O poeta, o rastro do sonho*
CONTAM QUE...
Ibn Hazm, poeta do século XI, intelectual de amplo espectro, jurista, filósofo, foi um homem do califado. Viveu o esplendor de Córdoba e parece que seus passos permaneceram no tempo da dinastia omíada, mesmo depois de destruída. Ao norte, Rodrigo de Bivar, el Cid, admirado por chefes e tropas cristãs e árabes, lutou dos dois lados. O adolescente sensível Ibn Hazm acompanhava os feitos do guerreiro, pouco antes da destruição de Madinat-al-Zahra, a cidade real. Mesmo com a prisão do pai e as invasões sucessivas, viveu em busca do resgate do califado. Ou do próprio sonho? Levou amargura pelos seus dias e não imaginava que seria conhecido na posteridade por um livro sobre o amor: histórias e observações da elegante sociedade em que viveu, contas preciosas do colar pendurado no pescoço de uma pomba. "O colar da paloma".
Tratados neoplatônicos e textos sobre jurisprudência, suplantados por um livro romântico que abordava temas como : "Daqueles que se apaixonam à primeira vista", "Dos sinais enviados pelos olhos", "Da traição". Um "tributo ao amor cortês", segundo Maria Rosa Menocal que ainda nos conta: "... a popularidade duradoura d' O Colar, deveu-se precisamente às maneiras como o mundo das taifas - um mundo que Ibn Hazm via como um sinal inequívoco do fim da civilização que ele conheceu e amou - transformou aquelas noções altamente refinadas bastante acessível à todos. Foi o mundo das taifas que retirou esses conceitos dos lugares cercados de muralhas onde antes se escondiam, como Madinat-al-Zahra, expondo-o aos olhos do público".
Este trecho de "O colar" me trouxe ecos de um soneto de Camões e um sentimento de contemporaneidade:
"O amor, Deus seja louvado, é uma enfermidade
Cujo tratamento deve ser de acordo com a aflição.
Deliciosa doença, maravilhoso mal bem vindo.
Quem dele não sofre não quer ser-lhe imune,
E quem dele sofre não quer vê-lo findo.
Minha doença, os médicos não curam.
Inexorável, arrasta-me à destruição.
Consinto em fazer dela um sacrifício
E, impaciente, bebo o vinho e o veneno.
Minhas noites de amor foram sem peja
Minh’alma as amou, porém, acima das paixões."
( O COLAR DA PALOMA)
Camões, 500 anos depois de Ibn Hazm, Borges e nós em 2005, o desespero do apaixonamento que nos enforca, sem nos deixar alternativa que não seja, na melhor das hipóteses, a da entrega:
" o amor é fogo que arde sem se ver
é ferida que dói e não se sente
é um contentamento descontente
é dor que desatina sem doer
É um bem querer mais que bem querer
é solitário andar por entre a gente
é um não contentar-se de contente
é cuidar que se ganhe em se perder
É um estar-se preso por vontade
é servir a quem vence o vencedor
é um ter, com quem nos mata, lealdade
Mas como causar pode o seu favor
nos mortais corações conformidade
sendo a si tão contrário o mesmo amor."
(LÍRICA)
E Borges: "es el amor, tendre que ocultarme o que huir..." (EL AMENAZADO)
*texto originalmente publicado no dia 9 de dezembro de 2005, na edição nº28 da newsletter do Icarabe