9ª Mostra Mundo Árabe de Cinema: “Zelal”, de Marianne Khoury, emociona o público brasileiro
Primeiro registro de um hospital psiquiátrico nos países árabes, filme causou forte impacto em exibições no CCBB-SP e na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, como demonstraram os encontros do público com a cineasta egípcia. A passagem da cineasta egípcia Marianne Khoury pelo Brasil marcou de forma profunda a 9ª Mostra Mundo Árabe de Cinema. Uma das convidadas especiais desta edição, a diretora, sobrinha do ícone do cinema árabe Youssef Chahine e que foi também sua colaboradora, apresentou seu filme “Zelal”, um registro cinematográfico de um hospital psiquiátrico do ponto de vista dos pacientes, e comoveu as audiências durante as exibições seguidas de debates no CCBB-SP (30 de agosto) e na Biblioteca Mário de Andrade (2 de setembro).
“Filmamos [Marianne e Mustapha Hasnaoui] o Hospital Abassya, o maior hospital público no Cairo, em 2010. Pensei em entrar lá com uma pequena câmara e fazer o som, a imagem, tudo porque ao filmar, busco uma relação completa com as pessoas, com suas histórias. Mas quando consegui autorização para filmar, dei-me conta de que o projeto era muito maior do que imaginava e convidei o Mustapha para desenvolvê-lo comigo”, explicou ao público.
As personagens reais de “Zelal” remeteram o público a situações pessoais e à própria condição da saúde mental no Brasil. Comentários emocionados sobre parentes que passam ou passaram por situações semelhantes, histórias pessoais de internação e curiosidades acerca de como o Egito lida com a questão permearam os encontros com a diretora. “Na história do cinema sempre mostram pessoas com problemas mentais fazendo coisas esquisitas. Eles podem ter problemas, mas agem como qualquer outro ser humano, expressam-se muito bem, sem inibições. Eles podem falar melhor do que nós, podemos nos ver nessas pessoas. Pensei em quebrar o estigma da saúde mental, questionar a ideia que temos sobre o tema. São pessoas que podem falar por si”, afirmou Marianne.
A curadora da Mostra e reitora da Unifesp, Soraya Smaili, que mediou o debate no CCBB-SP, ressaltou que o tratamento da saúde mental no Brasil tem sofrido mudanças. “O sistema de saúde no Brasil mudou um pouco nos últimos anos. Tínhamos hospitais psiquiátricos, mas felizmente isso vem sendo reformulado. Ainda não mudou completamente, mas temos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) os Centros de Apoio Psiquiátrico (CAPS). Verificamos nos últimos anos que o hospital psiquiátrico piora a condição psiquiátrica e estamos num movimento de reformulação da saúde pública, embora tenhamos limitações.”
Soraya discorreu ainda sobre o grande problema que a saúde mental representa no Brasil, com altos índices de depressão e alcoolismo, especialmente em algumas carreiras, além da questão das drogas, bastante disseminada nas diversas faixas etárias e classes sociais.
Marianne relatou como o filme passou a significar para ela mais do que uma peça cinematográfica, uma parte de sua vida. “Visitei essas famílias por três anos após fazer o filme. É importante aprender com a experiência do outro. Não foi apenas para explorar a saúde mental no Egito, mas para conhecer as pessoas. Esses pacientes não mentem, carregam histórias reais. Você passa a entender muito sobre a sociedade egípcia pelos olhos deles.”
Fazendo um retrospecto da trajetória da Mostra Mundo Árabe de Cinema, Soraya lembrou que Marianne Khoury integra esta edição nove anos após a estreia do evento, que exibiu um filme de seu tio, Youssef Chahine. “É uma grande honra fazer parte desta atividade nos 10 anos do ICArabe e receber a Marianne. No começo, éramos muito pequenos, apenas um grupo de intelectuais que decidiram falar sobre esta grande cultura, não apenas a cultura do passado, mas a cultura viva hoje que temos nos países árabes. Somos 22 árabes países com grande diversidade, várias culturas em uma cultura. E temos esta grande arte cinematográfica. Quando começamos o festival, não tínhamos a dimensão do que seria. No começo tivemos cinco filmes, apenas no Centro Cultural São Paulo, entre eles um de Chahine, e não sabíamos que o público brasileiro era muito interessado em conhecer os filmes árabes. E graças a esse interesse, fomos crescendo ao longo dos anos.”
A capacidade de enxergar o outro
Na Biblioteca Mário de Andrade a reação ao documentário não foi diferente. A cineasta Betty Martins, que integra a programação da Mostra com o filme “Nem sempre me vesti assim”, participou do encontro com o público no espaço. “Tive o privilégio de conhecer Marianne Khoury. Seu trabalho ‘Zelal´, especialmente para mim, uma documentarista, é um exercício de reflexão. Aprecio, assim como na minha prática, o cuidado com a metodologia, a ética quando se apresenta o outro, e isso pra mim foi muito evidente na sua obra. Mais do que um trabalho `etnográfico´de pura observação, as pessoas retratadas conversam entre si, com naturalidade, são protagonistas. Pois é difícil representar um grupo de pessoas que por pertencerem a tal categoria, a do que a sociedade chama de `loucos´ , são automaticamente vistas como irrelevantes, inferiores. São eles os que nós preferíamos excluir e esquecer. Como não acabar reproduzindo através das lentes esse mesmo sentimento e, sendo assim todo o conteúdo da obra seria anulado.Para esse tipo de projeto não há conteúdo que se sustente sem um trabalho de representação coerente. É um grande perigo”, comenta.
Betty conta que a conversa que travou com Marianne no debate deixou bem clara a essência do trabalho. “Por seguir a ideia foucaultiana de que é a “loucura que detém a verdade da psicologia”, ficou claro que a assência era poder desconstruir essas instituições de poder que circulam a ideia do louco e achar algumas razões. “É na loucura que manifestamos todos os elementos que nos limitam e os que de alguma maneira possam nos libertar, os que compõem o nosso princípio de realidade e de prazer. É na loucura também que podemos encontrar a cultura. Isso é muito certo, refletiu até na qualidade do debate. Acabamos falando muito sobre cultura e sociedade no Cairo e, principalmente, questões de gênero, já que havia muitas narrativas de mulheres dentro do hospital psiquiátrico. É fato, portanto, que o objetivo por trás da poética da obra de Khoury foi alcançado. E foi nos excluídos que encontramos verdades.”
Marianne contou ao público que o bate-papo foi o ponto alto de sua passagem pelo Brasil. “É uma honra estar aqui. Fiquei muito feliz ao receber o convite para participar da Mostra. Sou fascinada pelo Brasil, vi muitas similaridades entre São Paulo e o Cairo. O centro da cidade, com toda sua vitalidade, me fascinou. Também estou sensibilizada com a reação deste público, com o interesse e as experiências que vocês estão me apresentando. Estes foram os melhores debates que o filme já teve.”
“Zelal” terá mais uma exibição no dia 11 de setembro, às 16h, no CCBB-SP. Confira a programação da Mostra em http://www.mundoarabe2014.icarabe.org/index.html#
Assista ao trailer de “Zelal” em http://primed.tv/zelal-2/?lang=en