Otimismo da vontade

Seg, 25/09/2006 - 09:00

Conheci Edward Said em 1984, quando ele foi o palestrante principal na Conferência “Europa e seus outros”, que, como uma estudante de graduação na Universidade que a recebia, acabei obrigada a ajudar a organizar. Naquele tempo, Edward Said já era uma celebridade, “Orientalismo” já se tornara um livro referencial, presença garantida nas listas de leitura da universidade. Parecia natural que seu nome fosse o primeiro a ser lembrado pelos organizadores da conferência e que investissem seus esforços para garantir sua participação. A presença de Said era o mesmo que garantir o sucesso da conferência. Solicitada a sugerir um segundo palestrante árabe, veio-me à cabeça o nome de Anwar Abdel-Malek, que era então o diretor de pesquisa do ‘Centre National de la Recherche Scientifique’, na França. Muitos pareceram não reconhecer o nome e foi somente quando lembrei que, em “Orientalismo”, Said reconhece uma dívida intelectual para com Abdel-Malek que minha sugestão foi levada a sério. Naquele momento, meus sentimentos eram ambivalentes. Eu tinha orgulho das conquistas de Edward Said, naturalmente, mas ao mesmo tempo havia um sentimento de raiva em relação ao fato de um acadêmico brilhante com Abdel-Malek ser desconhecido até que fosse citado por Said. Qual fosse o caso, quem era Edward Said? Naquele tempo, como muitos outros árabes, eu estava confusa a respeito de sua identidade. Poderia ele ser realmente um de nós? Quando ele chegou para a conferência na Universidade de Essex, no verão de 1984, eu conversava no salão principal com Anwar Abdel-Malek minutos antes da abertura da sessão. Vi ele se aproximar, cumprimentando Anwar em um perfeito dialeto egípcio. Ao ouvir Edward Said em vários shows de TV, articulando inglês, gestos e olhares ocidentais, eu estava convencida de que, se ele falasse árabe de alguma forma, seria um árabe básico e com um pesado sotaque, metade inglês, metade palestino talvez. Lembro de ter sido tão surpreendida por seu egípcio inesperado que mal podia falar. Fiquei escutando à conversa íntima e calorosa entre Said e Abdel-Malek, entremeadas por risadas e palavrões. Quando Said saiu, prontamente disparei a pergunta para a dúvida que me deixara perplexa: “Como ele soa tão egípcio como você e eu?”. Abdel-Malek disse-me, então, que Said vivera no Egito quando criança. No salão da palestra, escutei Said, seguro no seu papel, fortemente articulado e, sim, um Ocidental (no melhor sentido da palavra). Cheia de admiração como eu estava pela substância da palestra que ele deu e a maneira com que ele a entregou, a questão surgiu na minha mente: “O que era ele realmente?”. Foi só apenas um tempo depois, graças a seus escritos e vida, que comecei a apreciar que ser firmemente enraizado em uma cultura nem sempre é uma vantagem, e que uma origem e identidade misturadas podem ser fortalecedoras e certamente muito mais interessante se você puder combinar o melhor dos dois mundos. Mas havia também uma dimensão política para a minha ambivalência relacionada a Edward Said. Para egípcios como eu, envolvidos no movimento de solidariedade aos palestinos, que cresceram sob Nasser, que viriam a ser os radicais políticos do fim dos anos 60 e início dos 70, Said era visto com suspeita. Sua defesa da solução da questão palestina baseada em dois Estados era uma oposição à nossa própria posição, que insistia em um único Estado secular para árabes e judeus. E quando Sadat, após a paz com Israel, hostil à OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e seu líder Arafat, mencionou o nome de Said como um palestino decente, que deveria ter um papel instrumental nas negociações de uma solução, acredito que meus sentimentos eram os mesmos de muitos árabes e, posteriormente, descobri, era os mesmos de Said. “O quê! Um árabe-americano professor de literatura na Universidade de Columbia no lugar de Arafat... a idéia era absurda”. Mas importantes lições são aprendidas durante um longo período de tempo. Duas décadas com Arafat e o guerreiro libertador da luta armada dos anos 70 apertou mãos com Rabin e aceitou uma auto-regulação limitada. A voz sombria ao fundo, lembrando aos árabes que a luta palestina era sobre liberdade e igualdade, não sobre o estabelecimento de um enclave auto-regulado sob hegemonia israelense, era a do “moderado” Edward Said. A despeito da derrota das esperanças de primeira hora investidas na OLP e seu líder, Said permanece tão engajado quanto nunca na questão palestina, dando voz à oposição que vai contra o acordo que Said caracteriza como “um instrumento da rendição palestina, de uma Versailles palestina”. O acordo, no entanto, não é nada mais do que mais uma fonte de descontentamento. Said também está seriamente doente. “Tenho uma doença crônica, leucemia”, ele diz em “The Sword and The Pen”. “Há momentos ruins ... Tento não pensar muito sobre o futuro ... Tenho muito a dizer e escrever, acredito, e apenas quero continuar fazendo isso”. Said está engajado em uma batalha contra as certezas banais da vida: ele está com raiva de tais banalidades, mas não permite que essa raiva polua sua vida. Pelo contrário, isso se tornou uma força-guia em uma batalha em que o grito de luta é a insistência de Gramsci no “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade”. E nessa batalha, a arma principal de Said permanece sendo sua habilidade para narrar histórias e prover narrativas e histórias alternativas. Sua paixão pela narração e o brilhantismo como narrador pode ser entendido assim que percebermos o papel central que ele atribui a narrativas na moldagem e mudança de uma determinada realidade. Isso fica claro na introdução de seu magnum opus, “Cultura e Imperialismo”: “O poder para narrar ou bloquear outras narrativas em formar-se e emergir é muito importante para a cultura e o imperialismo... Mais importante, as grandes narrativas de emancipação e de esclarecimento mobilizaram povos no mundo colonial a se levantarem e expulsar o imperialismo: no processo, muitos europeus e americanos foram também tomados por essas histórias e seus protagonistas e também eles lutaram por narrativas de igualdade e comunidade humana”. Edward Said é um palestino nascido em Jerusalém. Seu compromisso a dar voz a narrativa/narrativas de contraponto surge do fato de que ele é parte do povo cuja narrativa foi submetida a um processo sistemático de supressão e bloqueio por seus opressores, que têm a seu dispor uma poderosa e efetiva máquina de propaganda. Mas Said é tampouco simplesmente um palestino, a quem foi negado acesso a sua terra natal e que foi despossuído da propriedade de sua família em Jerusalém. Ele é um palestino com uma nacionalidade americana, que cresceu no Egito e no Líbano antes de ir aos Estados Unidos continuar seus estudos. Said continua a viver em Nova York. Seu ponto de vantagem é aquele do exílio, um termo chave para entender Said, que pertence aos “dois mundos sem pertencer completamente a qualquer um deles”. Ainda assim, no lugar de ver seu exílio como algo triste, isso se torna um elemento fortalecedor: “Pertencer aos dois lados da divisão imperial permite que você os entenda mais facilmente”. Como conseqüência, as leituras e as narrativas de Said não são simples nem monolíticas. Contraponto é um termo do qual ele gosta. E quando ele fala de uma leitura contrapontual de documentos culturais, o que ele quer dizer é tomar suporte de diferentes vozes para informar cultura/culturas. “Todas as culturas”, ele acredita, “estão envolvidas uma na outra; nenhuma é única e pura, todas são híbridas, heterogêneas, extraordinariamente diferenciadas e não-monolíticas”. *ESTE TEXTO FOI ADAPTADO DE UM ARTIGO PUBLICADO POR MONA ANIS ORIGINALMENTE EM 1995 E GENTILMENTE CEDIDO AO ICARABE PELA AUTORA NA SUA PASSAGEM PELO BRASIL