I Simpósio Luso-Brasileiro de Arabistas

Sáb, 08/08/2009 - 21:00
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A Universidade Federal do Rio de Janeiro acolheu entre os dias 31 de agosto e 02 de setembro o I Simpósio de Arabistas Luso-Brasileiros, iniciativa conjunta do Setor de Estudos Árabes (Departamento de Letras Orientais e Eslavas) da UFRJ e das Áreas de Graduação e Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Árabe da Universidade de São Paulo.“Trabalhem, trabalhem, trabalhem” Alphonse Nagib Sabbagh Introdução A Universidade Federal do Rio de Janeiro acolheu entre os dias 31 de agosto e 02 de setembro o I Simpósio de Arabistas Luso-Brasileiros, iniciativa conjunta do Setor de Estudos Árabes (Departamento de Letras Orientais e Eslavas) da UFRJ e das Áreas de Graduação e Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Árabe da Universidade de São Paulo. O Simpósio, que se deu nas dependências do Fórum de Ciência e Cultura – Salão Moniz de Aragão, reuniu escritores, pesquisadores e professores arabistas e agentes culturais de órgãos ligados à disseminação das línguas árabe e portuguesa e contou com o apoio de várias instituições, como Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo, FAPERJ, Banco do Brasil, Editora Almádena, Jockey Club Brasileiro, Instituto da Cultura Árabe e Instituto Camões. O Simpósio é um marco dos estudos árabes no âmbito universitário, por reunir pioneiramente a arabistas falantes de português, atuantes no Brasil e em Portugal. Trata-se de um projeto arrojado mas exequível, que por sua vez atesta o crescimento acelerado neste começo de século dos estudos árabes no Brasil. E tudo isso impulsionado pelas conjunturas nacional e internacional, de diferente grandeza e proporção, como por um lado a contestação da inviolabilidade dos EUA, no funesto episódio da queda das torres gêmeas, ação alegadamente atribuída à organização Al-Qaida; e, por outro lado, as diferentes ações de natureza política, comercial, ou educativo-cultural, como a sinalização do governo brasileiro em incrementar o intercâmbio comercial e cultural com os países árabes, ou a repercussão internacional do pensamento do palestino exilado nos Estados Unidos Edward Said, professor da Universidade de Columbia, morto em 2003, cuja crítica epistemológica aos estudos pós-coloniais tem levado a comunidade internacional a repensar conceitos assentados como Oriente/Ocidente, Europa/Barbárie, Civilização/Incultura. A desestabilização do eixo hegemônico Europa-EUA/Japão e a talvez consequente entrada em cena dos chamados “países emergentes”, como China, Índia, Tigres Asiáticos e.... Brasil, têm inspirado as ditas políticas sul-sul, isto é, relações diretas entre países periféricos na ordem global dos últimos séculos. No caso da cultura, é sabido que informações sobre um país periférico só são disponíveis aos consulentes de outro país periférico nas línguas culturalmente hegemônicas, como o inglês, o francês, o alemão e o espanhol, possivelmente nessa mesma ordem que cito. Tanto tem sido assim que órgãos nacionais de fomento à pesquisa mais valorizam publicações de brasileiros feitas nessas línguas do que as feitas em português; e, nesse sentido, mais valerá publicar um periódico brasileiro em inglês que publicá-lo em português. A cultura da intermediação da língua culturalmente hegemônica, contudo, começa a perder terreno. Periódicos como Tiraz, da pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Árabe da USP, ou Signum, da Associação Brasileira de Estudos Medievais, têm por princípio definidor de sua atuação cultural publicar textos em língua portuguesa, traduzindo com isso as colaborações de estrangeiros, não por outro motivo que o de valorizar a língua portuguesa e contribuir, com isso, para a sua reinserção como língua de cultura, pelo menos para os brasileiros e demais lusófonos. Paralelamente, as editoras nacionais passam a apostar, ainda que timidamente, em traduções feitas diretamente das línguas não-hegemônicas. No caso do árabe, aumenta a preferência dos leitores por obras vertidas diretamente desse idioma, como as saborosas histórias do Livro das Mil e Uma Noites, o vertiginoso relato do sudanês Tayib Saleh, Tempo de Migrar para o Norte, ou os multi-referenciais zajais do andalusino Ibn-Quzmán de Córdova, só para citar alguns. É nesse marco da evidência do árabe e do português que o Simpósio se insere. Pela primeira vez na história das Universidades lusitanas e brasileiras um encontro como esse reúne intelectuais, professores, estudantes e demais interessados em torno dos assuntos ligados ao Mundo Árabe e à sua prospecção no âmbito da lusofonia. A nação portuguesa, desde a sua gênese, é moldada pelos muçulmanos em solo europeu (do Alandalus) ou africano (de Guiné-Bissau, Moçambique). Essa mesma nação nos tocou a brasilidade já no elemento de fundo islamizante do português colonizador e, mais tarde, no contexto da escravatura, condicionou a entrada do elemento árabe em alguns dos contingentes acarreados da África negra, o que matizou sobremaneira a espiritualidade brasileira em geral, especialmente a de extração popular. Mais tarde, o elemento árabe tem nova entrada no Brasil, dessa vez direta, através do imigrante, majoritariamente sírio e libanês até a primeira metade do século XX, e de forte procedência palestina da segunda metade do século em diante. O Simpósio Na ausência do patrono do Simpósio, o Monsenhor Doutor Alphonse Nagib Sabbagh, que por motivos de saúde não pôde comparecer à solenidade de Abertura, o presidente do Simpósio, Professor Doutor João Baptista Medeiros Vargens, da UFRJ, leu as palavras sóbrias e sábias, que, do leito, o Monsenhor lhe ditou, e das quais reproduzo estas poucas, mas fortes três palavras do incansável Monsenhor, dirigidas aos simposistas: “Trabalhem, trabalhem, trabalhem”. Na primeira mesa-redonda, coordenada pelo presidente, foram tematizadas a história e as políticas dos estudos árabes em países lusófonos. Sucederam-se os professores doutores António Dias Farinha, catedrático da Universidade de Lisboa; Mostafa Zekri, do Centro de História de Além-Mar, da Universidade Nova de Lisboa; Eva Maria von Kemnitz, da Universidade Católica Portuguesa; Suely Lima, da UFRJ; e Safa Jubran e Mona Hawi, da USP. A tríade de professores de Portugal apresentou de forma complementar o que historicamente fora feito naquela país em prol dos estudos árabes, desde o século XIV, quando circula a versão portuguesa do anônimo Livro da Corte Enperial, compilação filosófico-apologética de diversa fonte peninsular, contendo importantes referências ao Livro e tradições do Islã, até propriamente a segunda metade do século XIX, quando em 1869 é extinta a carreira cadeira de Árabe da Universidade de Lisboa. Datam daquela época as primeiras traduções para língua ocidental do manuscrito Rawd Alqurtas, traduzido como Crônica dos Reis Maomotenos, e do famoso Livro de Viagens, de Ibn-Battuta, além do léxico Vestígios de Língua Arábica em Portugal, de Frei João de Souza. A partir daí, resta o contato de Portugal com os países árabes do norte da África, mas o ensino da língua árabe se restringe à realidade de curso livre oferecido no âmbito do Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos “David Lopes” da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desde 1910. Lima destacou a fundação em 1969 do Setor de Estudos Árabes na UFRJ e falou sobre a atuação de seu fundador e patrono, o Professor Sabbagh, e demais professores e alunos. Safa Jubran relatou a história recente do curso de Árabe na USP e o esforço da equipe de professores que nele atuam no momento para alcançar o prestígio acadêmico dentro da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e da Universidade como um todo. Referiu-se ao período de estagnação anterior, mostrando as mudanças havidas de 15 anos para cá e mencionando a implantação do programa de pós-graduação que amplia os horizontes de pesquisa a alunos e professores. Destacou a produção discente e docente da Área de Árabe, suas realizações conjuntas visando à formação e firmação dos estudos árabes no Brasil, com o intuito de criar uma tradição semelhante à existente em outras universidades do mundo. Dentre os projetos citados, lembrou o periódico Tiraz e o conjunto de ensaios publicados até agora na Coleção Estudos Árabes. Referiu-se ainda à necessidade de envolvimento em outros projetos igualmente importantes que a seu ver devem ser realizados sem mais demora, tais como o estudo do movimento literário dos escritores e poetas do Almáhjar e a elaboração de um método eficaz de ensino da língua árabe pensado para o lusófono. Mona Hawi apresentou seu projeto de pesquisa sobre a elaboração de material didático de ensino da língua árabe com base em aplicações de fundamentos da linguística aplicada. Focando a história e as políticas do ensino do português em países árabes, a segunda mesa teve a coordenação da Profa. Dra. Arlene Clemesha, da USP, e os depoimentos do Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto, da UFRJ, que atualmente atua no Ministério de Educação e Cultura; o Dr. Adriano Jordão, diretor do Instituto Camões no Brasil; e a licenciada pela UFRJ Paula Caffaro, professora de Língua Portuguesa na Universidade de Damasco de 2006 a 2008. Oliveira Neto citou os esforços do MEC para implantar o IMA, Instituto Machado de Assis, como órgão nacional de difusão da língua portuguesa no exterior, incluídos os países árabes. Jordão historiou a atuação de Portugal nesse sentido, com tradição em países do Norte africano. E Paula Caffaro narrou sua experiência como professora na Síria, dificultada pela pouca divulgação que teve o curso dentro da Universidade de Damasco. A mesa detectou uma política pouco agressiva no ensino do português em países do Levante. O Prof. Dr. Mamede Mustafa Jarouche, da USP, coordenou a terceira mesa, cujo foco foram a história e as representações históricas de países árabes. Mostafa Zekri, antropólogo, formado em estudos islâmicos em Paris, relatou a história do advento do Islã, os primeiros califas rachidun, chegando aos períodos dos califados omíada e abássida, para demonstrar que a configuração atual das regiões árabes deita raízes e encontra sua explicação no próprio período de formação do Islã, sem deixar de observar, ao final, que o termo Mundo Árabe seria enganosa generalização, dada a sua diversidade étnico-cultural e religiosa. O Professor Dias Farinha levantou questões centrais da relação entre Portugal, a expansão ultramarina, sua presença no Golfo Árabe (ou Persa), e, finalmente, no Marrocos - sua história e seu legado. Arlene Clemesha, expondo como a narrativa histórica vem tratando os temas árabes, lembrou que na medida em que a história do Oriente Médio permanecer trancafiada em uma problemática que enfatiza seu exotismo e caráter especial, será sempre difícil de ser entendida; pelo contrário, os árabes deveriam ser vistos como parte integrante do longo processo de formação do mundo atual. Hani Hazime, professor da UFRJ, focou as divisões históricas do Islã em sua origem e em sua continuidade no mundo islâmico atual. A quarta mesa, coordenada pela Profa. Cristina Riche, da UFRJ, tratou das vertentes do pensamento árabe. A doutoranda em Filosofia na USP Beatriz Machado apresentou as dificuldades que se encontram no estudo da vasta obra de Ibn-Arabi e suas implicações no tempo andalusino, o século XIII, e o tempo hoje de seu resgate através do estudo crítico de sua obra. O professor de filosofia árabe Jamil Ibrahim Iskandar, da UNIFESP, tratou da vertente filosófica dos estudos árabes no Brasil nascida nos anos 1990, sua evolução e estado atual, frisando a necessidade de buscar o legado filosófico em língua árabe direto na fonte, ação essa posta em curso nos últimos anos por sua atuação docente e investigativa. Em seguida, o professor de filosofia e história do pensamento árabe Miguel Attie Filho, da USP, traçou uma panorâmica da formação do conjunto de escritos do pensamento árabe clássico e suas recorrentes entradas na Europa, a partir do século XII, destacando a importância de um novo perfil epistemológico no século XXI que afaste vertentes ideológicas eurocêntricas, orientalistas, místicas ou teológicas na recuperação dos textos. Frisou também o importante papel que a universidade tem neste momento, apresentando alguns resultados já obtidos pela área de árabe da USP no que toca a publicações de livros, criação de cursos e novas linhas de pesquisa. Por fim, o professor de língua e literatura árabe da USP Michel Sleiman lembrou a necessidade de reatar a tradição alcorânica na mesma linha das mito-profecias que produziram os livros bíblicos do judaísmo e do cristianismo, orientação primordial do Alcorão quando de sua revelação ao Profeta Muhammad. Lembrou o momento em que o Livro perde terreno no Ocidente, ficando conhecido como a fonte particular de um Islã inimigo do Ocidente, orientalizando-se, forçosamente, aos olhos de cristãos e judeus da Europa em levante cultural desde a Baixa Idade Média. Sleiman lembrou ainda o papel de a nova tradução do Alcorão ao português guiar-se por um sentido minorado do estranhamento que habitualmente concerne o livro dos muçulmanos. Na última mesa-redonda, coordenada por Miguel Attie Filho, Safa Jubran abriu a mesa remetendo ao período mais profícuo da tradução na história da civilização árabe. Destacou a figura de Hunayn Ibn-Ishaq (séc. IX), o responsável pela tradução ao árabe de centenas de obras gregas. A referência a esse nome se deve ao fato de o tradutor preocupar-se em criticar suas próprias traduções e aplicar, já naquele tempo, a técnica de cotejo, até hoje usada pelos estudiosos. O escritor Alberto Mussa e os tradutores Mamede Jarouche, Michel Sleiman e Geni Harb relataram suas experiências na prática da tradução de textos árabes literários. A Profa. Harb, aposentada da UFRJ, relatou a atuação difícil de outros tempos e lembrou afavelmente a vitalidade da nova geração de professores e tradutores de árabe que demonstram um potencial que supera o de seus mestres da geração anterior. Jarouche, Mussa e Sleiman tematizaram o vínculo da tradução com o estudo aprofundado das fontes por traduzir. Observando a inclinação de cada tradutor, Mussa destacou que sua opção de traduzir os Poemas Suspensos na forma da prosa esteve afinada com sua capacidade de prosador. Sleiman declara pautar-se pelo princípio da transcriação de procedimentos funcionalmente poéticos, lembrando os estudos do grande linguista de Praga Roman Jakobson. Exemplificou confrontando trechos traduzidos por ele de sura alcorânica e de zajal. Jarouche se posicionou em defesa da arabicidade do Livro das Mil e Uma Noites, uma vez que a natureza linguística dos manuscritos legados e a história mesma de sua existência e circulação concerne aos países árabes, nomeadamente a Síria e o Egito. Associação de Arabistas Findos os trabalhos dos simposistas nas mesas temáticas, foi lançada pelos organizadores do Simpósio a Associação Luso-Brasileira de Arabistas (ALBA), que teve aprovada, às 17h do dia 02 de setembro de 2009, pelos inscritos presentes ao I Simpósio de Arabistas Luso-Brasileiros, uma primeira versão dos estatutos da mencionada Associação, podendo ainda sofrer alteração no texto até a versão final, quando da eleição da primeira diretoria, a ser realizada em futura data a ser acordada. Miguel Attie Filho, acompanhado dos membros da última mesa, Geni Harb, Alberto Mussa, Mamede Mustafa Jarouche, Michel Sleiman e Safa Jubran, procedeu à leitura do item I, artigos 1º., 2º. e 3º., de posse, de antemão, de todos os simposistas inscritos. Transcrevo o texto lido: “I. Denominação, Sede e Fins da Associação. Art. 1º. – A Associação Luso-Brasileira de Arabistas (ALBA) é uma entidade civil, de caráter exclusivamente cultural, com sedes e foros nas cidades do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, de São Paulo, Estado de São Paulo, e de Lisboa, Portugal, podendo ter filiais em outras cidades e estados. Parágrafo Único – A ALBA terá como sedes provisórias o Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ, o Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e o Setor de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Lisboa. Art. 2º. – A ALBA tem por fim: a) congregar arabistas brasileiros e portugueses e estudiosos de campos afins, para intercâmbio cultural e pedagógico; b) promover o intercâmbio de professores e estudiosos da mesma área; c) trabalhar para a promoção e o desenvolvimento do ensino da língua árabe, assim como da cultura árabe em geral, no mundo lusófono; d) trabalhar para a promoção e o desenvolvimento do ensino da língua portuguesa, assim como da cultura brasileira e da cultura portuguesa, nos países árabes. Art. 3º. – A Diretoria da ALBA representará os sócios junto ao Serviço Cultural das Embaixadas e dos Consulados dos países de língua árabe, a fim de obter colaboração e orientação para atingir as finalidades a que se propõe.” O Simpósio terminou não sem nostalgia e a ausência muito sentida do Doutor Sabbagh e do Doutor Vargens, que, por motivo de saúde, não puderam receber as homenagens dos simposistas, feitas em reconhecimento de seu auspicioso labor no campo dos estudos árabes no Brasil, e particularmente no Setor de Estudos Árabes da UFRJ. A homenagem, encerrando as atividades do Simpósio, ocorreu em mais uma celebração do trabalho em equipe: o lançamento do sexto número da revista Tiraz e da separata do Dicionário Árabe-Português, do mesmo Doutor Alphonse Nagib Sabbagh. Restabelecidos já, Patrono e Presidente renovam-nos com seu exemplo de labor, alegria e vida. São Paulo, 04-08 de setembro de 2009.