Líbano: grave crise à vista
A política libanesa é praticamente dividida entre muçulmanos, em suas duas correntes, a xiita e a sunita, e cristãos, com suas várias correntes internas. Entre esses, predominam os maronitas. A família Gemayel tem forte influência no Líbano, pelo menos desde 1936, quando o avô do ministro da Indústria assassinado, de mesmo nome, fundou o Partido Falange (em árabe, Kataeb). A sua inspiração, à época, foi o fascismo de Benito Mussolini, na Itália. A sua influência predominou no país dos cedros, especialmente desde a independência do país da França, conquistada em 1943, ou seja, há mais de 60 anos.
Os militantes desse partido, por sua orientação, mantêm sempre divergências e mesmo confrontos com os muçulmanos, mas não por divergências religiosas, como procura mostrar a mídia grande, mas por divergências ideológicas, programáticas e mesmo de táticas de como resistir ao domínio e a influência ocidental, e especialmente estadunidense, nos rumos da política libanesa. A Falange possui excelentes relações não só com os Estados Unidos, mas com Israel e os sionistas.
Lembramos que durante a guerra civil ocorrida entre 1975 e 1989, quase 15 anos, esse Partido se aliou à Israel para lutar contra os palestinos. Foi exatamente no meio dessa guerra entre libaneses, que em 1982, no dia 19 de setembro, perpetraram o maior massacre que se teve notícia até os dias atuais de palestinos de uma só vez. A imprensa menciona à época até 3,5 mil mortos, na sua maioria mulheres, crianças e idosos, dos acampamentos de refugiados chamados Sabra e Chatila.
Tal massacre foi feito com mãos libanesas e árabes, mas sob o acobertamento e apoio tático total do exército israelense, na época sob o comando do general Ariel Sharon. Nessa época o Líbano tinha eleito como presidente Bachir Gemayel, da segunda geração da família, que foi assassinado nesse mesmo mês de setembro antes de sua posse. A partir daí, sob o pretexto de vingança, os israelenses, que tinham invadido o sul do Líbano e chegaram à Beirute, autorizaram, deram sinal verde para o massacre. Após a morte de Bachir, seu irmão, Amin, assumiu a presidência.
A divergência central são as ligações com a Síria que o Líbano mantém historicamente. Para muitos líderes árabes dos dois países, a criação do Líbano seria mesmo até artificial, pois há séculos ambos os países eram uma unidade política e geográfica única. Aliás, diga-se de passagem, as tais “fronteiras” no Oriente Médio, além de completamente móveis e flexíveis, são completamente artificiais e traçadas aleatoriamente de acordo com potências ocidentais em muitos momentos, como se fossem linhas desenhadas no chão do deserto.
A Síria sob o comando de Hafez El Assad, e depois de seu filho Bachir, sempre impôs forte resistência e oposição à influência americana no Oriente Médio e se manifesta contra o que chamam de “entidade sionista” em uma alusão ao Estado de Israel. Assim, esse país se fez presente no Líbano por 30 anos seguidos (1975-2005). Teve que sair no ano passado, após o assassinato do ex-primeiro Ministro Hafic Hariri, morto em fevereiro de 2005. Seguiu-se a essa morte - cuja autoria até hoje segue desconhecida mas a grande mídia aponta de imediato o seu dedo acusador para a Síria - grandes manifestações no país pela retirada das tropas sírias. A ONU aprovou então uma resolução nesse sentido, quando as tropas deixaram o país.
A família Gemayel seguiu forte na política, e isso se mostrou nas eleições gerais do ano passado. Dois grandes blocos se formaram: um pró-Síria, formado por muçulmanos xiitas e sunitas, o Hezbolláh, o grupo denominado AMAL e aliados cristãos, como o general Michel Aoun. O Partido Comunista Libanês apóia essa articulação, anti-americana. De outro lado, os falangistas, os drusos e outros agrupamentos direitistas e cristãos, apóiam a coligação anti-Síria e formaram maioria no governo, indicando o primeiro Ministro Fouad Siniora. Nessa articulação é que o neto, Pierre, do fundador do clã política da família, de mesmo nome, assumiu, com apenas 34 anos, o ministério da Indústria.
ANÁLISE DOS DESDOBRAMENTOS DA CRISE
Também aqui, a mídia grande prontamente apontou seu dedo inquisidor através de seus “analistas internacionais” e jornalistas de plantão prontos para reverberarem a política externa americana e de Israel, para a Síria. Pode-se ter divergências contra a política interna do governo da Síria, coisa e assunto que cabe exclusivamente ao povo da Síria resolver. Mas, indubitavelmente, esse país e seu governo, hoje, no cenário atual de conflito do Oriente Médio, é a nação que impõe a maior resistência à completa e total dominação dos Estados Unidos em todo o Oriente Médio. Claro que falo com relação aos países árabes, pois no Irã, com os persas, também há resistência com firmeza e tenacidade.
Se com a saída do Hezbolláh do governo na semana passada a instabilidade do governo já havia ficado elevada, agora as coisas vão se fragilizar ainda mais. Devem ocorrer, nos próximos dias, manifestações gigantes de ambos os lados – prós e contra a Síria – para darem ao mundo e ao próprio país demonstrações de força. É provável que esse governo não se sustente. Até porque perde completamente a sua maioria no parlamento.
A ONU, que sempre fez jogo duplo em muitos momentos, mas na maioria das vezes acaba pendendo para o lado dos americanos e de Israel, ficando completamente impotente para agir, aprovou há pouco tempo, por pressão americana, a instalação de uma Corte Internacional Penal em Beirute, para julgar os assassinatos de Hariri. Esse episódio tem o claro dedo americano e seu objetivo é desgastar o governo da Síria, procurar envolvê-lo em um crime que não existe prova alguma de que tenha cometido. Até porque a Síria foi e tem sido a que sofre o maior desgaste com essas mortes – a de Hariri e a de Pierre agora. Pessoalmente, suspeito que possa haver mesmo o dedo de agências de inteligências americanas e sionistas nesses assassinatos sob encomenda.
A fragilidade do governo que mencionei decorre da renúncia de seis ministros na semana retrasada, do bloco Hezbolláh. Com a morte de Pierre, o gabinete fica desfalcado em sete ministros. Diz a constituição que se oito (um terço de 24) renunciarem, cai todo o gabinete. Aliás, os pronunciamentos do líder do Hezbolláh, defendem a formação imediata de um governo de unidade nacional, com diversas forças políticas que defendem um Líbano soberano e independente, que seja afastado toda e qualquer influência dos Estados Unidos no país, e que a própria Síria seja vista como um país irmão e amigo dos libaneses. Caso contrário, o caminho será mesmo a queda do governo e a convocação antecipada de novas eleições.
Por fim, alguns estudiosos começam a falar de uma “iraquização” do Líbano, em uma alusão ao que vem ocorrendo no Iraque, de conflitos sectários entre correntes políticas e religiosas e correndo o risco inclusive de divisão geográfica e territorial do país, isso só interessa mesmo às potências invasoras de países árabes como o Estados Unidos e a Inglaterra1.
De nossa parte, esperamos que a linha justa a ser adotada seja a da ampla maioria do povo libanês, que já demonstrou nas ruas e nas urnas não aceitar ser tutelado pelos Estados Unidos, ser solidário à causa palestina e querer a imediata retirada das tropas americanas e inglesas do Iraque. Estamos firme com esse povo neste momento delicado de sua vida nacional.
(1) ver artigo de Anthony Shadid, correspondente em Beirute do “The Washington Post”, intitulado “Em meio à luta pelo poder, país da diversidade afunda na crise”, publicado no jornal Estadão do dia 22 de novembro de 2006, página A13.
*Artigo adaptado da coluna de Lejeune Mato Grosso no site Portal Vermelho (www.vermelho.org.br)