"Eu sou diplomata que exerce uma função sob diplomacia ocupada também"
Icarabe: Os palestinos já passaram por diversas etapas do conflito com os israelenses. A nakba, em 48, depois 67, com a ocupação de seus territórios, depois a década de 90, com Oslo, e todos esses marcos significam etapas importantes do conflito. O que a eleição do Hamas significou dentro dessa trajetória? Arnaldo Carrilho: O Hamas não é uma criação original palestina, é uma criação da Irmandade Muçulmana, com sede no Cairo (Egito) e financiamento do Catar. Os palestinos muçulmanos estavam esperando muito uma oportunidade histórica que os fizesse chegar ao poder. E chegaram em função da desmoralização máxima dos sucessores de Arafat. Uma coisa que geralmente não se fala da questão palestina é a divisão clânica da sociedade palestina, como ocorre com as sociedades libanesa, síria, jordaniana, que é muito mais grave, e egípcia. O que houve foi o seguinte: Israel, querendo criar o inimigo do inimigo, mas que seria inimigo futuro, protegeu o Hamas. Hamas quer dizer zelo, mas a palavra zelo no islã quer dizer a obediência à jihad. Por sua vez, jihad não quer dizer guerra santa, como a imprensa ocidental em geral classifica, mas quer dizer a disposição para defender a religião. Quem votou no Hamas em janeiro de 2006 não foram apenas muçulmanos, mas cristãos também, por causa do desespero causado pela humilhação de uma ocupação crescentemente injusta e humilhante. O Hamas, antes protegido por Israel, foi ao mesmo tempo um vento que deu ao povo palestino chance de manifestar sua posição a um estado de coisas que era realmente catastrófico. Não é possível que o primeiro-ministro (Ahmed Qurei, do Fatah, no posto de 2003 a 2005) da Palestina importasse clandestinamente, com proteção israelense, cimento do Egito para construir o muro. Então, o que houve com o Hamas é que ele foi um sopro de liberdade. Acontece que os Estados Unidos da América, o senhor George Bush diz: “Não aceitamos a eleição do Hamas porque o Hamas é terrorista”. E eu quero dizer o seguinte a você: o Hamas não é terrorista, é resistente. A prova é que Condolezza Rice, visitando Ramallah, chegou ao presidente Mahmoud Abbas e perguntou: “Você pode me dizer qual a diferença entre terrorismo e resistência?”. É muito difícil nessas circunstâncias. Se eu me explodo com uma bomba num mercado israelense e sou chamado de terrorista, o que dizer então de uma incursão, que é como eles chamam, de helicópteros com mísseis onde palestinos traidores, alcagüetes, com um spray incolor indicam ao helicóptero onde mandar o míssel. Onde é que está o terrorismo? Ela pediu para definir o que é resistência, mas não pediu para definir o que é terrorismo porque ela parte do princípio de que terrorismo todo mundo entende o que seja. Icarabe: O que é o terrorismo no contexto do conflito? Carrilho: Com a palavra terrorismo, é preciso ter muita atenção. Um dos grandes especialistas do mundo sobre terrorismo é um homem que, inclusive, não é de esquerda. É um judeu alemão chamado Walter Laqueur. Ele diz que é uma palavra derivada da fase do Terror da Revolução Francesa, mas só foi usada pela primeira vez pelos nazistas. Até a ascensão de Hitler e do partido nazista na Alemanha, não se usava “terrorismo”. Quando o arquiduque austríaco foi assassinado em público, em Sarajevo, em 1914, gerando a Primeira guerra mundial, ninguém disse “o terrorista matou o arquiduque”. Não se usava a palavra. Hoje em dia a palavra terrorismo se tornou uma palavra bloqueante da aplicação da lei. “Ah, é terrorista, logo não precisa de decisão judicial, a gente mata, a gente prende em Guantánamo”. A palavra terrorismo se tornou uma palavra mágica, não passível de julgamento judicial. No momento, há cinco ministros palestinos presos porque acusados de terrorismo. Foram arrancados de suas casas, aos berros, durante a noite, de pijama, com suas mulheres ao lado, com seus filhos em casa chorando porque eram terroristas. Então, aquelas datas que você menciona muito bem - 47, 48, 49, 56, 67, vamos para as Intifadas, em 87, 2000, 2001, 2002, e agora 2006, que marca a eleição do Hamas, são datas que marcam a impossibilidade de a Palestina ter o mínimo de autonomia. A nakba, a catástrofe, existe até hoje, ela é perene, ela está viva o tempo todo. E essa questão toda da Palestina, com o desastre, a catástrofe, a nakba, representa, e faço questão de frisar, a questão nacional número 1 do mundo e da equação internacional. Então, essas datas são sim importantes nesse sentido que estou dizendo. Se você pegar um automóvel, protegido por guardas fortemente armados, e ir à Gaza, você entenderá porquê. Entenderá que estamos diante do maior campo de concentração ao ar livre da história da humanidade. Há 1,4 milhão de pessoas em Gaza, no momento em que estamos conversando agora, que não tem liberdade de ir e vir, de dormir, pois os aviões F-16 israelenses, de propósito, passam a cada 40 minutos, meia hora, a cada hora, em rasantes nas cidades de Gaza, rompendo a barreira do som, apavorando as velhas, os velhos, as crianças, ensurdecendo bebês. A eleição do Hamas, que foi, em toda a história do mundo árabe, de uma limpeza e transparência, como reconheceu um próprio deputado brasileiro, representa um protesto diante do mundo. E o mundo respondeu como. “Não, são terroristas, logo não merecem atenção, logo tem que ter sanção, bloqueio, boicote”. Icarabe: Uma das preocupações dos palestinos é de como as próximas gerações vão encarar a resistência, uma preocupação que existe entre a comunidade no Brasil, por exemplo... Carrilho: Notei essa preocupação. Icarabe: Eles temem que os netos dos que foram expulsos não saibam mais o árabe e o que é ser palestino. Qual o risco de Israel vencer, de que os primeiros sejam expulsos e as outras gerações, aos poucos, de fato esqueçam? Carrilho: Não haverá esquecimento, a prova é que nesses 60 anos você tem hoje em dia 4 milhões de palestinos vivendo nos territórios ocupados e que não querem sair dali, não querem se refugiar na Jordânia, na Síria, no Líbano, não querem ir para Europa ou Estados Unidos. Eles estão ali resistindo, e resistem de todas as formas possíveis. Resistem até com formas ilegais de procedimento. Tenho uma amiga que é antropóloga, de uma especialidade muito curiosa chamada Espaços Arquiteturais. O trabalho que ela faz no momento é exatamente sobre o contrabando de palestinos com soldados israelenses nos checkpoints. Icarabe: Como isso acontece? Carrilho: Isso existe de maneira viva, diária. Eu assisti com meus olhos. E esses contrabandos vão desde peixe, portanto produtos alimentícios vindos de Gaza, até bombom, ouro e jóias. E isso, portanto, entre setores deliquenciais do exército israelense e setores marginais da sociedade palestina. Você pode dizer: “mas como, você está me contando um fato anormal, de delinqüência, ilegal”, mas mostra que a sociedade palestina está viva. É como o narcotráfico no Brasil, ‘ah, o narcotráfico!’. Acho muito curioso os intelectuais de Ipanema no Rio de Janeiro: “Ah, precisamos reforçar o policiamento”. Para protegê-los? Os intelectuais de Ipanema? Acho ridículo, absolutamente ridículo. Eles querem ser protegidos, então vamos reforçar. Eles querem ser protegidos de quê? Nos seus bares de Ipanema, nos seus bares de luxo. A mesma coisa se passa na Palestina. É uma sociedade dividida, tem uma classe dominante, uma classe dominadora, como a nossa classe, e eles têm que resolver um problema interno da Palestina, mas isso é problema da sociedade palestina. Por exemplo, os clãs. Existem os clãs deliquenciais, criminosos em Gaza. Esses clãs criminosos em Gaza é que mantiveram, por exemplo, por cento e poucos dias seqüestrado o jornalista Alan Jonhston, da BBC. Mantêm até hoje o cabo Gilad Shalit, do exército israelense. E é muito difícil para o próprio Hamas e para elementos do Hamas negociar com essa gente pela soltura do cabo, pela soltura do fulano ou do beltrano. Icarabe: Por que ela é a questão central das relações internacionais hoje em dia? Carrilho: Porque o grande problema do mundo árabe, que é um mundo secularmente humilhado e ofendido, é que não obteve sua autonomia e se tornou preposto de interesses estratégicos muito diretos. O Magreb, da França, há algum tempo é disputado pelos Estados Unidos. Há presença, que no início foi soviética, americana na Argélia, no Marrocos e na Tunísia. A Líbia, no momento, com o Kadafi, está entre uma força e outra tentando fazer negócios com a França e, com algum sucesso, com a Grã-Bretanha. Por que o senhor Tony Blair nos seus últimos dias foi dar dois beijos na face de Kadafi? Fez isso porque ele necessita da Líbia, do gás e do petróleo líbio, necessita ter um pé no norte da África, o que sempre foi um desafio estratégico do Reino Unido. O Kadafi necessita desenvolver o país, pois tem um problema de permanência e descobriu lucidamente que a única coisa que poderá fazer o regime dele manter-se no poder é fazer bons negócios com a Europa. No momento, a Líbia tem água subterrânea que está sendo canalizada. É um projeto de 10 bilhões de dólares. É isso, é muito direto. É um mundo complicado, mas o objetivo é muito fácil de entender. Complicado é o modo de fazer. A questão da palestina é complicada, pois o objetivo é um só, a desocupação. As fronteiras de 4 de junho de 1967, ou seja, a linha verde. Enquanto Israel não chegar à linha verde não há solução do problema palestino. Icarabe: Qual o papel da sociedade israelense no problema? Carrilho: A sociedade israelense é muito ativa, mas ela perdeu poder por incompetência porque foi acreditar no Partido Trabalhista, um grande traidor, digamos assim, das idéias da esquerda israelense. Gerou inclusive líderes mentirosos, que mentiram em primeiro lugar para o próprio povo israelense. Ela não está tendo chances por um curso de circunstâncias de natureza internacional. Os únicos exemplos de um certo movimento nesse sentido estão na América do Sul, na América Central (...) Então, o problema da Palestina não é um problema ideológico, no momento. O problema não é partidário, mas um problema de poder interno da sociedade palestina e de Israel, que representa a estratégia dos Estados Unidos no Oriente Médio. Quantas ogivas nucleares Israel tem? Icarabe: Algumas centenas não admitidas... Carrilho: Cento e setenta bastam para destruir todo o Oriente Médio. O que eles estão temendo no Irã é que ele desenvolva de fato artefatos nucleares com um pequeno detalhe que não se comenta, com tecnologia própria, e eles não sabem qual é essa tecnologia própria do Irã. Esse é que é o problema! A tecnologia da Índia é ex-soviética, a do Paquistão uma mistura de ex-soviética com americana. A do Irã ninguém sabe que tecnologia é. Icarabe: Isso seria central dentro da questão do Irã? Carrilho: Aí que está o problema. De modo que você leva em consideração o seguinte: o Hamas veio para existir, forçado ou não pelas circunstâncias históricas, pela intervenção de Israel, mas o Hamas é uma parte da sociedade palestina e uma parte da sociedade muçulmana. Nós vamos ter eleição agora no Marrocos – claro que as leis marroquinas e o regime marroquino se protege – mas você pode estar certo que a maioria que o Ocidente, não gosto da palavra, chama de fundamentalista, está pronta a votar nos partidos muçulmanos marroquinos. Claro que eles não vão atingir o poder, já está assegurado, tem toda uma estratégia jurídica-institucional que não vai permitir, tal como na Jordânia nos últimos dez anos, mas eles são altamente populares, são os únicos que falam da humilhação. É um assunto muito complicado. Eu gosto muito de conversar com meus amigos homens de negócios, ricos, na Palestina. Muitos deles fazem negócios com americanos, canadenses, europeus, mas todos eles têm uma coisa que não vejo em nossos empresários, eles têm um patriotismo absoluto. Isso é admirável. Eu nunca vi um homem de negócios falar “está certo que Israel faça assim, ou que os Estados Unidos comportem-se assim, a Grã-Bretanha, a Europa”, nunca vi algum deles dizer isso. Todos se dizem humilhados, apesar de realizar negócios com esses países. Eles não estão pensando em casa em Miami ou apartamento em Paris. Eles vão a Chicago, Nova York, mas não pensam nisso. Eu tenho amigo que é importador de equipamento hospitalar, Bashar Al-Barghouti. O adido comercial do consulado-geral dos Estados Unidos em Jerusalém disse a ele, no momento máximo do boicote e do embargo americano à Palestina, para não tentar vender os aparelhos ultra-sofisticados de diálise que ele comprava nos Estados Unidos para os hospitais de Gaza, pois estava sob governo terrorista. A partir desse momento, eu me lembro ele chegando ao local que eu freqüentava e dizer: “não é possível, eles não querem que eu mande os aparelhos de diálise para Gaza. Quer dizer que vão morrer crianças, velhos, velhas, porque estou proibido de colocar meus aparelhos importados lá”. Isso é um ato de desumanidade máxima, um ato de desumanidade via negócios, via relações comerciais. São coisas que não se divulgam. Icarabe: Qual o principal problema do retrato que a imprensa faz da questão palestina e em que medida isso atrapalha um encaminhamento da solução? Carrilho: Você desculpe responder com um negócio que está fora da realidade. No momento em que se está falando de televisão pública, e o ministro Franklin Martins preconiza a criação de uma TV pública com correspondentes na África porque um terço da população brasileira é de origem africana, acho que a gente devia ter correspondentes dessa hipotética TV pública em outras regiões do mundo. Acho, por exemplo, que temos que ter jornalistas em Jerusalém e Ramallah, tal como eu vivia lá. Se nós brasileiros tivermos jornalistas que fazem isso, como ingleses, franceses, americanos, nós teríamos a outra visão. O que faz a nossa imprensa é repetir o que está no noticiário internacional. Icarabe: Mas a cobertura deles (de quem tem correspondentes na região) é melhor por causa disso? Carrilho: É melhor dependendo das tendências de cada órgão. O “Financial Times” e o “The Independent” têm uma boa cobertura. Conheço, por exemplo, o representante da CNN em Jerusalém e Ramallah, que é um intelectual, um sujeito maravilhoso, jovem, mas que se sente tolhido por diretrizes da própria CNN. Depende evidentemente para que órgão você vai trabalhar. Eu, se fosse jornalista no Brasil de hoje, correspondente e fosse mandado para lá, gostaria de ser correspondente do “Estadão” (O Estado de S. Paulo). Ao menos eu ia ser publicado aqui. Para não fazer como um certo jornalista, cujo nome não vou dizer, que foi para lá e ficou hospedado na casa de um agente da ShinBet (agência de espionagem de Israel), e que quando eu falava na palavra ocupação, “o senhor vive falando em ocupação!”. Claro, eu sou diplomata que exerce uma função sob diplomacia ocupada também. A nossa diplomacia em relação à Palestina é uma diplomacia de ocupação. Icarabe: A opinião geral entre os embaixadores por lá é essa? Carrilho: Salvo alguns raros que são favoráveis à potência ocupante. Icarabe: O Brasil vai se envolver mais com a Palestina? Carrilho: Vamos ter a reativação da nossa política. Nós temos um paradigma muito conhecido, que é a criação do Estado palestino, que tem que conviver com a realidade da existência do Estado de Israel, legalizado e institucionalizado no mundo inteiro pela comunidade internacional. Temos que conviver com esse país coeso, viável economicamente, ao lado de Israel. Em palestra, vi que alguns árabes protestaram quando eu disse que a Palestina precisa de Israel, e vai precisar sempre. É uma contingência geográfica, geoeconômica. Eles estão ali, encrustados em Israel, então tem que viver ali. O problema que eu vejo são os principais vizinhos. A Jordânia, do lado esquerdo, e o Egito ao sul. Esses países vão ter que aceitar essa convivência da Palestina com Israel. Eu estou preocupado com a convivência da Jordânia e do Egito com a Palestina. Aí é que está o grande desafio.