O escritor da Manaus não-exótica, da literatura universal
Sentado em café de famosa livraria paulistana, o escritor amazonense de origem libanesa deu longa entrevista ao ICArabe sobre sua trajetória profissional, seus encontros e desencontros pela vida, sua identidade e sobre sua insaciável paixão pelos livros.“O exotismo é sempre uma construção do imaginário do Outro. (...) Se o Outro é exótico, ele pode ser meu escravo”. Político, sensível e um grande leitor, Milton Hatoum concedeu longa entrevista ao Icarabe. Sentado no café de uma famosa livraria paulistana, o escritor amazonense de origem libanesa discorreu sobre sua trajetória profissional, seus encontros e desencontros pela vida, sua identidade e, claro, sobre sua imensa e insaciável paixão pelos livros. Ele, que mora em São Paulo há mais de uma década, declarou seu carinho pela cidade, mas não escondeu a saudades dos tempos da infância em Manaus. Porém, sem meias palavras, atestou que não é um escritor manauense ou que produz literatura árabe. Suas reflexões não são biográficas – sua arte são a ficção e o longo e árduo domínio do instrumento da linguagem. ICArabe: No conto “Um estrangeiro em nossa rua”, publicado em A cidade Ilhada, há uma afirmação do narrador que diz: “Eu só depois entendi que a língua e não a nacionalidade nos define”. É possível traçar um paralelo com a premissa do poeta Fernando Pessoa, que declarou que sua pátria era a língua portuguesa?: Milton Hatoum: O conto narra uma história de amor adiada para sempre - do desencontro, que, assim como o encontro e o acaso, é um tema muito literário. Ele é também um relato sobre a impossibilidade do encontro afetivo e efetivo. Além do jogo sensual, da paixão adolescente e do desencontro amoroso, há ainda o que eu chamaria de deslocamento. Pelo fato de os vizinhos serem estrangeiros - como uma alusão a todos os estrangeiros da nossa vida -, o narrador chega à conclusão de que o que a personagem fala não é o português, ou ao menos não é o que ele espera da língua portuguesa que ele fala, sua língua materna. Esse deslocamento tem a ver com esse estranhamento, que por sua vez tem a ver com outro estranhamento, outro desencontro, que é a história deles. ICArabe: Sobre a questão da identidade, pensando sobre outro conto da coletânea, “Natureza XXX”, e fazendo paralelo com o autor Edward Said, podemos dizer que há uma série de Orientalismos na sua obra. Dessa forma, como escritor, como você lida com a questão da alteridade e seus exotismos – o exotismo do árabe, o exotismo do amazonense, o exotismo do árabe que vive no Amazonas? Hatoum: O exotismo é sempre uma construção do imaginário do Outro, é sempre uma visão de quem chega de fora e lança um olhar que faz o julgamento do exótico sobre o Outro. Desse ponto de vista, a questão do exotismo está muito ligada a uma hierarquia, a um tipo de olhar. Existe o exotismo desinteressado, o exotismo dos viajantes e escritores, do olhar antropológico, que é um exotismo que não passa por um julgamento a priori. Mas isso é muito diferente do exotismo como forma de manipulação do Outro. Se o Outro é exótico, ele pode ser meu escravo. ICArabe: E como se dá essa relação da Amazônia em relação a São Paulo? Essa visão Globo Repórter dos animais, dessa terra de ninguém, da imensidão. E também a ideia de uma sensualidade, de um erotismo mítico, que também está presente no olhar sobre o mundo árabe. É um diálogo em extremos: a mulher sensual ou a mulher de véu, vítima de opressão e na Amazônia, essa ideia da imensidão da floresta ou a extrema miséria das palafitas. Hatoum: Sobre as mulheres oprimidas, elas estão em todas as sociedades. As judias ortodoxas não podem mostrar os cabelos, as mulheres católicas são também subjugadas e um dos países mais violentos no trato com as mulheres é o Brasil – basta visitar uma delegacia da mulher. As opressões não estão condicionadas a uma sociedade islâmica. Já a Amazônia ainda é desconhecida dos brasileiros. Eu acho que a maneira de se evitar o olhar exótico é conhecer a outra cultura, mas conhecer sem interesse, sem parti pris, sem um julgamento prévio. O conhecimento implica também uma espécie de entrega. A compreensão é uma via de mão dupla, ela tem que ser mútua. Euclides da Cunha escreveu uma série de ensaios reunidos em um livro chamado À margem da história, que é um título equivocado para a Amazônia. Era o que ele chamava de Grande Deserto, uma terra ignota, inculta em vários sentidos. Existem várias visões da Amazônia, é uma cultura muito plural. Lá existem grandes centros urbanos que estão conectados entre eles e com o Brasil. A própria formação da população e da história amazonense está implicada em outras populações brasileiras. Não se pode pensar na Amazônia sem a presença maciça dos imigrantes nordestinos desde a segunda metade do século XIX. Há aí uma espécie de mistura entre várias culturas brasileiras, estrangeiras e nativas, que estão entrelaçadas – como sempre acontecem com as culturas, lembrando de outra tese de Said. Não há choque de civilizações. ICArabe: É nessa classificação, como Said dizia, que se interrompe o diálogo. É o Outro que é diferente de mim, do Mesmo, e, portanto, nós não nos entendemos, não conversamos? Hatoum: Claro. Porque o exotismo é mais fácil e por isso que o exotismo está muito próximo do clichê e do estereótipo. É uma forma de ideias fixas, rígidas e superficiais sobre algo ou alguém que não aprofundam nada. É fácil construir clichês sobre o Outro, sobre outra cultura. ICArabe: E isso permanece no cenário político atual? Hatoum: Sim. É um pouco o discurso sionista sobre a Palestina – que diz que é uma terra deserta, desabitada, que esperava um povo para ajudá-la. É um discurso que exclui a população histórica palestina que está lá há mais de dois mil anos. O exotismo é perigoso porque ele é excludente, porque ele passa uma imagem totalmente superficial do Outro. ICArabe: E ele é um instrumento de dominação? Hatoum: Acaba sendo um instrumento de dominação. E é por isso que eu acho que uma outra forma de exotismo, que causa surpresa, que causa admiração, e até mesmo perplexidade, faz parte de um olhar mais sensível, mais compassivo e até mesmo interativo em relação ao que se vê. Henry Michaux, poeta belgo-francês, fez uma viagem incrível pela Amazônia em 1927 e escreveu o livro Equador sobre esse percurso que se estendeu de Iquitos, no Peru, até Belém. Nesse livro, ele diz: “eu naveguei milhares de milhas e confesso que não vi a Amazônia”. A perplexidade dele é de fato a de alguém que não conseguiu entender aquela grandiosidade. Então, a Amazônia é uma cultura como outra qualquer, com suas particularidades. Um lugar onde se falam dezenas de línguas indígenas, onde sempre houve um processo econômico contínuo apesar dos momentos de estagnação, uma perspectiva de exploração enorme em detrimento de poucos, com a maior parte da população marginalizada. Mas, ao contrário do que diz Euclides da Cunha, não é uma terra inculta. É que ele não soube ver o que lá existe. Ele percebeu muita coisa nas cidades, mas não percebeu e não estudou a enorme complexidade das culturas indígenas. Icarabe: No romance “Cinzas do Norte”, o tema do desencontro permanece. É o desencontro familiar, o desencontro entre amantes e o desencontro dessa Amazônia que o Brasil não está disposto a ver. Hatoum: E não quer ver até hoje. É incrível como o Brasil que edita tantos poetas medíocres no eixo Rio-São Paulo não editou um poeta como o Max Martins, de Belém - que morreu há pouco tempo e foi ocultado. Quando cheguei da França e comecei a dar aulas no francês da Universidade Federal do Amazonas, os alunos não queriam acreditar que eu tinha nascido em Manaus, que eu era amazonense. Foi chocante porque assinava esse complexo de inferioridade como se seus conterrâneos, seus pares, não fossem capazes de dar uma aula. É assim que vemos que a colonização, esse massacre mental, tem repercussões sérias nas vidas das pessoas. Elas se sentem de fato subjugadas, inferiorizadas. Isso é terrível porque é aceitar essa condição que foi imposta pelo colonizador e também por uma colonização interna. Na Zona Franca, a presença paulista em Manaus é considerável e eu diria até que hoje quem dá as cartas da economia do estado são as empresas da Zona Franca. Não são mais as grandes empresas ou grandes fazendeiros – não existe mais uma burguesia local capaz de sustentar o estado. Icarabe: No conto do “encontro com o Euclides”, o narrador fala: “para onde eu vou, Manaus me persegue, uma realidade de outra América, mesmo quando não é solicitada”. Não sei quanto disso podemos tratar como autobiográfico, ou quanto é personagem. Mas essa Amazônia está com você? Ela lhe persegue? Hatoum: Não. Posso viver muito bem longe dela. Aí é que está o trabalho da linguagem. É a ideia de passar a sensação de verossimilhança, é o velho efeito da ilusão realista no romance. A literatura paga um dízimo ao real – é a ideia de confundir o leitor para ele confundir o narrador com o escritor. Nesse caso, quem está falando é o narrador porque eu não sou nem um pouco bairrista, nem trago a Amazônia como questão central da minha vida e, talvez por isso, eu não compartilhe uma visão gregária ou regionalista da literatura. E isso incomoda algumas pessoas de lá e daqui também. ICArabe: Pessoas que querem um escritor exótico ... Hatoum: Exatamente. Um escritor exótico, mas não sou isso. Porque um escritor exótico, um escritor regionalista, não é traduzido. Não tem interesse. Manaus é importante na minha vida pela minha infância. Icarabe: Infância esta que é um tema muito presente na sua obra, assim como o arquétipo da família. É o elemento central dos romances, na novela ela está presente e muitas vezes aparece nos contos. Quem são esses homens e mulheres da sua obra? Hatoum: São em grande parte invenções. Tanto que isso irritava alguns parentes meus por não se reconhecerem nos personagens – eu falo de parentes vaidosos que queriam ser nomeados. Um só parente, uma só pessoa não basta para se criar um bom personagem. O personagem deveria ser uma figura mais complexa do que alguém que você conhece, com a qual você conviveu. É uma soma, um acréscimo e uma construção que dá muito trabalho. Os personagens não são figuras aleatórias que surgem ao acaso, ao bel prazer da escrita. O autor pensa neles, o que quer deles, o que quer para eles e que relação que eles terão com os outros porque eles só existem em conjunto com os outros, com a trama. Um deles, porém, só um deles, o Halim, tem alguns traços do meu pai. Isso porque meu pai tinha morrido havia pouco tempo, quando eu estava começando a escrever Dois Irmãos. O Halim tem alguma coisa do silêncio do meu pai, da sua reclusão e da sua paixão por uma mulher. Agora, o resto é tudo invenção. ICArabe: Em A Cidade Ilhada, os contos parecem traçar um percurso. Hatoum: Há, vamos dizer, um jogo com a realidade, com aquilo que poderia ser uma anedota. Eles estão relacionados com uma viagem, com a literatura, com o amor, com a desilusão, com a frustração, com os desencontros - os grandes tópicos da literatura. Há um arco temporal nesse livro, do primeiro ao último conto. O primeiro se passa em uma Manaus da minha infância, da minha juventude, dos anos 60. O último é uma Manaus de hoje. ICArabe: É curioso você ter aderido ao conto depois de três romances e uma novela. Há a sensação de que foi diminuindo o tamanho do texto: o romance, a novela, e depois a síntese com o conto. Isso foi intencional ou os romances simplesmente surgiram, organizaram-se primeiro? Hatoum: Eu comecei por poeta, ao publicar em São Paulo um livro de poesia. Eram doze poemas com fotos de fotógrafos daqui que viajaram pela Amazônia. Às vezes até esqueço, “Amazonas, Um Rio Entre Ruínas”... “Palavras e Imagens de um Rio entre Ruínas”. Na época, lia muito mais poesia do que prosa. Ainda na década de 70, escrevi alguns outros poemas e escrevi muitos contos, mas foram todos pro lixo, todos, não se salvou nenhum. E quando eu comecei a escrever o conto Natureza Ri da Cultura, eu me empolguei e percebi que tinha assunto para escrever um texto maior. Eu gostei, me identifiquei com esse gênero. Nesse meio tempo, comecei a escrever Dois Irmãos, me empolguei e fui até o fim. Os outros contos foram acontecendo na década de 90 e os dois últimos contos, o par que constitui a homenagem a Machado, foram escritos no semestre passado. ICArabe: Retomando o processo de criação, que imagino ser único para cada autor, lembro de uma declaração da escritora carioca Lígia Bojunga Nunes, que contava ver fisicamente suas personagens, elas surgiam e com ela conversavam. Você vê seus personagens, eles interagem com você nesse processo de criação? Hatoum: Você não é muito racional quando escreve, eu tento mas não consigo ser. Eu tento ser racional até o limite da construção, pensando nas partes narrativas, mas isso nem sempre acontece. É um momento movido pelo inesperado, inspirado da escrita, pelas ondas do inconsciente da imaginação, mas, que ao mesmo tempo, não tira o espaço da racionalização. Por exemplo, no caso da Dinaura, eu pensei em uma personagem misteriosa e calada, mas que não era submissa. Uma personagem cujo olhar era poderoso. Eu imaginei uma mulher com uma beleza incomparável que transformasse essa figura louca. Em contrapartida, nos meus outros escritos, há muitas mulheres que têm outro tipo de força, uma força mais presente, que é mais pelas palavras e pelos gestos do que pela dominação. A Dinaura não é uma Emilie, uma Zana, ela pertence a outra tribo e espaço. Ela surgiu de forma consciente como variação, pela vontade que eu tinha de trabalhar com outro registro de personagem. ICArabe: Você costuma dizer que não é um escritor árabe, tampouco um escritor amazonense, mas tem uma presença muito grande da cultura árabe nos seus personagens, nos nomes, nos costumes, enfim, na origem da maioria deles. Como você se relaciona com esse mundo árabe? Hatoum: Eu tenho medo das generalizações, sejam elas históricas, das grandes teses hegelianas, dos destinos econômicos dos países. Essas grandes análises marxistas que passam por uma geração hegeliana me dão um pouco de aflição de que a história não é bem assim. Sou brasileiro, nascido em Manaus. Cada escritor tem suas particularidades, que estão na sua vida, na sua linguagem, no modo de ser, do seu registro cultural. Se eu fosse um escritor paulistano, é provável que eu já tivesse escrito muita coisa sobre São Paulo. O que mais interessa é como eu transfiro, usando um termo freudiano, a minha experiência de vida para a linguagem, de vida e de literatura. Porque a leitura, a realidade lida, é tão importante quanto a realidade vivida para quem escreve. ICArabe: E a presença da realidade árabe? Hatoum: A presença da cultura árabe é muito importante na minha obra. Ela existe e seria absurdo negar isso, mas isso não me faz um escritor árabe, porque o escritor árabe escreve em árabe. Escritores são aquilo o que eles escrevem, e a língua na qual eles escrevem. ICArabe: Outro paralelo possível é entre sua obra e o romance Tempo de migrar para o norte, do escritor sudanês Tayeb Salih. Com alguma variação, o escritor e protagonista do livro passam pelo mesmo processo de nascer de uma aldeia africana arabizada e partir para a conquista da Europa. E de alguma forma você fez esse percurso também, de sair e de se expor ao mundo. Como foi essa saída? Você saiu do Amazonas e inicialmente foi para Brasília e então para a Europa? Hatoum: Em 1996, eu dei aula na Berkeley (Califórnia, EUA). Manaus, naquela época, era uma cidade ilhada, isolada. Eu sempre quis sair de lá porque eu não queria ter a vida provinciana que a cidade me oferecia. Eu adorava Manaus, naquela época eu tinha uma banda, fui crooner, tinha uma vida boêmia - era uma coisa de louco, e tudo isso aos 13 anos. Mas então veio o momento em que quis sair para estudar arquitetura. Saí aos 15 anos, sozinho e, com exceção de temporadas de férias, só voltei em 84 para morar. Morei em Brasília na época do AI-5, época terrível, e passei dez anos em São Paulo. Finalmente ‘encasquetei’ que eu tinha que morar na Europa. Eu sonhava com Barcelona, a cidade que eu via nos livros de arte e arquitetura ainda em Manaus, com as obras de Gaudí, - eu achava que Barcelona era uma cidade ideal para se morar, como ainda acho até hoje. Eu não sinto saudades de Manaus, mas sinto saudades de Barcelona. Ao ganhar uma bolsa de estudos, fui passar quatro meses em Madri e acabei vivendo quatro anos na Europa. Foi uma experiência fundamental para ver o Brasil de longe, para tentar me compreender. Aproveitei a distância para escrever também, distância esta que às vezes é importante. É importante se deparar com tudo isso, saber que está mais ou menos sozinho no mundo, ou totalmente sozinho, e saber também que escrever em português não é fácil - não saber quantos leitores você vai ter, se vai ter leitores. É sempre uma questão. ICArabe: Nessa perspectiva, quando você passou a se reconhecer como escritor? Hatoum: Quando percebi que meu primeiro romance, o Relato de um Certo Oriente, teve uma repercussão muito maior do que eu esperava. A orelha foi assinada por um grande crítico brasileiro, o Davi Arrigucci Jr. O livro ganhou então o prêmio de melhor romance e foi imediatamente traduzido para diversos idiomas e por ótimas editoras. De repente eu via Manaus no NY Times. O Le Monde colocou duas fotos minhas e achei aquilo o máximo. Na Alemanha saiu tanta coisa, fiquei de fato surpreso. Fiquei um pouco deslumbrado, um surto passageiro, que depois passou. O segundo romance foi mais difícil; eu tentei muitas coisas, mas tive então a certeza de que eu queria me dedicar à literatura, mas ainda não podia viver dela. Foi um tempo de muita angústia, passei oito anos tentando publicar o segundo livro. Finalmente consegui e vim para São Paulo. Eu devo muito à São Paulo, aos meus amigos daquela época, à própria universidade, ao que aprendi, ao meu editor, ao que construí nessa cidade. Como diz o Euclides, eu estava meio exilado na minha própria pátria. Mas, com Dois Irmãos, um livro que para os padrões brasileiros alcançou um público muito grande, comecei a viver de direitos autorais – fato este que ainda é assustador para mim. ICArabe: Você foi convidado a participar da feira do livro de Beirute. Você aceitou? Hatoum: Pretendo ir em setembro, para viajar e falar sobre literatura brasileira e visitar meus parentes. Quero escrever um relato de memória sobre a visita que fiz com meu pai em 92 ao Líbano. Foi muito emocionante, já que ele não visitava os parentes havia 33 anos. Eu gostaria de reconstruir isso. Memória esta que equivale à lembrança do dia em que meu pai leu, emocionado, a crítica de meu romance em um jornal libanês, enviado para a Amazônia pelos meus parentes. ICArabe: Você diz não atender ao título de ser um escritor árabe, mas ao mesmo tempo o reconhece. Como você vê a sua identidade? Hatoum: Eu acho incrível que o ser humano seja capaz de ter várias identidades e que ele possa escolher uma ou várias delas. Ele não está destinado a ser, em ter uma alma conformada, uma única cultura ou até mesmo uma única língua. A língua te define na tua essência, mas tu não és obrigado a se identificar apenas com teu país. Por isso a crítica que eu faço aos patriotismos, aos nacionalismos, é que, muitas vezes, são perigosos. Eles cegam, não permitem ver a cultura do Outro, - o nacionalismo exacerbado é uma forma de se situar no topo de uma hierarquia. E na literatura não existe isso. Quando se fala da grande literatura inglesa, é obrigatório falar da russa, e da chinesa, e da árabe, e assim sucessivamente, pois não existe uma só grande literatura. ICArabe: Você tem vontade de morar no mundo árabe? Hatoum: Eu poderia morar numa cidade árabe, tenho muita vontade de conhecer o Cairo, no Egito, que é uma espécie de pai das culturas como um todo do mundo árabe. Mas não gosto de governos religiosos, de Estados religiosos. Por isso um Estado que se autoproclama muçulmano ou judeu, ou extremamente católico, não me atrai nem um pouco. Acredito que todo Estado religioso será catastrófico, e cedo ou tarde terá problemas. * Colaborou Fernanda Picchetto