para o programa `Um Abraço ao Líbano´, da TV Cultura. O intuito era arrecadar donativos. Fizemos uma live no Sesc Pinheiros com a Orquestra Mundana Refugi no ano de 2020", conta Kairouz.
Para o músico, a situação está longe do ideal ao qual estava acostumado e é um desafio a ser vencido para que os músicos possam voltar a se apresentar. "Vamos torcer para que esse ano melhore ainda mais, praticamente que finde esse período de grande dificuldade que a gente passou e que possamos voltar a trabalhar com a cultura da forma como ela merece", ressalta o profissional.
Literatura, tradução e artigos científicos
Michel Sleiman, professor de língua e literatura árabe na USP, afirma que durante a pandemia continuou com suas aulas por meio de ferramentas online, orientando alunos dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em suas pesquisas, mas a grande dificuldade foi o acesso ao material de estudo.
"Nós, professores, fizemos reuniões de trabalho relacionadas às aulas e pesquisas. As pesquisas que a gente vinha fazendo ficaram afetadas no sentido de que não houve acesso mais amplo às bibliotecas. A gente se limitou ao material disponível na plataforma virtual e nas redes, que acaba sendo um tanto precário para algumas áreas, particularmente na área das humanas, pois o que está disponível é pouco e muito do que se dispõe está nos livros. Alguns desses livros não têm ainda circulação, digamos assim, impressa, mas mesmo assim deu para fazer algum trabalho", ressalta o docente.
O período de reclusão em casa, para ele, foi uma oportunidade para se dedicar ainda mais ao trabalho de tradução e de escrever alguns artigos científicos, especialmente porque sua área de atuação é o campo de pesquisa sobre introdução, teoria e prática de tradução envolvendo a língua árabe e gêneros literários. O docente foi premiado pela Feira Internacional de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, por um de seus trabalhos.
"Iniciei e finalizei alguns projetos de tradução. Na pandemia, traduzi o livro “Onze Astros”, de Mahmud Darwich, que foi editado pela Editora Tabla. A edição trouxe muitas alegrias, vencemos a categoria Turjuman Award, premiação de tradução da Feira Internacional de Sharjah”, conta Sleiman.
Atualmente, ele presta assessoria para a Editora Tabla e está traduzindo duas obras. Além disso, juntamente com seu grupo de tradução de poesia árabe contemporânea, está finalizando a tradução de um livro de poemas escritos em língua árabe.
Sleiman ainda promove lives com bate-papos sobre literatura, língua e tradução do árabe. A atividade, conta, dinamizou na divulgação e a produção de conhecimentos envolvendo o tema do arabismo. Mas para ele, o encontro presencial ainda é o ideal para a saúde mental, quando a pandemia acabar.
"Acredito muito mais no estímulo que o encontro presencial proporciona, é muito mais amplo, diversificado e produtivo. As pessoas e alguns setores produziram mais em casa, mas perderam qualidade de vida e provavelmente estão psicologicamente afetadas e mais tristes. A gente precisa se alegrar e, vencida a pandemia, recuperar o sabor pela vida e do encontro, que é muito maior do que isso", diz
O professor ainda aconselha que as pessoas sejam criativas, saibam aceitar as limitações e deseja boa sorte aos que atuam e batalham para levar cultura aos demais.
"A vida é feita não de ideais, mas do que se oferece e do que é possível. Uma boa sorte a todos e aos envolvidos com a cultura e com essa militância cultural".
Na foto, Michel, no YouTube, falando com Alberto Mussa sobre poesia pré-islâmica e o poema dos árabes