“Árabes? Não conheço essa tribo!”
Contam que um olhar atento observa: diante de um objetivo comum, de esforços em benefício de um alvo amplo, da empreitada para defender refugiados, a cultura ou a água, é difícil reunir os povos árabes. Investigamos e refletimos. Traço cultural perene, a história conta e comprova.Vindo da região de Badajoz, fronteira alandaluza-portuguesa, Abu'l Walid Al-Baji estudou na Córdoba já transformada pelo fim do califado (século XI). Ensinou em Zaragoza, Valência, Murcia. Foi cadi* em pequenos povoados e suas obras abrangem o direito e a teologia. Evidentemente, como todos os que se destacam pelo conhecimento, foi poeta e literato distinto. Inquieto com a atmosfera belicosa das taifas**, empreendeu uma campanha vibrante pela unidade islâmica alandaluza. Seu entusiasmo em nada se assemelhava ao esforço de Ibn Hazm pela restauração do califado. A dinastia omíada havia perdido o bonde da história e a idéia de Al-Baji focava o presente e o futuro. Viajou terras afora, para conversar com os líderes de Alandaluz diante da ameaça de tropas hispano-cristãs, que se recompunham para conquistar terreno. Organizar uma frente de resistência com uma única bandeira, a visão de mundo, a moral e a espiritualidade do islã, para encorpar uma postura em torno de uma meta comum: preservar o território alandaluz. Por onde passou, Al-Baji foi bem recebido, reconhecido por seus méritos e elogiado por sua obra. Mesas fartas, com vinho ou não, arguile, poemas e música para saudar o poeta ou o jurista ou o teólogo. O apreço aos títulos também é antigo. Porém, a prosa mudava de rumo quando Al-Baji preconizava a união dos líderes alandaluzes contra o inimigo comum. A partir deste ponto, ódios e desavenças eram postos na mesa e mui polidamente Al-Baji era afastado, sumido e esquecido, talvez com um rastro de pensamento de algum príncipe: Lástima! Boa pessoa, mas insano e inoportuno. Que Allah o proteja. Decepção à parte, Al-Baji se recolheu a suas atividade anteriores. Todos sabemos em que direção sopraram os ventos da desunidade alandaluza. Nós aqui no século XX e XXI assistimos ao filme "Lawrence da Arábia" (1962), obra inesquecível pela produção na Jordânia, sem os recursos da reconstituição computadorizada. Relembro aqui duas cenas. Depois de vencer o inatravessável deserto de Nefud, Lawrence é recebido na tenda de Auda Ibu Tayi, líder dos Howeitat. Sob olhares femininos atrás da divisória de tecido, Lawrence tenta convencê-lo a juntar-se a eles para tomar Aqaba dos turcos. Auda pergunta por que faria isso: "pelos árabes", diz Lawrence ao que Auda responde: "Árabes? Não conheço essa tribo!" Mais adiante, entram em Damasco e o ódio tribal explode entre os líderes beduínos, que deixam de lado a experiência conjunta que viveram. Há também o filme recente, "Syriana" (2005), sobre a disputa entre grandes corporações estadunidenses e aliados, pelo controle do petróleo. Sem comentários. A desunidade parece mudar de tempo e cara, de religião e continente, mas é passível de reconhecimento aqui ou ali. Na exposição recém-inaugurada "Imagens e Paisagens do Mundo Árabe e o Brasil de Aziz Ab'Sáber", gente viajada e interessada em cultura árabe fez perguntas e comentou, diante dos painéis vermelhos do IMA***: "Olhando isso até parece que os árabes são unidos". Sorri com surpresa e empatia. Entre um olhar e outro, Al-Baji não caminha sozinho. * cadi: juiz ** taifas: cidades estado no Alandaluz *** IMA: Instituto do Mundo Árabe de Paris