"O romance é um relato encharcado de humanidade"
Autor fala sobre novo livro, sua relação com a cultura árabe e a sensação do imigrante dentro de um país que abriga culturas de tantos povos, o Brasil.Em 28 de setembro de 1995, na conferência “Sobre o Relato de um certo Oriente”, na PUC-SP, o escritor Milton Hatoum falou sobre o processo de criação de seu primeiro romance, “Relato de um certo Oriente”. Os primeiros esboços da obra foram feitos na Espanha, onde residiu como bolsista universitário, no final da década de 70. Tentava escrever um romance político. Mas, em suas próprias palavras, “rejeitava tudo que escrevia”. Alegava que estava muito próximo dos acontecimentos, havia vivido o biênio do terror 68-69 como estudante em Brasília e a invasão da PUC-SP na noite de 22 de setembro de 1977. Para Hatoum, seu texto não passava de “uma crônica dos acontecimentos recentes”, “uma reportagem sobre eventos demais vivos” em sua memória. Para ele, é fundamental numa ficção ter o poder de fingir e os acontecimentos que o haviam inspirado estavam próximos demais para serem fantasiados. Mudando o rumo de suas idéias, na época o que surgiu foi uma narrativa influenciada por dramas da vida provinciana, movimentos de imigração, encontros e desencontros de cultura. Agora, 28 anos distante da noite em que presenciou a invasão militar à PUC, e 17 anos depois de seu primeiro romance, de 1989 (escreveu também “Dois Irmãos”, de 2000), Hatoum insere de alguma forma o período do golpe em seu mas recente livro. Na conversa com o Icarabe, falou do processo de sua narrativa, da sensação de ser imigrante impressa em sua obra e da sua relação com a cultura árabe. Icarabe: Você se considera o narrador que viaja, que traz as histórias de lugares distantes, ou aquele que cultiva as tradições do lugar de origem? Milton Hatoum: Esse é um dos temas do meu novo romance [Cinzas do Norte]. O narrador permanece em Manaus, enquanto seu amigo Mundo parte para o Rio e depois para Europa. Os dois narradores têm um pouco de mim, da minha vida de muitas andanças. Não sou muito apegado à idéia de uma origem fixa. A experiência humana cria novas origens, e os livros fazem parte dessa experiência porque nos levam para outros lugares e culturas. Um latino-americano conhece ou apreende a cultura do Sudão depois da leitura do romance de Tayeb Salih: "Tempo de migrar para o Norte". E não apenas do Sudão, mas das relações complexas entre este país africano e a Inglaterra. Icarabe: Você sempre cita admiração por Shrazad. Qual o fascínio da estrutura de histórias das Mil e uma Noites? MH: É um dos grandes livros da literatura. Eu diria que, quem gosta de literatura certamente leu ou vai ler as Mil e uma Noites. O que é fascinante nesse livro é a forma de encadeamento das histórias, o suspense no fim de cada uma, a alternância entre o sonho ou a magia e a realidade. Tem um lado muito romanesco e fabuloso, em que os personagens podem fazer tudo. A voz e as palavras participam de um jogo de sedução e também de um outro jogo perigoso: se a narradora não seduzir com as palavras, corre o risco de morrer. Isso atraiu o interesse de muitos escritores, e, é claro de milhões de leitores. Icarabe: Nas suas obras, de certa forma, sempre existe uma cisão e uma sensação desconfortável de ser imigrante, de não-pertencer a um lugar. O sentimento seria um retrato do próprio Amazonas, que, mais do que qualquer lugar do país, seria retratado como o lugar exótico, separado do grande centro, quase incompreensível para o resto do país? MH: Até o começo do século XIX a Amazônia sequer fazia parte do Império do Brasil. A notícia da independência chegou a Manaus com mais de um mês de atraso. No entanto, já no século XVIII Belém era uma das cidades mais estruturadas do país. Por volta de 1870, logo no começo do ciclo da borracha, Manaus e Belém eram metrópoles, e São Paulo sertão. Quando eu era criança ia brincar na praça São Sebastião, onde fica o teatro Amazonas, e era comum escutar Mozart nos velhos casarões neoclássicos. A idéia da oposição norte-sul, traduzida em civilização versus barbárie é errônea e preconceituosa. Minha geração estudou francês e inglês nas escolas públicas de Manaus. O que existe é um enorme desconhecimento a respeito do Brasil. Todos nós somos descendentes de imigrantes, índios, africanos, europeus. Nos Estados Unidos acontece algo semelhante, pois sem a presença dos africanos e dos imigrantes, a sociedade americana seria enfadonha. Icarabe: Said diz em “Selves and Others”: eu sou filho de mãe libanesa, nasci na palestina, tenho passaporte americano: sinto a condição de não pertencer. O Brasil, por outros motivos, mas por agregar tantos povos, que vieram por tão diferentes motivos, seria o próprio lugar do não-pertencimento? MH: Penso que sim. Porque pertencer a tantos lugares ou ser de tantas origens é uma riqueza extraordinária. O diálogo com outras culturas enriquece o ser humano. Meu avô era muçulmano e casou com uma cristã. Curiosamente, nenhum dos meus parentes casou com brasileiro ou brasileira de origem árabe. Felizmente não fui induzido a isso, nem a ser muçulmano ou católico. Na Alemanha, o neto de um imigrante turco não é considerado alemão. Um dos grandes perigos da Europa é cada país isolar-se em trincheiras étnicas ou erguer bandeiras nacionalistas, que excluem os imigrantes, os exilados e expatriados. Icarabe: Qual seu contato com a terra libanesa e o mundo árabe de um modo geral? MH: Tenho parentes no Líbano, país que visitei com meu pai em 1992. Há dezenas, talvez centenas de familiares em Beirute, onde meu pai nasceu. Infelizmente não falo árabe, mas na temporada que passei no Líbano viajei por vários lugares do país e conheci muitas coisas. Já não era o Líbano de que meu pai falava, mas é um país muito bonito, com uma grande diversidade cultural e uma história que se assemelha a um palimpsesto. Os libaneses têm várias origens étnicas, e nisso se parecem com os brasileiros. São povos híbridos e, no caso do Líbano, a religião ocupa um papel importante na política e na distribuição do poder. Na minha opinião, um Estado deve ser laico. Icarabe: Como você analisa a relação entre o Brasil e a cultura árabe? MH: Essa pergunta poderia ser um projeto de uma tese. Uma herança árabe importante encontra-se na língua portuguesa, em milhares de palavras e expressões que falamos no dia-a-dia. Alguns traços da arquitetura colonial, que vieram da Andaluzia, também permaneceram. Uma das relações mais importantes é menos explícita e mais subjetiva, pois se refere aos laços afetivos e culturais de milhões de brasileiros de origem árabe com seus antepassados, os imigrantes do Líbano, da Síria e de outros países de língua árabe. Há também uma culinária do Oriente Médio que foi assimilada e adaptada pelos brasileiros. Diria mesmo que esses laços afetivos se expandem a toda uma cultura mediterrânea, em que as diferenças não excluem as semelhanças e afinidades entre o Brasil e o Mediterrâneo. Icarabe: No sucesso que sua obra teve em outros países, você teve a idéia do que fascinava mais as pessoas nesses lugares? E através da “viagem” da sua obra por esse lugares, como você viu a visão de países europeus e dos EUA em relação ao outro, principalmente ao outro árabe ou latino-americano? MH: Na Inglaterra e na Alemanha meus livros foram mais divulgados e talvez mais lidos. As críticas, artigos e resenhas enfatizaram sobretudo a estrutura dos romances e sua ambientação em Manaus, tendo como pano de fundo a presença de imigrantes na Amazônia. Ou seja, comentaram a obra de um autor brasileiro, nascido no Norte do país, e perceberam que os dramas familiares narrados nos dois romances podiam ter acontecido em outros lugares. Isso é que dá um alcance mais universal e menos regionalista à obra. No meu novo romance o foco é outro, e os imigrantes que aparecem são japoneses que trabalharam nas plantações de juta do Médio Amazonas. Icarabe: Obras suas ganharam traduções para o árabe. Se você pudesse fazer uma crítica de um texto seu, agora no idioma árabe, como inseriria a história no contexto de lá? Ele ganha um novo sentido, agora na sua terra de “origem”? MH: Acho que isso seria impossível, porque infelizmente não falo árabe, nem tenho uma vivência intensa no Líbano que me permitiria escrever um relato no contexto libanês. Michel Sleiman, que é professor de literatura e língua árabe na USP, leu a tradução de "Dois irmãos" e me disse que o romance parecia ter sido escrito em árabe. Mas isso é um mérito da tradutora Safa Jubran, também professora da USP. Safa é bilíngüe e ótima tradutora, por isso soube “arabizar” a história dos dois irmãos. Icarabe: Em comentário sobre “Relato de um certo oriente”, você afirmou que teve dificuldades iniciais de escrever o texto porque estava muito influenciado por acontecimentos da época, como a invasão da PUC de 1977. Agora você retoma o assunto da ditadura no mais novo livro. O tempo passou e as marcas ficaram longe o suficiente para você poder “fabular” sobre o assunto, ter o “poder de fingir”? MH: É isso mesmo. Tentei escrever um romance em 1980, mas fracassei por causa da pressão do momento e da falta de maturidade para encarar a escrita de um romance. Depois de vinte e cinco anos daquela invasão policial da PUC, me senti mais à vontade para reinventar o passado. Não quis escrever um romance sobre a ditadura. Tentei escrever um relato sobre a amizade, sobre o lugar problemático de um artista na sociedade durante a época do regime militar. É mais um drama familiar, em que ressaltam a amizade, a traição, o ciúme, a paixão e a violência. Eu sempre sigo a sugestão do grande escritor inglês Edward Foster: o romance é um relato encharcado de humanidade.