“Dizem: ‘Você é nossa terra natal, nosso lar. O cheiro, o toque da terra natal”
Icarabe: Li em entrevista sua que lembra de ter tido uma infância feliz. O que você lembra de sua infância crescendo como uma palestina dentro de Israel? Amal Murkus: Minha infância teve muito amor. Havia pobreza, não havia dinheiro, mas havia muito amor. Havia conexão com a terra (fez questão de dizer a palavra em português; a entrevista foi feita em inglês) , com os animais, com as temporadas, esperando a chuva, as árvores florescerem, os pássaros. A casa onde cresci era um pouco longe da vila, mas era uma casa cultural, política. Era também uma casa de fazendeiros. Meus pais plantavam vegetais, árvores, oliveiras, e nós trabalhávamos nessas oliveiras. Estar conectada com a natureza era parte dessa felicidade. Comíamos coisas vindas diretas da terra. Uma segunda coisa era o fato de sermos seis irmãs. E eu, a mais nova. Icarabe: Nenhum irmão? Amal: Nenhum. Nós ouvíamos muita música na casa. Palestinas, uma tradição de minha avó e da minha mãe, e por outro lado, músicas libanesas, egípcias, gregas, russas e americanas. Eu era muito ativa quando criança, não tinha uma vida vazia, tinha várias preocupações. Coletava dinheiro para os pobres, participava de manifestações no dia do trabalho, esperava o dia da Terra* e lia o jornal. Tínhamos apenas um importante jornal palestino chamado Al-Ittihad, que saia duas vezes por semana, e eu, quando criança, com 11 anos, ia à sede do Partido Comunista, colocava alguns no bolso e os distribuía às pessoas. Mas a coisa mais importante, que me fazia feliz, era o talento de poder cantar. Eu cantava o tempo todo, em casa, nos casamentos, nos festivais, nas manifestações. Icarabe: E tinha consciência do que acontecia ao redor, afinal você nasceu em 1968 e teve uma infância colada aos acontecimentos da década de 70, pós-guerra de 1967? Amal: Sim, o tempo todo. Lembro muito da felicidade, mas também havia tristeza. Minha vida estava cheia de leituras e de histórias do sofrimento do meu povo. Além disso, te disse que nós éramos muito pobres. Nem tudo que queríamos comer podíamos comer, nem tudo que queríamos vestir podíamos vestir. Mas acho que algo me deu força e raízes claras: o fato de eu não ter me tornado uma refugiada em 1948, pois meus pais ficaram na nossa vila. Isso nos deu um sentimento maior de força e de esperança comparado a outros artistas e escritores que se tornaram refugiados, o que é mais difícil, é mais trágico. Felicidade, é assim que olho para minha infância porque amo vê-la dessa forma. Não me lembro de coisas ruins acontecendo. Minha mãe teve uma energia adorável. Todo o tempo explicando, falando, nos fazendo vestidos bonitos. A tristeza da minha infância era ter medo de cantar em um teatro, de subir no palco. Icarabe: Você tinha esse medo? Amal: Mas claro! Quando eu era criança, chorava sempre que ia subir no palco. Com cinco anos, eu já cantava em grandes festivais. Icarabe: E como é ser hoje uma palestina em Israel? Como isso afeta sua carreira, comparada a de outros artistas judeus? Amal: Na verdade, nada mudou. Talvez na aparência, mas nos assuntos principais está tudo igual, talvez pior. Em algum momento, sonhamos que a paz viria, mas agora as coisas ficaram mais complicadas na vida social, mais pessoas estão pobres, há mais violência, mais ódio entre judeus e árabes, mais religiosos fanáticos. Eu sabia que isso viria a acontecer, pois a guerra e a ocupação levam a sociedade a ser mais violenta. Icarabe: Como a mídia israelense trata você? Amal: Eles me dão pouca atenção. Quando lancei meu último CD, mandei para alguns jornalistas, e um, muito famoso, do Haaretz, me ligou, o Ben Shalev. Ele veio à minha vila, sentou comigo, me entrevistou e fez um ótimo artigo sobre meu CD e a renascença de músicas tradicionais palestinas. Falei sobre minha luta pelos direitos das mulheres e como sobrevivo como cantora em Israel. Uma vez uma estação de rádio me ligou para fazer uma entrevista, mas aí me perguntaram por que continuo a cantar em árabe e não traduzo minhas canções para o hebraico. Às vezes, quando faço grandes concertos, ligam e me entrevistam. Mas não tenho as mesmas oportunidades de cidadãos judeus, mesmo eu sendo uma cidadã israelense. Icarabe: Você já se apresentou nos Territórios Ocupados? Amal: Gaza hoje está fechada, sob cerco. Fui a Gaza em 1994, um grande concerto para o Dia da Mulher. Também me apresentei em uma vila perto de Ramallah onde há um campo internacional voluntário onde os moradores não têm água, eletricidade, nada. O Partido Comunista está lá construindo escolas, sistemas de água. Fui voluntária lá por duas semanas, trabalhando e cantando. Fui a Jenin em 2001, depois da destruição do campo. Também me apresentei nas Colinas do Golã, território ocupado da Síria. Icarabe: Você viaja muito, vai a muitos países e deve encontrar muitos palestinos refugiados. Como são esses encontros? Amal: Eles me dizem: “Você é nossa terra natal, nosso lar. O cheiro, o toque da terra natal”. E eles choram muito, e então eu choro muito. Eles ficam muito orgulhosos que eu tenha mantido a identidade cultural e permanecido na minha vila. Mesmo que haja dificuldades, que eu possa encontrar melhores oportunidades de cantar na Europa e ser uma grande estrela, pretendo continuar na terra e continuar a ser a voz dos refugiados, dos prisioneiros, das mulheres fracas, das crianças pobres. Icarabe: Falando da sociedade palestina como um todo, uma coisa que acontece hoje é que há uma divisão na forma como diferentes palestinos levam a vida. Os de Gaza, os da Cisjordânia, e mesmo os palestinos dentro de Israel. Isso pode levar a uma separação e quebra da identidade palestina? Amal: Bom, essa é a realidade. Mas há muitas coisas comuns, como o sonho de retornar à Palestina. A tristeza também é comum. Isso também é parte da realidade. Quase como se passasse no nascimento, pois as mães estão sempre esperando para ver os irmãos, os maridos. A família foi quebrada em 1948, e mesmo antes disso. Há também o sonho de paz e viver uma vida normal como outros povos. De poder guiar nosso futuro por nós mesmos, não ter um futuro guiado por Israel. Não sei qual solução seria, um só Estado para os dois povos, árabes e judeus juntos, ou então dois Estados para dois povos, como eu desejava, um Estado palestino ao lado de Israel. Icarabe: A solução de 1967. Você acha isso uma solução viável? Amal: Agora há discussão sobre isso, mas vamos dizer que dois Estados para dois povos nas fronteiras de 1967 é a solução mais aceita. Aos poucos, veremos como a situação se desdobrará. Mas você está certo, nós palestinos temos diferentes culturas. As pessoas de Gaza vivem uma realidade mais próxima do Egito, eu pertenço a uma parte mais próxima do Líbano e da Síria. Mas foi sempre assim. E não vejo o mundo por partes. Você é como meu irmão, não vejo você como brasileiro e eu como palestina. Essa é a forma que olho para os palestinos também. Encontro aqueles que têm a mesma sensibilidade que tenho direcionada a outro ser humano e outros que não estão nem aí. Não adianta ser palestino. Tento com minha música refletir a memória coletiva, o máximo que eu posso. Mas acho que estou refletindo mais a realidade dos palestinos que estão em Israel, os palestinos de 1948. Sou mais parte deles, mas acho solidariedade de outros ao redor do mundo. Alguns dos quais guardam a Palestina apenas através das histórias de seus avós. Icarabe: Você é uma conhecida militante em questões de direitos das mulheres e bate de frente inclusive com preceitos da própria sociedade árabe-palestina. Houve algum progresso nessas últimas décadas? Amal: Durante um tempo, mulheres não podiam trabalhar, e agora no mundo árabe muitas trabalham e ajudam os homens a levar dinheiro para a casa. Os pais não permitiam que as garotas fossem à universidade, agora muitas estão indo. A maioria de cantores famosos no mundo árabe são mulheres. A discriminação existe no mundo todo. Sei que a maior porcentagem de violência contra as mulheres é na Inglaterra, não no mundo árabe. Mas, com certeza, temos que lidar com isso e dar, especialmente na sociedade árabe, mais poder para as mulheres. E está provado que uma ajuda a outra. A mãe apóia a filha, a irmã apóia e a amiga apóia. Eu fui apoiada por dois homens, meu pai e meu marido. Icarabe: Qual a força do Partido Comunista e da esquerda israelense em geral? Amal: A Frente Democrática, com o Partido Comunista, é a primeira força dos árabes. Temos quatro membros no Parlamento. Há também o movimento islâmico, mas nem todos escolhem o caminho religioso. Icarabe: Na entrevista a Ben Shalev, há uma preocupação sua pelo fato de os palestinos acharem que não têm uma música própria. O que exatamente quis dizer com isso? Amal: O problema é que nunca ninguém gravou músicas com boa qualidade na Palestina. Quando fazemos casamentos, usamos canções do Líbano. Em concertos nas escolas, trazemos do Líbano ou da Síria. Então pensei: “quero criar uma música palestina local”. Posso trazer isso das raízes ou criar algo com influências modernas. Quero que minha música reflita a vida das minhas crianças, minha vida. Essa era uma preocupação que tinha. Lembre que em 1948 tudo foi destruído e 60 anos não é tempo suficiente para construir a base para arte. O esforço foi para que as pessoas ficassem na terra, continuassem trabalhando, conseguissem dinheiro, pudessem ir às universidades, mas a arte foi deixada de lado. Alguma coisa foi interrompida na música depois de 1948, algo sobre sua identidade não ficou suficientemente clara. Os escritores escreviam e seus livros eram famosos no mundo árabe e traduzidos para outras línguas. O mesmo com poetas. Com a música, não. Eu sou talvez a primeira cantora palestina, não apenas em Israel, mas em toda a Palestina, que realmente leve adiante projetos musicais. Sou a segunda geração da nakba. Meus projetos e meus passos devem ser dados em direção a desenvolver músicas palestinas originais, coisa que não existe registrada. Icarabe: Você consegue medir sua influência sobre jovens palestinos nesse sentido? Amal: Sim, há muitos grupos palestinos criando suas próprias músicas. Não é fácil, pois não temos gravadoras, lobby ou orquestras filarmônicas. O único poder que temos é a identidade. Eu estou produzindo todo o meu trabalho sozinha, com meu próprio dinheiro. Faço concertos em Israel, na minha vila, em Nazareth, e desse dinheiro faço a produção de meu CD e sobrevivo. Isso é importante, não tenho ninguém apoiando meu projeto. Não tenho escolha. Não tenho os privilégios de cantores judeus e não vivo na Cisjordânia para receber ajuda da União Européia. Icarabe: O que é mais fácil, para um palestino, fazer música em Israel ou na Cisjordânia? Imagino que em Gaza seja quase impossível... Amal: Não! Eles estão criando em Gaza. Há teatros. Há um mês, no meu programa de rádio em Nazareth, entrevistei um diretor que havia feito uma peça de teatro e falava da política e da situação social. Falaram, então, de um grupo de rap de Gaza que está criando por lá. Em Ramallah, há um florescimento, um acordar cultural. É incrível. Há a ocupação, uma vida muito pobre, mas há uma vida cultural que está crescendo. Existe ali um tipo de dinheiro que chega e o apoio vai principalmente para projetos de arte, há muitas escolas de música para crianças, muitos refugiados estão tocando. Hoje deve haver cerca de cinco conservatórios na Cisjordânia. Icarabe: Como a arte, então, pode ajudar na questão palestina? Amal: Sinto que minha arte não é um projeto comercial. Claro que quero ganhar em cima disso, pois quero viver e desenvolver minha arte. Mas quero trabalhar com comunidades locais, desenvolver projetos com crianças de famílias pobres, em famílias em que mulheres são atacadas pelos homens, nos abrigos para mulher contra a violência. Esse é meu sonho, fazer um espaço na minha vila que se torne um estúdio para trabalhar com crianças e ajudar mulheres jovens a criar música. Fazer com que o caminho delas seja mais fácil do que o meu, pois o meu foi muito difícil.