“Fundação Três Culturas” visita São Paulo
Sediada em Sevilha, desde 1998, a “Fundação Três Culturas” nasceu com empenho conjunto da Junta de Andaluzia, Reino do Marrocos, Centro Peres pela Paz e Autoridade Nacional Palestina. Intenção primeira: estimular encontros entre as culturas mediterrâneas, pela paz, diálogo e tolerância. Sevilha também sedia a orquestra Baremboin-Said, na qual tocam músicos judeus, palestinos e de vários países árabes. As três culturas se expandiram a partir do Alandaluz e chegaram às Américas, ao Brasil, e aqui nos misturamos, como sabemos fazer.
Do lado de lá, a massa migratória marroquina em direção à costa sul espanhola é expressiva o suficiente para sabermos que não se trata de um movimento isolado no tempo e na história. O cruzamento do Gibraltar passou a ocupar a atenção dos dois lados, especialmente da Andaluzia. Nos dias claros, de extrema luminosidade mediterrânea, avistam-se as costas marroquinas do porto de Algeciras. Tão próximos e diferentes, desenhados à henna e comendo pão com azeite, marroquinos e andaluzes vivem um reencontro irreversível. Era preciso fazer algo: encarar o movimento de frente, na justa e humana proporção. A “Três Culturas” começou a germinar e se consolidou promovendo estudos, cursos regulares de hebraico e de árabe, eventos sobre as culturas mediterrâneas. Afinal, aquele chão abrigou os passos das três culturas monoteístas e ciganas, durante séculos alandaluzes. Também não esquecemos o que nos conta a história: o Marrocos acolheu os alandaluzes expulsos no século XVI; muçulmanos e judeus refizeram suas vidas em Fez ou pra lá de Marrakesh.
A proposta da “Três Culturas” não está baseada no resgate do passado de ouro, quando muçulmanos, judeus e cristãos conviveram, criaram e trabalharam juntos por quase 8 séculos. Este passado é inspiração apenas, porque a memória só vale se atualizada e por isso real, realizada, sem a idealização dos tempos áureos que se foram. Não. Nem poderia já que, sabemos, esta idéia está por trás do fundamentalismo: “fomos grandes e podemos voltar a ser”. Não. O idealismo tem muitas certezas e por isso é intolerante. O real nos põe nus e frágeis porque dialoga.
Como herdeiros do Alandaluz, consideramos que no século VIII, não houve invasão árabe nem bérbere. Houve, sim, um processo de islamização da península. Cristãos e judeus aprenderam árabe porque era elegante ler, falar, poetizar em árabe. Igrejas cristãs e sinagogas estão cheias de marcas da cultura árabe, referência de refinamento no Alandaluz, Sefarad e na Europa medieval. Não há invasão marroquina na Andaluzia, como não houve invasão nordestina em São Paulo no inicio do século XX, nem argelinos invadiram a França pós anos 60. Pensar a história nos lança no real e nos inspira a criar pontes.
A ênfase do trabalho da “Três Culturas”, está na percepção do outro, comentou em São Paulo, Enrique Ojeda, diretor da Fundação. Quem é este outro que se assoma às costas andaluzas? Quem é o estrangeiro? Quem é o “invasor”? Quem é o outro que fala primeiro de intolerância e depois da tolerância? Nós, herdeiros do Alandaluz, queremos encontrá-lo para pensar caminhos. Contar estórias um ao outro é, também, percebê-lo. É o mínimo que podemos fazer para não cair nas grades do idealismo.
Bem vindos todos os que se empenham em deixar um tijolinho nesta ponte que amplia o pensamento, tece possibilidades e aproxima pessoas. Este é um bom sentimento para o ano novo, e que 2008 nos estimule a avançar mais fronteiras para contar outras estórias.