O êxodo e o outro*
Depois que brasileiros e espanhóis tiveram suas viagens interrompidas ultimamente, voltamos a pensar em construir pontes antes que a mídia e a desinformação nos aproxime de abismos. É com essa pré-disposição que acompanhamos a inquietação do governo espanhol, frente à entrada de gente que chega com cara de refugiado ou de turista com segundas intenções.Movidos pela ilusão de que as economias em expansão absorvem muita mão-de-obra, os perambulantes em busca de dias melhores começaram a desembarcar na Espanha. Apesar da aparência de que tudo se resolve no mercado, as oportunidades não são as mesmas. A massa migratória marroquina em direção à costa sul espanhola é expressiva o suficiente para sabermos que não se trata de um movimento isolado. Há algum tempo, o cruzamento do Gibraltar ocupa a atenção dos dois lados, especialmente da Andaluzia e do governo espanhol. Nos dias claros, de extrema luminosidade mediterrânea, avistam-se as costas marroquinas do porto de Algeciras. Tão próximos e diferentes, desenhados à henna e comendo pão com azeite, marroquinos e andaluzes vivem um re-encontro irreversível. Era preciso fazer algo, encarar o movimento de frente, na justa proporção. Essa preocupação fomentou o projeto da Fundação Três Culturas, que se estruturou ao promover estudos sobre as culturas mediterrâneas e cursos regulares de hebraico e de árabe. Afinal, aquele chão abrigou os passos das três culturas monoteístas e de ciganos, durante séculos alandaluzes. Também não esquecemos o que nos conta a história: o Marrocos acolheu os alandaluzes expulsos pela reconquista no século XVI. Muçulmanos e judeus refizeram suas vidas em Fez ou pra lá de Marrakesh. Depois das deportações daqui e de lá, tentamos humanamente compreender a alienante globalização, as regras da Comunidade Européia, o esforço de organizações como a Fundação Três Culturas e, afinal, o direito de ir e vir. Gerado pelas economias locais que não incorporam o que criam, o êxodo se dissemina e a cara do outro se pulveriza. O trabalho com ênfase na percepção do outro é a baliza da Fundação Três Culturas, sediada em Sevilha, desde 1998. Formada com empenho conjunto da Junta de Andaluzia, Reino do Marrocos, Centro Peres pela Paz e Autoridade Nacional Palestina, estimula encontros entre as culturas mediterrâneas, pela paz, diálogo e tolerância. Sevilha também acolheu a orquestra Baremboin-Said, na qual tocam músicos judeus, palestinos e de vários países árabes. Nada como arte e cultura para consolidar boas idéias. A proposta da "Três Culturas" não está baseada no resgate do passado de ouro, quando muçulmanos, judeus e cristãos conviveram, criaram e trabalharam juntos por quase 8 séculos. Este passado é inspiração apenas, porque a memória só vale se atualizada e por isso real, realizada, sem a idealização dos tempos áureos que se foram. Nem poderia já que, sabemos, esta idéia está por trás do fundamentalismo: "fomos grandes e podemos voltar a ser". Não. O idealismo tem muitas certezas e por isso é intolerante. O real nos põe nus e frágeis porque dialoga. Como herdeiros do Alandaluz, consideramos que a partir do século VIII não houve invasão árabe, e sim um processo de islamização da península. Cristãos e judeus aprenderam árabe porque era elegante ler, falar, poetizar em árabe. Igrejas cristãs e sinagogas estão cheias de marcas da cultura árabe, referência de refinamento na Europa medieval. Não há invasão marroquina na Andaluzia, como não houve invasão nordestina em São Paulo no inicio do século XX, nem argelinos invadiram a França pós anos 60. Uma massa estrangeira perambula ingenuamente em busca de outra vida, essa sede de integração em sociedades que rejeitam a periferia do mundo. Pensar a história nos lança no real e nos inspira a criar pontes. Queremos conhecer o outro que engrossa as malhas do êxodo. Quem é este outro que se assoma às costas andaluzas? Quem é o estrangeiro? Quem é o "invasor"? Quem é o outro que destaca a intolerância? Queremos encontrá-lo para pensar caminhos. Pensar: poderoso antídoto contra a mídia, a alienação, a falta de expressão. "Pensar é respirar", escreveu Octavio Paz e "amar é agir", disse Victor Hugo. Que grandes vozes selem nossa conversa, para não cairmos nas grades das informações distorcidas que alimentam as certezas do idealismo. *O "Êxodo e o outro" foi publicado originalmente na edição 140 da newsletter do Icarabe, no dia 20 de março de 2008