Fatwa de Amã representa reviravolta no mundo islâmico

Seg, 29/08/2005 - 21:00
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(Artigo originalmente escrito na primeira semana de julho de 2005, sobre a Fatwa de Amã e agora publicado com exclusividade pelo Icarabe) Durante décadas, as autoridades espirituais muçulmanas foram completamente omissas, e não tomaram nenhum tipo de posição em relação ao fundamentalismo e ao terrorismo islâmico. Assassinos matavam em nome de Allah, terroristas decretavam sem empecilhos a guerra santa, falsos líderes espirituais condenavam a morte a quem quisessem, justificando-se com versetos do Alcorão, e ninguém objetava nada. Na sexta-feira de 4 de julho, em Amã (Jordânia), as maiores autoridades espirituais sunitas e xiitas e 180 entre os mais importantes acadêmicos e religiosos de 40 países islâmicos emitiram uma fatwa (édito religioso), que pode representar uma reviravolta inédita no mundo islâmico. A fatwa de Amã (que poderíamos chamar de mãe de todas as fatwas, com a típica hipérbole árabe) condena e proíbe qualquer um de emitir uma fatwa sem ser uma autoridade religiosa reconhecida e autorizada. Isto quer dizer, por exemplo, que as (muitas) fatwas lançadas por Osama bin Laden, Zarqawi e seus pares, convocando os muçulmanos do mundo inteiro a matar os “Cruzados”, mesmo sendo mulheres e crianças, daqui para frente não têm valor nenhum para os crentes muçulmanos. Pode parecer uma questão puramente teórica, ou teológica, mas na prática significa que os milhares de xeques fundamentalistas que, toda sexta-feira nas mesquitas do mundo inteiro, ou pela Internet, conclamam os fiéis para a jihad e bradam seu apoio aos que matam pessoas inocentes fazendo-se explodir, não poderão mais fazê-lo sem incorrer nas sanções dos superiores e o risco concreto de demissão. O mundo muçulmano, por não ter um clero claramente definido e centralizador, sempre foi avesso às posições autoritárias do ponto de vista ético, deixando bastante liberdade na interpretação da conduta individual. Isto torna ainda mais importante o decreto emitido na semana passada, que toma uma posição clara, firme e fundamentada em relação à anarquia que predominava no Islã nos últimos anos, levando a interpretações cada vez mais aberrantes e extremadas. Centenas de ulemas (doutores da lei) sem nenhum diploma e falsos xeques, com a única autoridade de uma barba bem comprida e muita eloqüência, incitam os crentes à violência e ao ódio contra os “inimigos”, usando argumentos pseudoreligiosos sem o menor fundamento corânico, que seus seguidores engolem só por ignorância e frustração. Os mais famosos desses lúgubres indivíduos são Omar Bakri, Abu Qatada, Abdul Huhid e Abu Hamza al-Masri. Um segundo aspecto extremamente importante da fatwa de Amã é a proibição para os muçulmanos de declarar apóstata qualquer outro muçulmano. Para se entender a importância desta medida, basta ver que o embaixador egípcio no Iraque Ihab al Sharif foi condenado à morte na semana passada por ser “apóstata”, e que são consideradas “apóstatas” até a família real saudita ou o governo egípcio, por colaborarem com o Ocidente. Para os terroristas que se dizem islâmicos, a única justificativa ideológica possível para matar outros muçulmanos é declará-los apóstatas. É o que fazem al-Qaeda, os grupos mais sangrentos da resistência iraquiana, os chacinadores do Grupo Islâmico Armado argelino (GIA), os homens-bomba do Hamas, os guerrilheiros filipinos do Movimento Abu Sayyaf, os autores dos atentados de Bali, do 11/9, de Madri, de Londres, e em geral todas as manifestações do fundamentalismo islâmico mais brutal e fanático, ligadas por um único fio condutor e uma única ideologia: o takfirismo (Takfir wal Hijra, em árabe), que por sua vez deriva de uma heresia moderna do Islamismo, o salafismo. Takfir em árabe quer dizer apóstata. O salafismo vem deturpando os princípios tradicionais do Islã nos últimos quarenta anos, abrindo o caminho para as aberrações dos atentados suicidas, das execuções coletivas, do ódio mortal contra cristãos e judeus, da destruição dos monumentos sagrados (não só de outras religiões, mas até do próprio Islã, como se pode ver em Meca), das mulheres cobertas da cabeça aos pés e proibidas de trabalhar e de estudar, da intolerância religiosa com as minorias e outros excessos, inexistentes no Islã tradicional. O salafismo foi conquistando cada vez mais espaço no mundo árabe inicialmente e, depois, no resto do mundo muçulmano, e acabou suplantando quase totalmente os demais movimentos fundamentalistas mais moderados, como os Irmãos Muçulmanos (Ikhwan Muslimin). Hoje, pode-se dizer que pelo menos 15% dos muçulmanos do mundo (mais de 200 milhões de pessoas) são salafistas ou apóiam ativamente (com dinheiro e/ou com o proselitismo) o movimento – inclusive no Brasil -, mas a sua influência estende-se bem além desse número. A maioria dos salafistas não apóia diretamente o terrorismo, mas todos os terroristas (incluindo Osama bin Laden) e grupos armados muçulmanos atuais seguem o salafismo, e fazem parte de sua ala mais extremista, o takfirismo, que o especialista francês Roland Jacquard definiu como “um fascismo niilista muçulmano”. O extremismo islâmico começou sua expansão internacional em 1979, com a invasão soviética do Afeganistão e a Revolução Iraniana. Os responsáveis diretos pela sua divulgação e expansão, que tencionava então conter a ameaça soviética e xiita no mundo muçulmano, foram a Arábia Saudita, que forneceu a ideologia, os fundos e os pregadores; o Paquistão, que forneceu a logística, as armas, a organização das escolas islâmicas (madrasas) e os campos de treinamento militar para os militantes; e os Estados Unidos, que por sua vez deram sua aprovação e participaram do planejamento da operação. Muitos dos mujahiddin afegãos e dos militantes internacionais que lutaram contra os russos (como o próprio Bin Laden e muitos seguidores da al-Qaeda) foram formados e treinados naquela época, com a ideologia Salafi. A criatura acabou virando-se contra o criador, e para os EUA e seus aliados o movimento transformou-se num perigosíssimo Golem fora de controle. Os fundamentalistas armados viram na queda da União Soviética, depois do fracasso no Afeganistão, uma vitória das forças islâmicas, e resolveram continuar essa luta vitoriosa abrindo outras frentes: Bósnia, Albânia, Kosovo, Chechênia, Daguestão, Cachemira, formando o que alguns analistas chegaram a definir uma Internacional Islâmica, lembrando as Brigadas internacionais na guerra civil espanhola nos anos 30. Os mais extremistas criaram o movimento Takfiri, conseguiram a independência em organização, financiamentos e armas, e passaram a considerar os Estados Unidos como a maior ameaça contra o Islã, por ser a ponta de lança da cultura e mentalidade ocidentais, e fizeram deles e de seus aliados o alvo prioritário das suas operações. A fatwa de Amã, proibindo até o uso do termo takfir, desautoriza especificamente o takfirismo, e põe em xeque seus fundamentos islâmicos. Pela primeira vez, o mundo islâmico moderado revolta-se contra os delírios raivosos dos extremistas e invoca a validez da autoridade espiritual verdadeira, em contraposição aos líderes auto-proclamados e abusivos. “Qualquer um que siga as oito escolas jurídicas (as oito interpretações fundamentais do Alcorão e da lei islâmica, N.R.) é muçulmano e ninguém pode acusá-lo de apostasia”, assevera a fatwa de Amã. “Violência e terrorismo praticados por alguns grupos de ignorantes em nome do Islã e do Alcorão nada têm a ver com os princípios da nossa religião, e por outro lado oferecem aos não-muçulmanos a justificativa para nos julgar negativamente, interferir em nossa vida e invadir nossas terras”, concluiu o rei Abdallah de Jordânia, numa alusão bastante explícita. As conseqüências da proclamação de Amã foram quase imediatas. Na sexta-feira, o Muslim Council of Britain promulgou outra fatwa, que decreta a perda, para os autores do atentado de Londres, de qualquer direito de serem considerados muçulmanos. “Aqueles que perpetraram essa atrocidade não são só inimigos da humanidade, mas também inimigos do Islã e de todos os muçulmanos - afirmou Sir Iqbal Sacraine, prestigioso secretário geral do Council – Os ataques foram ações pessoais de pessoas cujo coração é preto como carvão e que deturpam a natureza e os ensinamentos da religião islâmica”. Nunca antes o Council havia denunciado o terrorismo islâmico, nem depois do 11 de setembro, por exemplo. Independentemente dos resultados práticos da condenação espiritual emitida pela reunião de Amã, ela se torna um marco histórico, pois é também a primeira vez, na história do Islã em que há um acordo oficial, formal e unívoco entre sunitas e xiitas. Em Amã estavam presentes o xeque Mohammad Sayyed Tantawi, maior autoridade espiritual sunita, o grande aiatolá al-Sistani, maior autoridade xiita, o grande mufti do Egito Ali Juma’a, o secretário geral da Academia dos doutores da lei da Arábia Saudita, Habib Balkhouja , e o mais popular e famoso dos pregadores televisivos muçulmanos, Yusuf al-Qaradawi. Pode se dizer que todo o mundo muçulmano moderado esteve presente para condenar, pela primeira vez, o terrorismo e o fanatismo. Daqui para frente os terroristas e fanáticos islâmicos estarão mais isolados.