Jornalista "descobre" o Irã
Icarabe: Como foi o percurso, quais as cidades que visitou nas suas viagens ao Irã? Ivonete Pinto: Há cidades obrigatórias para conhecer, tanto como turista e como interessada em geral pelo país. Além de Teerã, há Isfahan e Shiraz, cidades históricas, importantes, superbonitas, de acesso fácil. Mas existem outros centros de interesse mais religioso. Fui para Tabriz e para Mashad. Icarabe: Como você procurou contar as coisas que viu por lá através do livro? Quais os problemas de opinião que temos sobre o país? Ivonete: São informações filtradas por agências internacionais, muitas são americanas. Eu confesso que a primeira vez tinha uma imagem baseada nessas informações de internet, depoimentos de europeus e americanos que tinham passado por situações delicadas. Porque na primeira vez, o Khatami (Mohamed Khatami foi presidente de 1997 a 2004) recém estava assumindo, em 1998, e o país vivia ainda por conta de um forte condicionamento da questão moral, não havia maiores liberdades. Liberdades que o Khatami foi conseguindo, principalmente no segundo mandato. Dessa primeira vez, então, tinha toda uma apreensão a partir de informações um pouco exageradas que a gente recebia. Quando voltei em 2001 e 2002, já pude sentir um pouco mais de liberdade. Até acho que isso pode ficar um pouco complicado com esse novo presidente,em relação a questões de natureza mais comportamental mesmo, namorados, jovens, como se comportar na rua, pode abraçar, não pode abraçar, mulheres podem se maquiar, não podem se maquiar, esse tipo de coisa. Icarabe: Você encontrou dois momentos da sociedade iraniana, no começo e já quase no final do mandato de Khatami. Que diferenças você enxergou nesses dois momentos e as semelhanças que podem ser entendidas como características da sociedade do Irã? Ivonete: Não conheci os primeiros anos da Revolução, não fui ao Irã na época do Khomeini, mas sei que as coisas eram mais radicais nesse sentido, o clero xiita pega mais pesado nesse sentido. Fui ao Irã com Khatami, mas entre o primeiro mandato e o segundo já senti uma diferença. Tive a sensação de que as coisas foram um pouco mais afrouxadas, a partir também de depoimentos e de amigos que fiz lá. Os jovens foram tendo mais espaço ano a ano e foram reivindicando cada vez mais. Por exemplo, a primeira vez eu não via casais de mãos dadas nas ruas, e nas duas outras vezes já via esse tipo de situação. São nesses detalhes que percebemos como o regime está sendo modificado, através desse tipo de pressão de comportamento. Agora, não sei se está havendo ou vai haver um retrocesso nesse sentido com o novo presidente. Icarabe: Como a população enxergava a revolução islâmica? Ivonete: É complicado falar de maneira genérica, pois as pessoas têm pontos de vista diferentes. Teríamos que separar por classe social, faixa etária, mas digamos que com as pessoas com que convivi um pouco mais ninguém é contra a Revolução. As pessoas concordavam que era necessário que houvesse alguma coisa naquele período do xá Reza Pahlevi. As pessoas concordavam com a derrubada da monarquia. Agora, com os rumos que a Revolução Islâmica tomou, aí é que as pessoas passam a divergir. Muitos movimentos sociais que apoiavam o aiatolá Khomeini passaram a não apoiar mais com as muitas restrições que foram sendo criadas, perseguição política, censura e prisões. Icarabe: Essa situação se manteve com os aiatolás seguintes? Ivonete: Sempre tem aquela briga entre o clero mais conservador e o moderado, que, no caso, era representado pelo Khatami e pelo líder, o Khamenei (Ali Khamenei, atual líder religioso). O Khamenei continua, o Khatami saiu e agora o Ahmadinejad representa essa linha mais dura, no sentido político e no sentido do comportamento. Mas os jovens, o que eles dizem é que eles não querem que o regime no sentido de ser uma teocracia se modifique. Eles vão continuar sendo muçulmanos, o regime vai continuar a ser regido pela charia, a constituição, mas eles gostariam de ter mais liberdade. Icarabe: Então eles aceitam a charia como reguladora? Ivonete: Sim. Tudo é uma questão de interpretação, do que está escrito da lei. Então eles gostariam de mais abertura. Tanto que os maiores movimentos são dos estudantes mesmo, que vão para as ruas e que exigem reformas nesse sentido. E o grande problema do Khatami, não sei se ele se reelegeria se houvesse uma situação e uma possibilidade de um terceiro mandato, era que havia uma frustração em relação ao que ele conseguiu fazer, que segundo os jovens foi muito pouco. Icarabe: Uma solução política em moldes ocidentais, que não passasse pelo islã, seria rejeitada? Ivonete: Ah, sim. Senti um povo muito religioso. Não religioso no sentido que os ocidentais vêem, aquela coisa fundamentalista, que em função da religião eles seriam homens-bomba, ou dessa cena que mostraram de pessoas se alistando para serem mártires. Isso para mim é um pouco de teatro para demonstrar força política para o ocidente. Agora, na vida real as pessoas têm sua rotina, elas trabalham, elas estudam, tentam adquirir as coisas que a classe média adquire. Elas têm que se concentrar muito no trabalho e no estudo, e elas não ficam pensando na maior parte do tempo em questões políticas. Mas elas são religiosas sim. Aí não dá muito certo comparar com o estilo de vida de um brasileiro católico porque a dedicação para essa questão religiosa lá é muito maior. As pessoas de fato seguem. Icarabe: Além de fator religioso, o islã seria uma identidade cultural da sociedade iraniana? Ivonete: Para alguns grupos, acho que sim, quando se fala em islã, especificamente, tem essa conotação. Mas se a gente só falar do muçulmano, do sujeito comum que vai para a mesquita rezar diariamente, faz o Ramadan, que segue as regras mais gerais, esse não está preocupado com o islã nesse sentido político. Lógico que eu estou falando de uma forma hipotética porque eu não estou lá agora. Pode ser que o clima lá pode ter se modificado. As pessoas que antes não se interessavam tanto por política, agora, com esses últimos acontecimentos - a ameaça de invasão -, estão prestando mais atenção à política. Com o Khatami, as coisas estavam mais tranqüilas, porque havia essa intenção efetiva do Khatami de se aproximar dos Estados Unidos. Icarabe: A população apoiava essa aproximação? Ivonete: Era bem vista sim. Até porque quando eu encontrava americanos e perguntava como eles eram tratados, eles falavam que eram tratados muito bem. O iraniano sempre fez uma distinção entre o governo e o povo, ele odeia o governo dos Estados Unidos, mas não odeia o americano. Por exemplo, no âmbito do Festival internacional de Cinema, tinha sempre dois ou três críticos de cinema dos Estados Unidos, mais de uma vez, e gostavam do país e eram bem tratados. Icarabe: Como ocorrem as manifestações políticas e as reivindicações no Irã? Ivonete: Estava havendo um ensaio disso, até com a internet, que por mais que seja controlada, e ela é, os jovens tentam burlar e conseguem acessar sites não permitidos. As antenas parabólicas captam imagens de TV de fora, contra a tecnologia eles não têm muito o que fazer. E isso acaba influenciando o modo de pensar do iraniano. Acho que se comparado com os primeiros anos da revolução, ele é muito mais aberto às questões do ocidente. Agora, quando se toca na natureza do nacionalismo iraniano, que é o que está acontecendo agora, em relação a isso eles tomam uma posição a favor do Irã. Todo o apelo dos discursos do presidente é nesse sentido, de um nacionalismo de defesa de um país. E aí, os jovens, por mais adeptos que sejam ao ocidente, eles preferem ficar com seu país. Icarabe: Quem manda no Irã? Os aiatolás? Ivonete: Sim, o clero xiita. Existe a divisão, tem o presidente e tem o líder espiritual que comanda o legislativo e o judiciário. É um poder muito dividido. O presidente tem alguns poderes e o líder espiritual tem poderes muito maiores. Há uma briga de poderes. Agora, o Ahmadinejad não é religioso, ele é civil, mas, no entanto, na questão política, ele é muito mais conservador do que o Khatami. Ele é radicalmente contra uma aproximação com os Estados Unidos e está declarando guerra contra Israel. Icarabe: Essa direção que a política do Irã tomou, para as políticas de Ahmadinejad, não pode ser uma reação a pressões externas dos Estados Unidos? Ivonete: Como isso não era da agenda da época em que fui para lá, isso estava mais calmo e eles estavam mais preocupados com uma coisa que foi muito importante para o Irã nos últimos anos, que foi a recuperação econômica. Eles ficaram oito anos em guerra contra o Iraque, saíram em frangalhos e estavam tentando recuperar espaço nesse sentido. Por outro lado, o Khatami estava abrindo as portas da economia e acenando para os Estados Unidos. O clima era mais nesse sentido, de o Irã estar se abrindo e ficando mais moderno. Essa questão com Israel, eu, particularmente, não sentia. Mas sempre houve, não só no Irã, mas em todo o oriente, incluindo a Índia, sempre houve uma visão muito crítica em relação ao que Israel representa no mundo. Icarabe: Quais as conseqüências de uma guerra dos Estados Unidos com o Irã para a região? Ivonete: Eu particularmente não acredito. Acho que é um jogo de cena, é incomparável pensar os Estados Unidos em uma guerra com o Iraque e uma guerra com o Irã. O Iraque, apesar de ser um grande produtor de petróleo, era uma economia problemática. O Irã é uma potência e vem se recuperando ano a ano. Os Estados Unidos sabem que ali não é a mesma coisa. Acho que fazem muito um teatro e o Irã com as ameaças também faz um teatro, ‘vamos ver quem grita mais alto’. Porque seria realmente uma coisa impensável. O que poderia ser em termos de baixa, pois o Irã iria reagir, teria condições em termos de exército para reagir. Não é como o Iraque, é muito mais rico e mais organizado.