Egito à beira de uma guerra civil com a queda do presidente Mursi
Há dois anos e oito meses, assistimos ao levante popular no Egito, que foi o mais pacífico e o mais rápido em comparação com os demais movimentos da chamada “Primavera Árabe”, precisando de apenas 17 dias de concentrações na Praça Tahrir para destituir o ditador Mubarak, após 30 anos no poder. Os distúrbios de agora ultrapassam 50 dias de caos, desde a destituição (03 de julho) do presidente Mursi, que exerceu apenas um ano do seu mandato. Nestes dias o país vive a situação mais sangrenta da sua história moderna, com centenas de mortos e milhares de feridos em confrontos armados entre o exército e os ativistas da Irmandade Muçulmana. Mesquitas e igrejas incendiadas, canais de televisão tirados do ar, distúrbios e violências urbanas são exemplos do que se passa hoje no Egito. Não bastasse tudo isso, as cidades egípcias vivem, ainda, sob o toque de recolher e leis de emergência.
Na destituição de Mubarak o povo era contra os militares; hoje, o povo convoca os militares para tirar a Irmandade Muçulmana do poder e assiste com certa satisfação a caçada, a perseguição e a morte dos seus membros e militantes. É um paradoxo, que merece uma reflexão como base em algumas indagações. O exército teria que ser tão violento para acabar com as concentrações pacifica dos aliados do Mursi? A sociedade egípcia estaria, realmente, satisfeita com essa ação militar bastante violenta? As forças armadas, com isso, estariam retornando ao poder a partir de um golpe mais aprimorado e maquiavélico? Havia forças externas apoiando o governo Mursi? Havia forças externas apostando na derrubada do Mursi? O Egito será democratizado após esses episódios sangrentos? O país terá uma constituição democrática? O próximo presidente eleito será um militar? A junta militar retornará como um poder acima da Constituição? Quem está ganhando e quem está perdendo com esses acontecimentos? Quem está ganhando e quem está perdendo, com o que está acontecendo no Oriente Médio em geral? A disputa entre os Estados Unidos, de um lado, e a Rússia e a China, de outro lado, teria algum significado com aquilo que acontece no Oriente Médio? A questão palestina e a busca de uma solução duradoura sofreriam algum efeito com esses acontecimentos? O deserto do Sinai estaria inserido num projeto oculto para um possível novo mapa geopolítico da região? Qual é o grau de autonomia dos atuais levantes populares? Enfim, até que ponto as novas forças políticas locais não estariam sendo usadas por interesses externos ocultos, em que o povo acaba escrevendo a sua história com o próprio sangue, e não apenas o Egito, mas do mundo árabe em geral?
Pretendo, começando por este pequeno artigo, tratar dessas e de outras indagações, com a esperança de que o Egito escape do caos antes de secar a tinta da minha caneta. Analiso as consequências políticas desastrosas da ingenuidade, da inocência e da falta de experiência governativa do Mursi e da sua equipe da Irmandade Muçulmana.
No terceiro dia de julho deste ano, a pedido das manifestações populares, todas as forças políticas do país, as forças militares, as instituições religiosas e as centrais sindicais, além dos representantes dos 25% do povo, que se encontram abaixo da linha da pobreza, uniram-se e destituíram Mursi do cargo de presidente.
Mursi foi totalmente ingênuo ao formar, desde o início, uma equipe “puro-sangue” da Irmandade Muçulmana, acreditando, assim, que seria mais fácil governar. Durante os seus doze meses no poder, Mursi não pode contar com a colaboração de ninguém. Aliás, a oposição atuava para dificultar e apostava num grande fracasso. Em pouco tempo, Mursi perdeu a governabilidade. Desagradou, desde o seu primeiro mês de governo, as forças nacionais e outras estrangeiras, a partir de atos, atitudes e leis totalmente antagônicos à sonhada democracia, inspirada pela “Primavera Árabe”. Foi induzido a essa situação, mordeu a isca, caiu na armadilha e perdeu o controle sobre o país. Quando a “vaca caiu no brejo”, tentou compor com a oposição, mas ninguém aceitou.
Enquanto o ditador Mubarak cedeu às pressões e renunciou, após, apenas, dezessete dias de manifestações populares, em janeiro de 2011, poupando o povo e preservando a infraestrutura do país, a reação e o discurso de Mursi foram, paradoxalmente, de lutar e permanecer no cargo, colocando a legalidade burocrática acima da legitimidade, que já havia perdida em poucos meses. O resultado não foi outro: a Irmandade Muçulmana saiu em defesa do mandato e, mesmo minoritariamente, optou pelo confronto, colocando o povo e o país num segundo lugar de importância. Os aliados de Mursi apelaram para o campo religioso, usando a fé como instrumento para aglutinar as forças dos seus correligionários contra o próprio povo. As consequências foram tristes: polarização e radicalização levando à desordem e ao caos social; retrocesso no processo da democratização e riscos de golpe militar.
As forças armadas, por sua vez, aproveitaram-se bem do momento e partiram para a violência, pela primeira vez na história do Egito, matando, sem piedade, os correligionários de Mursi, os quais, acima de tudo, são egípcios. Fico com a impressão de que os generais estão apostando em duas finalidades: fortalecer-se frente aos que apoiam a atitude bélica, ganhando ainda mais a sua simpatia e, ao mesmo tempo, amedrontar os que repudiariam essa atitude selvagem, a qual nunca fez parte da cultura da sociedade egípcia. É uma opção política que só me leva a crer que os militares pretendem, com isso, recuperar o poder que haviam perdido nos doze meses do governo Mursi. Possível caminho - por que não? - de até lançar um candidato para as próximas eleições, que poderá ser o próprio general Abdel Fatah Al Sissi, ministro da Defesa e chefe do Exército egípcio, a mão de ferro que está coordenando as operações militares contra a Irmandade Muçulmana.
Sem dúvida o Egito passa por um momento extremamente crítico, exigindo muita cautela de todas as forças políticas do país, antes que se abra a porta de uma guerra civil, armadilha na qual Líbia, Síria, Iémen e Iraque já estão retidos.
Poucos dos próximos meses serão suficientes para verificar com maior clareza as verdadeiras intenções das forças armadas do Egito no episódio da destituição de Mursi. Também, teremos condições para avaliar a capacidade e a autonomia do atual governo de transição de coordenar a elaboração de uma nova constituição democrática, as eleições do novo parlamento e do novo presidente do país.
Finalmente, teremos condições de medir a credibilidade da equipe do governo de transição, principalmente, após a saída de Mohamed El-Baradei, que acumulava as funções de vice-presidente e de ministro de relações internacionais. Ele pediu demissão desses cargos, por não aceitar a intervenção militar contra a Irmandade Muçulmana.
É importante acompanhar e saber qual será o destino político da Irmandade Muçulmana no Egito e, consequentemente, no Oriente Médio, pois, trata-se de, praticamente, o único grupo político firmemente organizado naquela região.
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